Para
Maria da Luz e João Jonas
Ontem
o velho morreu. Dizem que ele passara dos noventa anos sem perder a
noção do espaço e do tempo. Sempre usava um paletó branco e
encardido, na lapela um broto de antúrio que, de longe, parecia um
objeto vermelho cravado no lado esquerdo do peito. De perto, o broto
invocava um membro diminuto e obsceno que irradiava comentários
maldosos.
Sabíamos
pouco de sua vida: era um professor aposentado, solteirão e
invisível nas noites de Manaus. Aos sábados visitava filhos e netos
de amigos, porque os amigos, mesmo, já repousavam no fundo do rio,
como ele costumava dizer.
Fazia
tempo que eu não o via, e não sei se ele teria reconhecido um dos
meninos que o rodeavam para ouvir sua voz.
Eu
o conheci em 1964, quando ele sentava num banco da praça Balbi,
contava histórias, gracejava com as garças e trocava olhares com os
jacaretingas no laguinho, inertes como troncos apodrecidos. Quantas
histórias! Sobretudo trechos de uma ficção que ele recitava a
conta-gotas. Lembro que no fim dessa récita minha infância dobrou a
esquina e deu um salto de braços abertos no purgatório da vida e
nas páginas de um grande livro.
Ontem
era 30 de março de 1973. Eu morava em São Paulo e participava de
uma festa maluca, em que o rock alternava com a bossa-nova e ninguém
se entendia com ninguém porque não valia a pena falar. Melhor ouvir
música e dançar, não para esquecer, e sim para expelir a tristeza
e a revolta dos que tinham ido à missa do sétimo dia de Alex, vulgo
Minhoca: um estudante do curso de geologia (USP), executado
covardemente numa das celas sujas do subsolo da cidade.
Naquela
noite a dança e os sons foram interrompidos por uma chamada de muito
longe, e a voz de minha tia informou, séria e sem tremor, que o
Velho acabara de morrer. Disse assim mesmo: “O Velho da praça foi
embora e vai ser enterrado amanhã”. Desligou antes de mim, não
por pressa ou descaso, mas por ter sido sempre concisa e exata quando
a notícia era alarmante. Então saí da festa e dos anos 1970 e
caminhei na madrugada quieta do bairro paulistano ainda sem prédios,
andando de volta no tempo e no espaço, lembrando as palavras do
Velho na praça e sua caminhada à livraria Acadêmica onde esperava
os livros que iam chegar do sul.
O
sul era o Rio, nossa ponte aérea afetiva e histórica, nosso destino
sonhado na poltrona de algum Constellation da Panair ou
Super-G da Real Aerovias.
No
fim da manhã eu descia a escada do Ginásio Amazonense, enrolava a
manga comprida da camisa suada, afrouxava a gravata e caminhava
fardado e faminto na direção do banco sombreado por um flamboyant.
Então o Velho falava de uma infância maior que o mundo porque não
era uma infância qualquer, e sim uma das mais poderosas e belas
ficções autobiográficas da nossa literatura. Recitava com a
memória de ator de teatro: a primeira lembrança era um vaso de
vidro, cheio de pitombas, e em seguida as caras e palavras
insensatas, e assim o Velho ia desfiando cenas e seres em tempos e
lugares entrelaçados. Isso me fascinava. Quantas vidas e dramas
cabiam nas páginas memorizadas pelo Velho! Quanto sofrimento e
humilhação! Quantas cenas de perplexidade, dor e brutalidade!
Tudo
de cor e salteado, como se dizia.
Ainda
se diz?
“A
palavra foi feita para dizer.”
As
palavras de Infância diziam um mundo desconhecido que
transitava de Alagoas a Pernambuco e chegava ao Amazonas por meio de
uma voz áspera. Um mundo povoado por personagens inesquecíveis:
padres, professores, advogados, senhores de engenho, mucamas, sinhás,
pequenos comerciantes, primos, tios, pais, avós, irmãos, uma bela
irmã natural, crianças. E uma criança. Um menino perplexo, tímido
e tantas vezes humilhado. Pequeno diante do mundo adverso, que aos
poucos será nomeado por “sons estranhos, sílabas, palavras
misteriosas”. E também por adjetivos, o sal que dá relevo e
profundidade à matéria e ao espírito. O ex-professor, agora ator,
havia decorado quadros inteiros do livro: “D. Maria”, “José da
Luz”, “Jerônimo Barreto”, “Venta-Romba”, “A criança
infeliz”. No entanto, o que mais me impressionou foi “O inferno”.
“A
senhora esteve lá?”, pergunta o menino à mãe.
“Desprezou
a interrogação inconveniente e prosseguiu com energia… Minha mãe
estragara a narração com uma incongruência…”
Silêncio
ou respostas arrevesadas, incompletas. O narrador adulto percebe que
a explicação hesitante da mãe não passa de uma aporia. Mas há
incongruência e dúvida em tudo, pois a memória não recupera o
passado com exatidão: lembra e deslembra, diz e desdiz, afirma para
negar ou contrariar. A memória é o lugar da hesitação e da
ambiguidade: o móvel da imaginação. O movimento é sinuoso,
construído por quadros que formam microcosmos, mas que se remetem a
outros quadros e se relacionam com o todo. Uma técnica de montagem,
arquitetura que lembra a de Vidas secas. Mas em Infância
a vida se expande para fora e para dentro, como se fosse um mergulho
nas brumas e na incerteza, no mundo hostil dos adultos, na escola, na
casa, na fazenda, na cidade. Movimento de uma origem ágrafa à
leitura e à escrita, que se tornam apuradas com o tempo e se
constroem como visão crítica de si mesmo e dos outros.
Ter
escutado essas histórias antes de ler o livro nesse mesmo ginásio
me parecia um milagre. Até o dia — era meio-dia e nossas sombras
pediam trégua — em que ele trouxe o livro e ofereceu-o ao grupo de
ginasianos que iam lê-lo dois anos depois.
Quanto
tempo, Velho. Você não foi meu professor, mas lançou ao ar
palavras que nos atraíram para sempre. No centro da praça e na hora
mais escaldante, você estava lá, suportando olhares e comentários:
“Vai ver que está biruta ou senil, vai ver as duas coisas”.
E
você nem ligava para essas vozes.
“Querem
saber mais do Graciliano? Leiam Angústia. Assim de memória
só sei pedaços de Infância. De tanto ler, de tanto viver…
Porque vim de lá, sou de lá. Fui aquele menino.”
Pensava
nisso naquela madrugada de 1973, caminhando na calçada do bairro
silencioso até subir uma rua íngreme para depois descer na
escuridão de breu e entrar na casinha verde onde morava.
Temia
que fantasmas diabólicos me perseguissem: quem não via camburões e
vultos armados naquelas noites de medo?
A
música da festa se apagou, os pares dançantes sumiram, não lembro
se fazia frio ou calor, mas não podia ser uma noite amena. Ainda
fiquei espreitando o silêncio, à espera da manhã, a voz da minha
tia ecoando no meio de imagens, o tempo galopando de 1964 até 1973 e
as duas figuras misturando-se na minha memória: o jovem Alex tombado
para sempre e o Velho no velório em Manaus.
Pensando
e lembrando até o amanhecer, quando abri todas as janelas para
clarear o fundo da sala. Só então sentei na soleira da porta e abri
o livro roto do velho Graça.
Quem
já não esteve no inferno?
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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