quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Um sujeito monstruosamente esperto (trecho)

A canção terminou e sentei ereto na cadeira. Havia uma garota à minha direita que eu não tinha notado até agora. Suas pernas estavam embrulhadas numa meia colante cor de pólvora, tinham curvas sedutoras, mas os joelhos eram ossudos e cadavéricos. Seu vestido era de um tecido de feltro escuro e ela vestia um corpete branco com uma jaqueta esporte escura. Seus dentes eram grandes, cintilavam com vigor, mas não eram pequenos o suficiente para serem escondidos naturalmente pelos lábios. Seus cabelos tinham a cor de fios de cobre despidos de sua cobertura isolante. Contas de imitação de topázio pendiam do seu pescoço, combinando belamente com seus cabelos e olhos castanhos.
Levantando, inclinei-me levemente na direção dela. Tentei parecer amigável.
Poderia dançar esta comigo?
Por que não? — ela disse. — É uma música bacana.
A canção era um foxtrote lento.
Só um minuto — falei.
Ela estava de pé quando voltei da bilheteria.
Seus olhos estavam no nível da minha testa. Passamos pelo portão, entreguei ao fiscal um tíquete e deslizamos pela pista. Suas pernas eram rijas e vigorosas e acompanhavam meticulosamente meus passos vacilantes. Meus dedos, na parte baixa de suas costas, moviam-se como teclas de piano automáticas enquanto seus músculos subiam e desciam. Seu pó de arroz e seu rouge exalavam um odor adocicado. Eu o cheirei ansiosamente.
Já não o vi antes? Em Stanford?
Era uma universitária. Eu não ia contar a ela que era estivador. Esperava que não sentisse os calos em minhas mãos e relaxei os dedos da mão esquerda.
Sem dúvida — menti —, sou inundado por erudição naquele glorioso instituto.
Ela riu.
Você dança exatamente como um homem de Stanford.
Isso é um cumprimento?
Com certeza!
Sua maldita mentirosa, pensei.
É, sim — disse. — Nós, filhos de Leland, somos ruins das duas pernas.
Você fala exatamente como um professor.
Sim, e essa é minha posição em Stanford — falei, num tom obviamente jocoso.
Poxa, mas você é muito jovem.
Meu Deus, ela acredita em mim. De fato, sou um sujeito monstruosamente esperto, ou melhor, ela é uma garota monstruosamente burra.
Eu me formei no ano passado. É meu primeiro ano como professor.
O que ensina?
Comunismo.
Estava seguro de que sabia mais sobre comunismo do que ela.
Ora, seu bandido. Comunismo é contra a lei.
Que lei? — perguntei, surpreso. — Não ouviu falar na Declaração de Direitos?
Bem, você sabe — disse ela timidamente. — Sempre pensei que fosse contra a lei.
Que absurdo! Incrível!
Deve achar que sou terrivelmente burra.
Ela estava na defensiva. Eu podia ver Jurgen sorrindo.
Oh, não. Não é um erro muito sério — e então falei com suavidade. — Mas você sabe, querida, Jeová não cometeu erros quando Ele criou você, não é verdade?
Dançamos cinco números sucessivos e, quando deixamos a pista, ela me chamava de professor. Meu nome, eu disse, era professor Cabell.
Tomamos leites maltados e sentamos no canto escuro do salão, quase atrás do estrado da orquestra. Seu nome era Nina Gregg e cursava uma pré-faculdade local. Mas logo me cansei de sua burrice, porque não havia ninguém para quem eu a pudesse demonstrar.
Beijei-a muitas, muitas vezes. Era um belo esporte beijá-la. Tinha lábios que eram massas vermelhas macias e eram doces e grudentos, agarrando-se aos meus como devia acontecer nos beijos. Ela jogou seu corpo com descuido e vontade e gostei muito daquilo, porque nunca tinha beijado uma universitária antes, e, tendo zombado do lendário ardor das estudantes em livros, achei essa realidade extremamente deleitável e surpreendente. Quando nossos lábios se fundiram, ela botou os braços em volta do meu pescoço e seus dedos afundaram na pele frouxa de minhas costas.
Depois de meia hora disso, pedi a ela que caminhasse comigo ao longo da praia, mas ela positivamente se recusou com um sucinto “Nunca!”.
Fiquei zangado e quase esqueci que era um professor.
A seguir, implorei a ela.
Não. Não vou sair deste salão.
Por que não?
Discutir com ela não daria certo. Havia me excitado de tal maneira que minhas têmporas latejavam. Encostei-me para trás, fechei os olhos e tentei pensar em melhores persuasões. Ela também relaxou, jogando a cabeça por sobre o encosto do banco.
