quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Bem difícil arranjar trabalho

Quando o caminhão se foi, carregado de utensílios, cheios de ferramentas pesadas, de camas e de colchões que pudessem ser vendidos, Tom deu uma volta pela casa. Vagou pelo celeiro, pelas cocheiras vazias; entrou no alpendre das ferramentas, chutou o monte de restos inúteis e empurrou com o pé o dente quebrado de uma ceifadeira. Visitou os lugares de que se recordava — a encosta vermelha onde as andorinhas faziam seus ninhos, o pé de salgueiro atrás do chiqueiro. Dois leitões grunhiram e roncaram para ele através da cerca, como que o cumprimentando, dois leitões de pelo preto, a receber, confortavelmente estirados, as carícias do sol.
Logo depois, terminou a peregrinação e se sentou nos degraus da porta, envolto numa sombra fresca. Atrás dele, sua mãe movia-se na cozinha, a lavar as roupas dos filhos num tanque, e de seus braços fortes e cobertos de sardas escorria água com sabão até os cotovelos. Ela parou de trabalhar quando o filho sentou-se à porta. Olhou-o por longo tempo, olhou-lhe a nuca quando o rapaz ficou a cismar, de costas para ela, fixo na luz brilhante do dia. Depois tornou ao trabalho.
Tom — disse ela, afinal —, eu espero que as coisas lá na Califórnia sejam boas.
Tom voltou-se e encarou-a.
Por que a senhora receia que não sejam? — inquiriu.
Bom, por nada. É que parece tudo bom demais. Eu vi no folheto. Lá tem muito trabalho e bons salários e tudo o mais. Li no jornal que procuram gente para colher laranjas e pêssegos. Isso seria um belo trabalho, Tom, apanhar pêssegos. Mesmo que eles não deixem a gente comer nenhum, sempre dá pra pegar um que já esteja machucado. E seria bom ficar debaixo das árvores, trabalhando na sombra. Mas tudo isso é bonito demais Tom. Tenho medo. Não tenho fé nisso. Acho que é muita sorte junta.
Não force a fé até à altura do voo dos pássaros e não rastejará como os vermes — disse Tom.
Sim, eu sei que é assim. Tá na Escritura, não é?
Acho que sim — falou Tom. — Sempre confundo as Escrituras com um livro chamado A vitória de Bárbara Worth.
A mãe riu suavemente e foi esfregando a roupa de encontro às bordas do tanque. E torceu camisas e macacões e os músculos de seus antebraços retesavam-se.
O pai de teu pai vivia sempre às voltas com as Escrituras, fazendo citações. Ele fazia cada confusão que te digo! Misturava sempre as frases das Escrituras com coisas do Almanaque do Dr. Mile. Costumava ler alto tudo que tinha no Almanaque: cartas de pessoas que não podiam dormir ou tinham aleijões. Depois tirava pedaços dessas cartas e dizia: isso tá nas Escrituras. Teu pai e o tio John riam à beça, e ele ficava danado. — Ela empilhou a roupa, torcida como corda, sobre a mesa. — Diss’que são uns três mil quilômetros daqui ao lugar pra onde nós vamos. Cê acha que isso é verdade, Tom? Eu vi a Califórnia no mapa; tinha montanhas altas que nem num cartão-postal que eu vi, e a gente tem que passar por essas montanhas todas. Quanto tempo ocê acha que a gente vai viajar, hein, Tommy?
Não sei — disse o filho. — Duas semanas, talvez dez dias, se a gente tiver sorte. Olha, mãe, a senhora não se preocupe, ouviu? Faça como eu, que nem todos que tão na cadeia. A gente não deve pensar em quando vai ser solto. Acabava maluco. A gente pensa no dia de hoje, depois no dia de amanhã, depois no jogo de futebol de sábado, e assim por diante. É o que a senhora deve fazer. Os veteranos fazem assim. Só os novatos encostam a cabeça nas grades da cela e ficam cismando, pensando quanto tempo ainda vai durar aquele inferno. A senhora faça como os veteranos, só pense no dia de hoje.
É um bom meio, esse — falou a mãe, e encheu o tanque com a água que estivera esquentando sobre o fogão, e enfiou no tanque mais roupa suja e começou a esfregá-la na espuma. — Sim, esse é um bom meio. Mas eu gosto de pensar que talvez será bom pra gente lá na Califórnia. Nunca faz frio. E tem tantas frutas, em toda a parte, e as pessoas moram em casas bonitas, em pequeninas casas brancas no meio de laranjeiras. Eu acho que se todos nós arranjasse trabalho e todos trabalhasse, a gente talvez podia comprar uma casinha assim. E as crianças bastava pôr o pé pra fora de casa e podia apanhar quantas laranjas quisesse; ia ser demais pra elas. Iam passar a vida toda gritando por causa disso.
Tom olhou sua mãe trabalhar e seus olhos sorriam.
Faz bem a senhora pensar assim. Eu conheci um sujeito que era lá da Califórnia. Ele não falava que nem a gente. Bastava ouvir ele falar e a gente já sabia que ele não era daqui, que era de longe. E então ele disse que tem muita gente procurando trabalho lá na terra dele. E diss’que o pessoal que trabalha nas safra de frutas vive em lugares imundos e nem tem o que comer direito. Os salários são muito baixos, e assim mesmo é bem difícil arranjar trabalho.
Uma sombra perpassou pelo rosto dela.
Oh, não, não é assim — disse. — Seu pai recebeu um impresso, em papel amarelo, dizendo que se procurava gente pra trabalhar. Eles não ia escrever isso se não tivesse bastante trabalho. Custa muito dinheiro mandar fazer esses impresso. Pra que eles ia mentir e gastar dinheiro com mentiras?
Tom sacudiu a cabeça.
Não sei, mãe. A gente não pode saber por que eles fazem isso. Quem sabe?... — Ele olhou para fora, onde o sol quente torrava a terra vermelha.
Quem sabe o quê?
Quem sabe é mesmo bom aquilo lá, como a senhora diz.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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