segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Um malicioso sorriso de satisfação


Montana Slim e eu começamos a percorrer os bares. Eu tinha uns sete dólares, cinco dos quais desperdicei estupidamente naquela noite. Primeiro, circulamos entre todos aqueles turistas fantasiados de cowboy, fazendeiros e executivos de petróleo, pelos bares, pelas calçadas, pelos umbrais, e aí sacudi Slim por uns instantes. Ele perambulava pela rua um pouco aturdido de tanto uísque e de tanta cerveja; era aquele tipo de bêbado cujos olhos ficam vidrados, e em instantes começa a contar histórias íntimas para alguém completamente desconhecido. Entrei num boteco que vendia chili, e a garçonete era mexicana e gostosa. Comi, e logo em seguida escrevi um pequeno bilhete amoroso no verso da conta. O boteco estava às moscas, todos estavam bebendo em algum outro lugar. Eu lhe disse que virasse a conta. Ela leu e riu. Era um pequeno poema a respeito de como eu gostaria que ela viesse passar a noite comigo.
Seria ótimo, chiquito. Mas tenho um encontro com meu namorado.
Não daria para se livrar dele?
Não, não posso — respondeu, entristecida, e eu adorei o jeito como ela falou.
Outra hora qualquer eu apareço — e ela respondeu: — Quando quiser, garoto. — Mesmo assim, fiquei matando o tempo por ali, sorvendo outra xícara de café só para ficar olhando para ela. Seu namorado entrou com ar rabugento, e quis saber a que horas ela largaria o serviço. Ela começou a fazer tudo afobadamente, para cerrar logo as portas. Tive de cair fora. Sorri para ela ao partir. Na rua, o ambiente continuava tão selvagem quanto sempre, com a diferença de que aqueles gordos arrotadores estavam ficando ainda mais bêbados e barulhentos. Até que era engraçado. Havia uns caciques índios vagando por ali, com enormes enfeites na cabeça e um ar solene em rostos enrubescidos pela bebida. Vi Slim cambaleando pelas redondezas e me juntei a ele.
Ele disse: — Acabei de escrever um postal para meu pai, em Montana. Será que você conseguiria encontrar uma caixa postal onde enfiá-lo? — Era uma estranha solicitação; ele me entregou o postal e cambaleou entre as portas de vaivém do saloon. Peguei o cartão, dirigi-me à caixa postal e dei uma olhadela rápida: “Querido pai, quarta-feira estarei Em casa. Tudo bem comigo, e espero que com vocês também. Richard”. Isso me deu uma nova impressão a seu respeito; como ele era afetuoso e cortês com seu velho! Voltei ao bar e reencontrei-o. Arranjamos duas garotas, uma linda jovem loira e uma morena gorda. Elas eram burras e chatas, mas a gente queria ganhá-las mesmo assim. Arrastamos as garotas a um night club insignificante, que já estava fechando, e lá eu gastei nada mais nada menos do que dois dólares em uísque para elas, e cerveja para nós. Eu estava ficando bêbado, e nem ligava. Tudo estava bem. Todos os meus anseios e intenções se dirigiam àquela pequena loira. Queria penetrá-la com toda a minha energia. Eu a abracei, e quis dizer isso a ela. O night club fechou, e nós perambulamos por raquíticas ruas poeirentas. Olhei para o céu, puras e maravilhosas estrelas, ainda cintilavam. As garotas queriam ir até 3 rodoviária, e assim fomos nós todos, só que aparentemente elas pretendiam encontrar um marinheiro qualquer que estava esperando por elas, um primo da gorda, e o marinheiro tinha alguns amigos com ele; eu disse para a loira: — Qual é a sua? — Ela disse que queria ir para casa, no Colorado, bem no limite sul de Cheyenne. — Eu a levo de ônibus — falei.
Não, o ônibus pára na estrada, e eu tenho que caminhar sozinha por aquela pradaria de merda. Passei a tarde inteira olhando para esta bosta, e não estou a fim de caminhar por ela hoje à noite.
Ei, escute, a gente pode curtir uma bela caminhada entre as flores da pradaria.
Não tem flor nenhuma lá – ela respondeu. — Quero mesmo é ir para Nova York. Estou de saco cheio disso aqui. Nunca há lugar algum para ir, a não ser Cheyenne, e em Cheyenne não tem nada para se fazer.
Também não há nada para se fazer em Nova York.
Besteira! — disse ela, franzindo os lábios.