Olhei para suas coxas. Uma liga vermelha despontou debaixo da barra do seu vestido.
Sem que ela notasse, estendi a mão, puxei o elástico com os dedos, estiquei-o e o soltei.
A liga estalou de volta, pinicando-a. Atônita, agarrou minha mão exclamando: — Ora, professor!
Dez milhões de desculpas.
Devia se envergonhar — disse ela.
Você não devia exibir suas coxas. Eu só a estava acautelando.
Continuou segurando minha mão e sua palma estava dentro da minha. As pontas de seus dedos moviam-se suavemente sobre os calos e sua mão enrijeceu, como que se afastando de algo repulsivo. Aquela manhã, antes do trabalho, eu tinha furado as bolhas e aplicado tintura de iodo para impedir que a pele interna empolasse. Não podia trabalhar com luvas. O rompimento das bolhas deixara arestas e crostas, como a pata de um animal, de modo que esfregar minha palma no antebraço deixava marcas de arranhão.
A garota abriu minha mão e a pousou sobre o seu joelho.
Céus — disse. — Que mãos horrorosas. O que foi que você fez com elas?
As manchas de iodo pareciam sangue coagulado. Não pude pensar numa evasão.
Ora, não é nada — disse.
Claro que é alguma coisa.
Ela se pôs de pé e bateu com as mãos dos lados do corpo.
Vamos, você está mentindo para mim.
Ficou muito furiosa. Os tendões no seu pescoço incharam.
Mentindo? — Eu continuava sentado.
Você não é professor nenhum. Você não passa de um cavador de valas, motorista de caminhão ou coisa parecida.
E daí?
E daí? Olhe para suas mãos. Olhe para sua velha jaqueta de lenhador. Você não é professor. Você é um mentiroso. É o que você é. Um mentiroso safado.
Ela estava quase berrando. Seus olhos começaram a lacrimejar. Fiquei calado, mas se estivéssemos sozinhos eu a teria surrado. Olhei como um tolo para as palmas de minhas mãos maceradas e tentei sorrir. Muitas pessoas nos observavam. Vi uma velha de óculos que sorriu. Do que está rindo, pensei, seu arcaico saco de ossos. Então tentei encontrar palavras para modelar minha situação em literatura, mas tudo o que pensei foi profanação, e meu punho contra a boca da garota. Pensei numa ideia para uma história, em que o homem mata a mulher, e me perguntei se meu caderno de anotações estaria por perto para que pudesse botar no papel a ideia. Pensei que se eu quisesse um dia me lembrar do incidente com complacência eu deveria ficar de pé e dar um tapa na cara da garota, pelo menos. Em vez disso, eu falei: — Me desculpe. Sinceramente, me desculpe.
Oh, pede desculpas, não é? Seu mentiroso safado.
Deus, pensei, é a única acusação que ela conhece?
Sua mão direita afastou-se do quadril e as costas da mão espancaram meu rosto. O golpe causou coceira e dor.
Pulei de pé. Queria derrubá-la. Mas, anotei mentalmente: “A mão dela disparou e ele sentiu uma dor aguda debaixo dos olhos e pulou de pé.”
Resmungando xingamentos, sentei-me de novo, lançando olhares de soslaio hostis à audiência estupefata. A garota tinha desaparecido na multidão.
Subitamente pensei em Nietzsche e Cabell e Nathan e Lewis e Anderson e muitos mais. Que se dane Nietzsche. Que se dane o grande Mencken. Dane-se Cabell. Dane-se o danado bando. Eu devia ter feito a megera em pedaços. Qual é o problema de minhas mãos? Dane-se meu pai. Dane-se minha mãe. Que eu mesmo me dane. Por que não bati nela? Por que não lhe dei um trambolhão? Seja duro — Ah, Nietzsche, vá embora, sim? Pelo amor de Deus, me deixe em paz por um minuto. Conceitos do bem e do mal são apenas meios para atingir um fim. Tudo o que é bom emana da força, do poder, da saúde, da felicidade e da venerabilidade. O que quer dizer com venerabilidade? Não temor. Não, ele quer dizer cheio de respeito. Eu devia tê-la matado. Jurgen é de fato um sujeito monstruosamente esperto. Pelo menos ela pensou que eu era um professor. Eu devia tê-la chamado de pusilânime ou ignorante, pelo menos. A definição de um homem educado por Everett Dean Martin é bem correta. A igualdade sexual deveria continuar — mas que diabo eu poderia fazer? Nietzsche diz que no fundo os sexos são antagônicos. Gostaria de botar minhas mãos sobre ela durante dois minutos. Devia estar em casa. Preciso escrever setecentas palavras e ler cinquenta páginas.
John Fante, in A grande fome: Contos (1932-1959)

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