O
sol apareceu, como no primeiro dia da Criação. E tudo tinha mesmo
ar de primeiro dia da Criação, com o mundo a emergir, hesitante, do
caos. Três dias e três noites a tempestade esmigalhara árvores,
pedras, casas, caminhos, postes, viadutos, veículos, matara, ferira,
enlouquecera. Vistas do alto, as partes esplêndidas da cidade
continuavam esplêndidas, mas entre elas as marcas de destruição
exibiam-se como chagas de gigante. Os homens entreolharam-se. Estavam
salvos. Salvos e ilhados no alto do Corcovado.
A
estrada tinha acabado, o telefone tinha acabado, a energia tinha
acabado, e, por azar, não havia rádio de pilha para pegar notícias.
Decerto, lá embaixo providenciavam a recuperação das estradas, mas
quando se lembrariam deles, pequena fração humana junto da estátua?
Daí, lá tem bar, um bar dispõe de lataria e garrafas para um ano.
Não, um ano é demais, até uma hora é demais para eles que
passaram meia semana isolados e fustigados pelo aguaceiro entre céu
e terra.
Os
mais moços não quiseram esperar, foram abrir caminho a golpes de
imprudência. Mocidade pode mais o impossível do que o possível —
e descer naquelas condições era mesmo coisa de doido. Com certeza
chegaram a salvamento, como acontece aos doidos. Os que ficaram
sentiram inveja e despeito. A turma de trabalhadores não vinha
remover as barreiras caídas. O dia passou. A noite foi inquieta.
Parentes lá embaixo esperavam aflitos, se é que não tinham
morrido.
A
mais bela paisagem do mundo — dizem os cartazes de turismo; eles
também achavam que sim, mas como suportá-la na manhã seguinte, se
a vista aumentava a angústia, pela impossibilidade de alcançar
aqueles sítios, pura miragem?
— Evém
um helicóptero! — gritou alguém, e veio mesmo, mas passou sem
pousar; ia revezar a turma da torre da radiopatrulha, mais adiante. O
pessoal do Cristo que se pegasse com o Cristo, a cuja sombra trabalha
— pensariam talvez as pessoas que, embaixo, cuidavam de tudo.
Dos
dez que ganham a vida na montanha, seis já tinham descido. Os quatro
restantes, enervados, não tinham mais de que conversar. O sol
brilhando, a cidade se refazendo, eles presos ali, prisão sem grade,
à espera de serem lembrados. O pico virou ilha, tudo mais era oceano
sem navio.
Dois
não aguentaram mais; despediram-se como presidiários antes de
tentar fuga. Prometeram levar notícias dos que ficaram: o gerente e
o garçom do bar.
Estes,
por acaso, moram no mesmo subúrbio: Cachambi. Olham sempre na mesma
direção, como se, por absurdo, quisessem distinguir o aceno de mão
longínqua. Isto os reúne mais; desfaz um vínculo e cria outro,
espontâneo. O gerente não é mais um velho patrão, o outro não é
mais empregado. Vivem uma só experiência, fora das leis de
trabalho. E se o garçom tentasse descer? Ainda é forte, pode
tentar. “Você não tem obrigação de me fazer companhia.” Mas
ele não tenta, para não abandonar o outro: “Não iria deixar o
senhor sozinho”. O gerente nunca imaginara ouvir uma coisa dessas.
O próprio garçom ficou espantado depois que a disse. Era pra valer.
Amanhã ou depois serão recolhidos — sabemos nós, não eles.
Tempo não se mede pelo relógio, mas pelo vácuo de comunicação,
pela expectativa sem segurança. E nessa situação, insignificante
para nós, ilimitada para eles, dois homens descobrem-se um ao outro.
Carlos
Drummond de Andrade, in 70 historinhas
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