A rodoviária estava abarrotada. Gente de todo tipo esperava os ônibus ou simplesmente estava parada ali; havia vários índios, que observavam tudo com olhares impassíveis. A garota desvencilhou-se de minha conversa fiada e se juntou ao marinheiro e à turma dele. Slim estava cochilando num banco; sentei-me ali. Os pisos das estações rodoviárias são exatamente iguais no país inteiro, sempre recobertos de baganas e catarros, e eles provocam uma melancolia profunda que só mesmo as rodoviárias poderiam possuir. Por uns instantes, não houve diferença entre estar ali ou em Newark, a não ser pela extraordinária imensidão lá fora, que eu tanto amava. Lamentava ter rompido a pureza de toda a minha viagem, sem economizar nem um centavo, desperdiçando o tempo feito um bestalhão enrabichado por aquela garota estúpida, e gastando minha grana toda. Isso me fez ficar furioso. Eu não dormia há muitas horas, cansei de me atormentar e de blasfemar, e fui direto dormir, ajeitando-me num banco com meu saco de lona como travesseiro, e dormindo até as oito horas da manhã ao som de murmúrios oníricos e ruídos distantes da estação, entre centenas de pessoas que passavam.
Acordei com uma tremenda dor de cabeça. Slim tinha se mandado — para Montana, acho. Saí à rua. E ali, no ar azulado, vi ao longe, pela primeira vez, os enormes cumes nevados das montanhas Rochosas. Respirei profundamente. Tinha de chegar a Denver de uma vez por todas. Mas primeiro tomei meu desjejum, bastante modesto: torradas, café e um ovo. O Festival do Velho Oeste prosseguia; havia um rodeio, e a baderna e a agitação estavam para começar outra vez. Deixei tudo para trás. Queria encontrar a rapaziada em Denver. Cruzei uma passarela sobre a estrada de ferro, e cheguei a um monte de barracos onde duas estradas se bifurcavam, sendo que ambas conduziam a Denver. Peguei a que ficava mais próxima das montanhas, assim poderia olhar para elas enquanto seguia meu rumo. Ganhei uma carona instantânea com um moço de Connecticut, que viajava num calhambeque, pintando; era filho de um editor do leste. Ele falava e falava; eu estava enjoado do porre da véspera e da altitude. Em determinado momento, quase tive de pôr a cabeça para fora da janela. Mas, quando ele me largou em Longmont, no Colorado, eu já estava me sentindo bem melhor, e até começava a lhe contar a respeito de minhas viagens. Ele me desejou boa sorte.
Era lindo em Longmont. Sob uma gigantesca árvore velha, via-se um leito de grama verde que pertencia a um posto de gasolina. Perguntei ao servente se podia dormir ali, ele disse “claro que sim”, então estiquei uma camisa de flanela, deitei minha cabeça sobre ela, com um cotovelo por cima, e, por alguns instantes, com um olho a espiar a neve no topo das montanhas Rochosas sob o sol cálido, caí no sono por duas horas deliciosas. O único desconforto foi uma fortuita formiga do Colorado. Aqui estou eu no Colorado!, pensava o tempo inteiro. Maravilha! Estou conseguindo. E, depois de um sono reconfortante repleto de sonhos recobertos por teias de aranha sobre minha vida passada no leste, levantei-me, lavei-me no banheiro dos homens do posto de gasolina e me arranquei em largas passadas, renovado e em plena forma. Comprei um milk shake espesso e saboroso, num bar de beira de estrada, só para jogar algo gelado em meu estômago aquecido e atormentado.
Casualmente, uma gostosíssima garota do Colorado bateu aquele shake para mim; ela era toda sorrisos também; eu me senti gratificado, aquilo me refez dos excessos da noite passada. Disse a mim mesmo: Uau! Denver deve ser ótima. Retornei à estrada calorenta e zarpei num carro novo em folha, dirigido por um jovem executivo de Denver, um cara de uns trinta e cinco anos. Ele ia a cento e vinte por hora. Eu formigava inteiro; contava os minutos e subtraía os quilômetros. Bem em frente, por trás dos trigais esvoaçantes que reluziam sob as neves distantes do Estes, eu finalmente veria Denver. Imaginei-me num bar qualquer da cidade, naquela noite, com a turma inteira; aos olhos deles, eu pareceria misterioso e maltrapilho, como um profeta que cruzasse a terra inteira para trazer a palavra enigmática, e a única palavra que eu teria a dizer era: “Uau!” Aquele cara e eu mantivemos uma longa e ardente conversação a respeito dos nossos respectivos projetos de vida, e, antes que eu pudesse perceber, já estávamos passando pelos mercados que vendem frutas por atacado nos arredores de Denver; viam-se chaminés, fumaça, vias férreas, prédios avermelhados, de tijolos à vista, e os edifícios de concreto do centro da cidade, afastados e cinzentos; ali estava eu em Denver. Ele me deixou na Larimer Street. Eu me arrastei por ali com o maior e o mais malicioso sorriso de satisfação do mundo, perambulando entre velhos vagabundos e cowboys obsoletos da Larimer Street.
Jack Kerouac, in On the road – Pé na estrada

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