Com
o solzinho da tarde, ela entrou no apartamento. Sábado. — A
entrevista, lembra?
Olhou
as roupas espalhadas, móveis empoeirados e ele desculpou-se: —
Poucos vêm aqui. Achava que minha próxima visita seria a morte.
Observou-a. Pequena, inquieta, mãozinhas curiosas nos discos e
livros. Depois, pernas cruzadas — gravador ligado — murmurou, voz
rouca: — O terreiro do bairro quer fazer um trabalho sobre memória.
Ele, aborrecido, negou depoimento. Tentava esquecer o passado —
fantasma que se escondia sob a cama.
— O
senhor ajudou a fundar associações, a desmascarar a ideologia da
falsa democracia racial — ela insistiu.
Um
dia fora professor. Mas ela não sabia que agora não era mais nada?
Que, há algum tempo, o coração vinha ameaçando parar? — Minha
filha, esqueça-se de mim.
Com
o esforço de levantar-se arregalou os olhos. Ela assustou-se:
— Que
foi?
—
Tonturas, já passa.
Caiu,
sem dizer mais nada.
Apavorada,
ela procurou vizinhos. Um taxista veio. Gordo, dirigia com a barriga
encostada ao volante. No pronto-socorro lotado, brigaram para serem
atendidos. Um jovem médico os recebeu, perguntando:
— Seu
pai? É só pressão um pouco alta. Vocês da raça negra são muito
sujeitos a ter hipertensão. Receitou maleato de enalapril e
mandou-os embora.
Na
volta, no táxi, ela ouviu-o, voz trêmula de velho, sussurrar
“obrigado”.
— Por
fazer o senhor ficar nervoso — sorriu —, ir para o hospital? —
Por se preocupar comigo. Sabe, já estou no fim...
Ele
olhou pela janela do carro. Viu crianças sem camisas jogando futebol
nas ruas.
— Só
não pensei — continuou — que fosse terminar viúvo, sem filhos,
aqui, neste bairro, que é quase outra cidade. Quem povoou Perdizes,
Bela Vista? A negrada. Minha família sempre morou lá.
— Nasci
aqui — ela afirmou. — É legal. Um pouco perigoso, ultimamente.
Uns amigos morrendo por causa de drogas. Dezesseis, dezessete anos.
Não lhe parece que existe um plano para exterminar nosso povo? O que
o tocou, quando ela ergueu o rosto e fitou-o? Os olhos úmidos? Quase
menina, tão preocupada com sua gente. Queria dizer-lhe para não se
iludir, mas a frase ficou presa dentro do peito, mesmo quando ela
voltou outras vezes, depois do trabalho, para ver como estava. Um dia
chegou, tirou o walk-man, passou os dedos nos móveis e exclamou:
— Tem
tanto pó! — Foi acumulando com as decepções — ele brincou.
No
dia seguinte, de bermudas, coxas roliças à mostra, ela espanou,
varreu. Não podia ver nada envelhecer? Pensava, com a alegria de
menina, em remoçá-lo? Num domingo, chegou com discos:
—
Racionais, conhece? Bom pra caramba.
Ouviu
e gostou. Parecia escutar a si mesmo nos versos dos raps, rapaz
crescendo revoltado nos cortiços do Bixiga. Mas o que a moça
queria, enchendo o lugar com música, verificando se comia direito,
arrumando as camisas no guarda-roupa? — Vê-lo recuperar-se — ela
dizia. — Já está mais moço.
Acreditava
no poder de cura de mãos movidas por carinho. Deu-lhe as suas e
levou-o a bares onde pagodeiros punham a alma para percutir os
instrumentos. Dançou com ele, sob olhares curiosos, diferentes
daqueles que os vizinhos lhes dirigiam, quando passavam nas ruas,
mãos entrelaçadas. Ouvia-os dizer: Podia ser sua filha, que
sem-vergonha.
Ela
nem ligava. O velho mais desiludido tornava-se o mais animado. O
homem que ajudara seu povo a se organizar despertava, às vezes, no
trovão da gargalhada. Mas, num sábado, tristezas de outrora
emergiram no poço dos olhos. Ao vislumbrá-las, fez de tudo para
levá-lo à praia. Pularam sete ondas, despachando as coisas ruins
que pesavam nos ombros. Gotas de água em seus cabelos eram
minúsculos sóis. Deitadinhos na areia, contou a ele sobre o pai,
disse que jamais o conhecera. Os olhos marejaram, uma sombra passou
por seu rosto. Então, mudou de assunto e puxou-o para brincar na
água.
