domingo, 26 de novembro de 2017

O Specksynder

No que diz respeito aos oficiais do navio baleeiro, este lugar me parece tão bom quanto qualquer outro para expor certas peculiaridades domésticas da vida de bordo relativas à classe dos oficiais arpoadores, uma classe naturalmente desconhecida em qualquer outra marinha senão a baleeira.
A grande importância atrelada ao trabalho dos arpoadores é demonstrada pelo fato de que, originalmente na antiga Pesca Holandesa de mais de dois séculos atrás, o comando de um navio baleeiro não era exclusivamente concentrado na pessoa que hoje chamamos de capitão, mas dividido entre este e um oficial chamado de Specksynder. Literalmente, a palavra significa Cortador de Gordura; no entanto, seu uso a tornou um equivalente de Arpoador-chefe. Naqueles tempos, a autoridade do capitão era restrita à navegação e à administração geral do navio; ao passo que, na área da pesca de baleias e nas coisas que lhe diziam respeito, o Specksynder, ou Arpoador-chefe, reinava supremo. Na Pesca Britânica na Groenlândia, sob o título corrompido de Specksioneer, este velho oficial Holandês ainda se mantém, mas sua antiga respeitabilidade está tristemente abreviada. Atualmente, não passa de um Arpoador decano; e como tal é apenas um dos subalternos mais inferiores do capitão. Não obstante, como o êxito da viagem depende em grande parte da boa conduta dos arpoadores, e visto que na Pesca Norte-Americana ele não apenas é um oficial importante num bote, mas em certas circunstâncias (como nas vigílias noturnas das zonas baleeiras) o comando do navio também é seu; por isso, a grande máxima política do mar exige que ele viva isolado dos que ficam diante do mastro e que, de algum modo, seja considerado por eles profissionalmente superior; embora sempre socialmente visto como um igual.
Ora, a grande distinção entre o oficial e o marinheiro é a seguinte – o primeiro se aloja na popa, o último na proa. Portanto, nos navios baleeiros, assim como nos navios mercantes, os oficiais têm seu alojamento junto ao do capitão; e por isso, na maior parte dos navios baleeiros norte-americanos, os arpoadores também estão alojados na popa do navio. Isso quer dizer que fazem suas refeições na cabine do capitão e dormem num lugar que tem comunicação indireta com ela.
Apesar da longa duração de uma viagem baleeira ao sul (de longe a mais comprida das viagens que o homem já fez), dos perigos específicos e da comunidade de interesses que prevalece na tripulação, cujos membros, do primeiro ao último, para seus ganhos dependem não de salários fixos, mas de sua sorte comum, somada à sua vigilância, coragem e ao árduo trabalho conjunto; apesar de todas essas coisas tenderem a gerar uma disciplina menos rigorosa do que entre os marinheiros mercantes; ainda assim, não importa que em algumas circunstâncias esses baleeiros vivam primitivamente unidos à maneira de uma antiga família da Mesopotâmia; por tudo isso, as formalidades exteriores do tombadilho são poucas vezes afrouxadas e de forma alguma abolidas. De fato, muitos são os navios de Nantucket em que você encontrará o comandante inspecionando seu tombadilho com uma grandeza portentosa jamais superada em navio militar algum; ou ainda, exigindo demonstrações de reverência tal, como se envergasse a púrpura imperial, e não a mais modesta farda de piloto.
E ainda que dentre todos os homens o soturno capitão do Pequod fosse o menos afeito a esse tipo de superficialidade; e ainda que a única homenagem exigida fosse a obediência irrestrita e imediata; e ainda que não exigisse que marinheiro algum tirasse os sapatos antes de subir ao tombadilho; e embora houvesse ocasiões em que, devido a circunstâncias específicas ligadas a eventos que serão relatados mais adiante, se dirigisse aos marinheiros de forma estranha, às vezes afável, às vezes in terrorem; a verdade era que o Capitão Ahab não negligenciava de modo algum os usos e costumes dominantes do mar.
Tampouco se deixará de perceber que, talvez, por trás desses usos e costumes, tais como eram, ele às vezes se ocultasse; incidentalmente valendo-se deles para outros fins mais pessoais do que aqueles aos quais deviam legitimamente servir. Este tipo de sultanato de seu cérebro, que em outras circunstâncias teria permanecido não-manifesto; por aquelas mesmas formalidades tornou-se uma ditadura irresistível. Por maior que seja a superioridade intelectual de um homem, não lhe é possível assumir o domínio prático e útil de outros homens sem a ajuda de algum tipo de artifício e manobra externa, em si mesmos mesquinhos e indignos. É isso que afasta para sempre os verdadeiros príncipes do Império de Deus dos palanques do mundo; e os faz recusar as mais altas honrarias que esse ar confere a homens que se tornaram famosos mais por causa de sua infinita inferioridade – postos ao lado do oculto punhado de homens escolhidos pelo Divino Inerte – do que devido às indubitáveis qualidades superiores ao nível médio das massas. Tão grande virtude se esconde nessas pequenas coisas, quando uma excessiva superstição política as envolve, que, em certas instâncias régias, mesmo à imbecilidade do idiota se confere autoridade. Mas quando, como no caso do Czar Nicolau, a coroa circular do império geográfico cinge um cérebro imperial; então, os rebanhos plebeus se curvam humilhados perante a tremenda centralização. E o trágico dramaturgo que quisesse representar a indomabilidade mortal com a mais plena nitidez e pura retidão não deveria jamais esquecer esse fato ao qual fiz alusão, incidentalmente tão importante para sua arte.
Mas Ahab, meu Capitão de Nantucket, ainda se move diante de mim com toda sua austeridade e cólera; e, nesse episódio de Reis e Imperadores, não devo ocultar que tenho de me satisfazer com um velho e pobre pescador de baleias como ele; por isso, toda a pompa e circunstância majestática me são negadas. Ó, Ahab! Aquilo que é grandioso em ti deve ser arrancado aos céus, pescado nas profundezas e representado no ar incorpóreo!
Herman Melville, in Moby Dick

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