domingo, 10 de dezembro de 2017

O subsolo - 1

Sou um homem doente... Sou mau. Não tenho atrativos. Acho que sofro do fígado. Aliás, não entendo bulhufas da minha doença e não sei com certeza o que é que me dói. Não me trato, nunca me tratei, embora respeite os médicos e a medicina. Além de tudo, sou supersticioso ao extremo; bem, o bastante para respeitar a medicina. (Tenho instrução suficiente para não ser supersticioso, mas sou.) Não, senhores, se não quero me tratar é de raiva. Isso os senhores provavelmente não compreendem. Que assim seja, mas eu compreendo. Certamente, não poderia explicar a quem exatamente eu atinjo, nesse caso, com a minha raiva; sei perfeitamente que, não me tratando, não posso prejudicar os médicos; sei perfeitamente bem que, com isso, prejudico somente a mim e a mais ninguém. Mesmo assim, se não me trato, é de raiva. Se o fígado dói, que doa ainda mais.
Faz muito tempo que vivo assim – uns vinte anos. Agora estou com quarenta. Antes eu trabalhava no serviço público, mas agora não trabalho mais. Fui um funcionário cruel. Era grosseiro e encontrava prazer nisso. Já que não aceitava propinas, devia me recompensar ao menos dessa maneira. (Isso foi um gracejo infeliz, mas não vou apagá-lo. Eu o escrevi pensando que ia sair algo muito espirituoso, mas agora, quando constatei que, de maneira infame, estava apenas querendo me vangloriar, de propósito não vou apagar.) Quando os solicitantes se aproximavam da minha mesa para pedir uma informação, eu rangia os dentes para eles e sentia um prazer infinito quando conseguia contrariar alguém. Quase sempre conseguia. Na maior parte, era gente tímida, como são de hábito os solicitantes. Mas, entre os almofadinhas, particularmente eu não podia suportar um certo oficial. Ele não queria de modo algum submeter-se e fazia tinir seu sabre de maneira asquerosa. Por causa desse sabre, nós estivemos em guerra durante um ano e meio. Ganhei, finalmente. Ele parou com os tinidos. Aliás, isso se passou ainda na minha mocidade. Mas sabem os senhores em que consistia o ponto principal da minha raiva? A questão toda, a minha maior canalhice, se resumia a que a todo momento, até no instante do ódio mais intenso, eu percebia, envergonhado, que não só não era mau, como não era nem mesmo uma pessoa enfurecida, apenas assustava pardais sem nenhum propósito e com isso me divertia. Minha boca espumava, mas se me trouxessem um brinquedinho ou um chazinho com açúcar, na certa eu me acalmaria. Ficaria até enternecido, embora depois, provavelmente, rangeria os dentes para mim mesmo e, de vergonha, passaria alguns meses com insônia. Esse é o meu jeito de ser.
Eu menti antes, quando disse que era um funcionário cruel. Menti de raiva. Apenas me divertia com os solicitantes e o oficial, mas no fundo nunca me tornei mau. Constantemente observava em mim uma enorme quantidade de elementos contrários a isso. Sentia-os fervilhar dentro de mim. Sabia que em toda a minha vida eles fervilharam dentro de mim e ansiavam por sair, mas eu não deixava. Não deixava, de propósito não os soltava. Eles me torturavam ao ponto de me dar vergonha; até convulsões eu tinha por causa deles – e finalmente fiquei farto. Como fiquei farto! Não lhes parece que agora estou me arrependendo de alguma coisa diante dos senhores, que estou a lhes pedir perdão? Estou certo de que parece... Aliás, asseguro-lhes que para mim tanto faz, se isso assim lhes parece...
Não apenas não consegui tornar-me cruel, como também não consegui me tornar nada: nem mau, nem bom, nem canalha, nem homem honrado, nem herói, nem inseto. Agora vivo no meu canto, provocando a mim mesmo com a desculpa rancorosa e inútil de que o homem inteligente não pode seriamente se tornar nada, apenas o tolo o faz. Sim, senhores, o homem do século XIX que possui inteligência tem obrigação moral de ser uma pessoa sem caráter; já um homem com caráter, um homem de ação, é de preferência um ser limitado. Essa é a minha convicção aos quarenta anos. Tenho agora quarenta. E quarenta anos é toda uma vida, é a velhice mais avançada. Depois dos quarenta é indecoroso viver, é vulgar, imoral! Quem vive além dos quarenta? Respondam-me sincera e honestamente. Pois vou lhes dizer quem vive: os tolos e os canalhas. Direi isso na cara de todos os anciãos, dos anciãos respeitáveis, perfumados e de cabelos brancos! Direi isso na cara de todo mundo! Tenho direito de dizer isso porque eu mesmo vou viver até os sessenta. Até os setenta! Até os oitenta! Esperem! Deixem-me tomar fôlego!
Acaso os senhores estão pensando que quero fazê-los rir? Enganaram-se também quanto a isso. Não sou absolutamente esse sujeito brincalhão que os senhores imaginam, ou que talvez os senhores imaginem. Aliás, se os senhores, irritados com toda esta tagarelice (e já senti que estão irritados), inventarem de me perguntar: quem é o senhor exatamente? – eu lhes responderei: sou um assessor colegial. Eu tinha esse emprego para ter alguma coisa para comer (mas somente para isso) e quando, no ano passado, um dos meus parentes distantes deixou-me seis mil rublos no seu testamento, imediatamente me aposentei e mudei para este canto. Meu quarto é detestável, nojento e fica quase fora da cidade. Já vivia aqui antes, mas agora me instalei definitivamente. Minha criada é uma mulher da aldeia, velha, raivosa devido à ignorância e, além de tudo, tem um fedor insuportável. Dizem que o clima de Petersburgo está se tornando prejudicial para mim e que, com os recursos insignificantes de que disponho, é muito caro viver aqui. Sei de tudo isso melhor do que esses conselheiros e protetores experientes e sábios. Mas permaneço em Petersburgo; não vou sair de Petersburgo! Não vou sair porque... Ora! Não faz diferença nenhuma se vou sair ou não.
Mas sobre o que um homem de bem pode falar com mais satisfação?
Resposta: sobre si mesmo.
Então, vou falar sobre mim.
Dostoiévski, in Notas do subsolo

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