Voltaram
da viagem à noite. Entraram no pequeno apartamento rindo de tudo, de
nada. Dono ainda de olhos tristes, mas animado. Bateu-lhe no peito
sem feri-lo. Acariciou sua carapinha. Depois, olhou-o durante um bom
tempo e beijou sua boca sorridente. Idade pra ser o pai? — Sou
virgem — ela murmurou. — Não posso engravidar. As roupas ficaram
sobre o tapete, espalhadas.
De
mãos dadas na padaria, no mercado, ouviam os vizinhos:
— É
a sobrinha? — uns perguntavam.
—
Amante. — outros diziam, baixinho.
Ele
ia receber a aposentadoria e ficava no ponto de ônibus meia hora.
Enquanto outros reclamavam, permanecia impassível, dono de um
segredo. É a concubi na. — Parecia escutar alguém sussurrando.
Sentia-se
leve, até ser acometido por uma dorzinha besta no peito.
No
centro da sala, o homem sentado no sofá é uma pálida lembrança
daquele que, outrora, acreditara na sua gente. Que fantasmas o
acompanhariam ao cemitério? Ela assustou-se, ao vê-lo com as mãos
sobre o peito. — Coração? — Um coração enfraquecido pelas
desilusões. Por que não falava desses fantasmas? — Não confia em
mim? Quer dizer que eu não sou nada?
— O
gravador — ele pediu, imediatamente após ouvi-la falar. Esperou-a
tirar o sony da bolsa e continuou:
— No
início do século, previa-se o desaparecimento da nossa, não digo
raça, que só existe a raça humana. E melhor etnia. As elites
brasileiras queriam um país sem negros e mulatos. Quando soube
dessas ideias, a luz da revolta me iluminou. Uns amigos falaram-me
sobre Zumbi, sobre os quilombos, sobre união. Acreditei que a união
fosse possível. Mas o sonho se desfez tão rápido! Os amigos se
cansaram. O nosso povo? Desinteressado, apático. Não sei —
enxugou uma lágrima — como não desapareceu. — O que vocês
fizeram foi bonito. — São coisas que eu preciso esquecer.
— Hoje
os problemas são os mesmos. Mas há pessoas jovens, querendo
aprender, como eu. Quero acreditar em algo. Nosso povo sobreviveu
porque acreditou na vida.
— É
verdade. Parece que nós temos de adquirir uma força tão grande,
parece que um amor pela vida se enraíza tão fundo dentro da gente,
que nada nos abala com facilidade. E se a gente cai, é pra levantar
mais forte; se apanhamos, voltamos a brigar com mais garra; se
choramos, também aprendemos a extrair, lá de dentro, uma gargalhada
tão gostosa, que é como se toda a alegria do mundo coubesse em
nosso peito. Somos negros e temos essa força. Isso é maravilhoso.
Ela
abraçou-o, beijou-o. Só então ele se deu conta de que falara com
entusiasmo. Uma parte do sonho ainda vivia. Mas as dores no peito
persistiram. Ela vinha mais vezes, preparava arroz integral, moderou
no sal e tirou o açúcar branco.
— A
pinga com carqueja eu não jogo fora — ele protestou. Era para
diabetes, um amigo tinha ensinado.
Ficava
irritado com os excessos de cuidados. No fundo, sentia falta quando
ela não vinha. A menina de uma geração tão diferente, com quem
reaprendia a viver. A moça que acreditava nas coisas em que ele
acreditara. Num domingo, sentindo o relógio no peito se acelerar,
disse-lhe: — Não vou durar muito. Só lamento não ter tido
filhos. Notou que ela ficou calada, pensativa. Escondia algo?
Veio
na segunda-feira. Preocupada, tensa. Acusou-o de cerceá-la. Tensão
pré-menstrual? Que havia?
— Estou
grávida — disse, por fim. — Não posso. Tenho estudos. Também
não quero um filho pra crescer como eu, sem pai.
Foi
até a janela. Suas lágrimas rolavam como a chuva lá fora. — Um
filho? — ele perguntou, incrédulo. — A soma do meu e do teu
sonho. Olhe — pegou-lhe a mão e pôs sobre seu próprio peito —
parou de doer. Podemos criar esse filho, se você quiser. — Então
abraçou-a e, com a voz embargada, soluçando, falou: — Te amo.
Quando
eles passavam, grávidos, ouviam os vizinhos comentarem:
— É
o filho — uns diziam.
— O
neto — outros apostavam.
— É
o amor nos recriando — diziam um ao outro.
Márcio
Barbosa, in Os cem melhores contos brasileiros do
século
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