domingo, 10 de dezembro de 2017

A senhorita bisturi

Ao chegar ao fim do arrabalde, sob os clarões do gás, senti um braço passar devagarinho debaixo do meu, e ouvi uma voz dizer-me ao ouvido: — O sr. é médico? Voltei-me e vi uma moça alta e robusta, olhos arregalados, semiuniformizada, cabelos flutuando ao vento com as fitas do boné.
Não, não sou. Deixe-me passar.
Oh! Sim! O sr. é médico! Vejo bem que o é. Venha comigo. Garanto que ficará contente. Venha! Que diabo! Mais tarde, depois do médico, irei vê-lo.
E, sempre dependurada no meu braço e rebentando-se de rir: — Hahaha! O sr. é um médico muito tapeador. Conheço vários assim. Vamos! Eu sempre tive uma grande paixão pelo mistério, nunca perdendo a esperança de desvenda-lo. Deixei-me, por isso, arrastar por essa companheira, ou antes, por esse enigma inesperado.
Vou omitir a descrição da choupana, que se poderia encontrar em uma porção de velhos poetas franceses bastante conhecidos. Somente dois ou três retratos de doutores célebres — detalhe que passou despercebido a Régnier — havia pendurados nas paredes.
Como fui bem tratado! Um grande fogo, vinho quente, charutos. Oferecendo-me essas coisas e acendendo também um charuto, dizia-me a engraçada criatura: — Aqui é como se estivesse em sua casa, meu amigo, esteja à vontade. Assim se lembrará do hospital e do bom tempo em que era moço. Onde arranjou esses cabelos brancos? O sr. não era assim, ainda não faz muito tempo, quando trabalhava como interno de L... Lembro-me de que era quem o assistia nas operações graves. Que homem para gostar de cortar, talhar, esgravatar! Era o sr. quem lhe entregava os instrumentos, os fios e as esponjas. E, feita a operação, com que orgulho ele dizia, puxando o relógio: “Cinco minutos, senhores!” Oh! Eu ando em toda parte. Conheço bem esses senhores! Instantes mais tarde, tratando-me por você, continuou com a mesma cantilena, dizendo-me: — Você é médico, não é, meu gatinho?
Esse ininteligível refrão fez-me saltar: — Não! — gritei, indignado.
Cirurgião, então?
Não, e não! Só se fosse para cortar a sua cabeça! Com mil diabos!
Espere e verá, — disse ela.
Tirou de um armário um maço de papéis, que não era outra coisa senão a coleção dos retratos dos médicos ilustres da época, litografados por Maurin, que durante muitos anos puderam ser vistos no cais Voltaire.
Pronto! Reconhece este?
Sim, é X. O nome está embaixo, aliás. Mas, eu o conheço pessoalmente.
Eu sabia! Veja! Aqui está o Z, aquele que dizia na aula, referindo-se a X: “Esse monstro traz no rosto o negrume que tem na alma!” Tudo isso porque o outro não era da opinião dele sobre um mesmo assunto! Como nos ríamos disso na Escola, naquele tempo! Lembra-se? Mais outro, veja: é o K, aquele que denunciava ao governo os revoltosos que tratava no hospital. Era uma época de levantes. Como se explica que um homem tão bonito fosse tão ruim? Veja agora o W, o famoso médico inglês; apanhei-o numa viagem a Paris. Tem um arzinho de mulher, não tem?
E como eu tocasse num pacote amarrado, que estava em cima de uma mesa, ela me disse: — Espere um pouco, esses são os internos. Estes aqui são os externos.
E arrumou em leque um maço de fotografias, representando caras muito moças.
Quando nos tornarmos a ver, você me dará o seu retrato, não é, querido?
Mas, — disse-lhe eu, seguindo por minha vez o curso de minha ideia fixa,
por que pensa que sou médico?
É porque você é tão gentil e tão bom para as mulheres!
Que lógica esquisita! — murmurei.
Oh! Não me engano, conheci uma porção. Gosto tanto desses homens que, embora eu não seja doente, costumo procurá-los, só pelo prazer de vê-los. Há os que me dizem friamente: “A senhora não tem nada!” Mas, há outros que me compreendem, porque os trato com carinho.
E quando não compreendem?
Ora! Quando os amolo inutilmente, deixo dez francos em cima do aquecedor. São tão bons e tão amáveis! Na Santa Casa, descobri um moço interno que é bonito como um anjo! Tão delicado! E como trabalha, o pobrezinho! Os companheiros dele me disseram que não tem um vintém, porque os pais são pobres e não podem mandar nada para ele. Isso me encorajou. Além disso, sou bonita, embora ainda muito moça. Eu lhe disse: “Vá me visitar, vá me visitar de vez em quando. Não se preocupe comigo, pois não preciso de dinheiro.” Mas, você compreende que lhe dei a entender isso com uma porção de rodeios, sem lhe dizer a coisa cruamente. Eu tinha tanto medo de humilhar o queridinho! Pois bem, acredita que tenho um desejo estranho que não me atrevo a dizer-lhe? Eu desejava que ele fosse visitar-me com a maleta e de avental, mesmo que estivesse um pouco sujo de sangue! Disse isso com um ar de ingenuidade, como um homem sensível diria a uma comediante que amasse: “Quero vê-la vestida com a roupa que trazia no famoso papel de sua criação!”
Obstinado, repliquei-lhe: — Não se recorda da época e da ocasião em que lhe nasceu essa paixão estranha?
Foi difícil fazer-me compreender. Afinal, quando o consegui, ela respondeu-me com um ar muito triste e, se não me engano, desviando o olhar: — Não sei... Não me lembro mais...
Que maravilhas não se encontram numa grande cidade, quando se sabe passear e observar? A vida regurgita de monstros inocentes.
Meu Deus! Vós, que sois o Criador, que sois o Soberano; vós, que fizestes a Lei e a Liberdade; vós, rei indulgente e juiz que perdoa; vós, que sois cheio de motivos e de causas e que talvez tenhais posto no meu espírito o prazer do horror para converter-me o coração, como a cura na extremidade de uma lâmina; tende piedade, Senhor, tende piedade dos loucos e das loucas! Poderão existir monstros aos olhos do Criador, que sabe por que eles existem, como foram feitos e como não poderiam deixar de ser feitos?
Charles Baudelaire, in Pequenos poemas em prosa

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