quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Quem mata minhas cobras sou eu mesmo


Quando chegou em casa, Manuel encontrou Geminiano na porta, montado na carroça, esperando. Geminiano cumprimentou expansivo, como não fazia havia muito tempo. Disse que Manuel devia estar ficando rico, ou já devia ter ficado, porque não estava mais ligando ao trabalho. Pulou da carroça e pediu licença para cumprimentá-lo de perto.
O que é isso, Gemi? Você parece que viu passarinho verde.
Eu? É. De hora em hora a gente melhora.
Sempre acabou o serviço?
Eu? Acabei a primeira parte. Agora vou começar a segunda.
Lá mesmo?
Sempre.
Cuidei que você estivesse cansado.
Eu? Que nada! Ainda tenho fôlego pra muito mais. Mas primeiro preciso da sua ajuda. Está vendo essas tábuas velhas? O senhor vai me mudar todas elas.
Manuel não gostou da maneira impositiva. Hábito de lidar com os homens da tapera? Alto lá!
Ah, não posso, Gemi. Estou cheio de serviço. Não tenho tempo para pegar remendo.
Geminiano olhou-o espantado. Não contava com a recusa.
Mas é preciso. Os homens estão esperando.
É? Esperar é bom para a saúde.
Não brinque com assunto sério, seu Manuel. A carroça não é mais minha. É deles. Eles mandaram consertar.
Folgo em saber, Gemi, mas não estou mais fazendo consertos. Sinto muito.
Geminiano pensou, alisando o pescoço do Serrote.
Seu Manuel, sempre tive consideração com o senhor, não vou deixar de ter agora. Faz de conta que o serviço ainda é pra mim, e fica tudo entre amigos.
Mas você acabou de dizer que não é.
Eu disse faz de conta. Vejo que o senhor está de má vontade com os homens. O senhor faz o serviço como se fosse pra mim e eles não precisam ficar sabendo desse nosso arranjo.
Não, Gemi. Não gosto de negócio turvo. Por mim você não precisa esconder nada. Pode dizer lá a eles que eu não quis fazer o serviço.
Que esperança! Não é assim não, seu Manuel. Não posso dizer isso. De jeito nenhum não posso.
Então você diz lá o que entender. Eu quis dar uma ideia. Se não serve, você arranja outra. Mas o certo é que eu não vou fazer o serviço.
Geminiano olhou calmo para ele, explicou com paciência:
O senhor não está entendendo, seu Manuel. Eles mandaram a carroça para o senhor consertar, eu não posso chegar lá e dizer que o senhor não vai fazer o serviço. Isso não casa com o sistema deles.
Isso de sistema cada um tem o seu, Gemi. Se o deles é esse que você está dizendo, o meu é aquele que eu já disse. Agora, com a sua licença, vou entrar. Tenho serviço esperando.
Geminiano não desanimou ainda; continuou explicando:
Seu Manuel, pense bem no que está fazendo para não se arrepender mais tarde. O assunto é sério, não cabe teima nem capricho. Acho melhor o senhor ir consertando a carroça. Não custa, é só umas poucas tábuas.
Em vez de se aborrecer, Manuel achou graça na insistência de Geminiano. Oh, homem renitente! Era só o que faltava, uma pessoa trabalhar obrigada. E de que jeito? Com outro segurando a mão dele, guiando nos cortes e golpes?
Gemi, a prosa está boa mas você está muito mandão. Qualquer outro dia conversamos, mas não assunto de conserto — disse Manuel, e cruzou a porta para entrar em casa.
Geminiano saltou na frente dele, segurou-o pelo braço e disse, agora implorando:
Seu Manuel, eu vou falar franco. Nunca tivemos questão até hoje. O que estou pedindo é um favor, não por mim mas pelo senhor mesmo. Não quero ver o senhor sofrendo por causa de uma pirraça. — Olhou furtivamente para os lados e acrescentou em voz baixa: — Aquela gente… o senhor não sabe quem é. Não queira cair na bigorna deles.
Manuel sacudiu o braço para livrar-se do aperto, pôs a mão no ombro de Gemi e disse como quem consola:
Agradeço o aviso, mas gosto de matar minhas cobras eu mesmo. Está vendo minhas ferramentas aí na parede? Estão compradas e pagas, e só trabalham em serviço que eu escolho. Esse é o meu sistema. Não leve a mal, você que falou em sistema. Remendo de carroça não faço nem vivo nem morto.
Geminiano olhou-o com olhos tristes, que tanto podiam ser de pena como de inveja; sacudiu a cabeça devagar, suspirou e disse:
Seu Manuel, quando o senhor estiver no aperto, lembre-se de que eu avisei como amigo. Fiz o que pude, mais não posso fazer. — Deu uns passos para sair, virou-se e completou: — Espero que o senhor seja tão teimoso com eles como foi comigo. Assim não podem me culpar de relaxo no cumprimento de ordem.
Pode deixar que eu me arranjo — disse Manuel, e entrou sem mais cerimônia.
Geminiano subiu vagaroso na carroça, sentou-se e ficou pensando. Os olhos parados na garupa do Serrote nem piscavam. Minutos depois Manuel chegou à janela para olhar o tempo, Geminiano estava na mesma posição. Vendo-o ali sem rumo e sem ação, Manuel pensou no Geminiano antigo tão senhor de si, correto, respeitador dos direitos alheios. Que força teria conseguido transformar aquele homem inteiriço nesse inútil feixe de medos? Olhando para cima, para baixo, para as casas em frente, Manuel sentiu que não estava vendo o largo familiar mas um trecho de outra cidade, remota, inóspita, maligna. Manarairema estaria se acabando, se perdendo para sempre? Se estava, valeria a pena continuar vivendo ali? Não seria melhor vender a casa, juntar as ferramentas num caixote e sair estrada afora, trabalhando de fazenda em fazenda nos serviços que aparecessem?
Enquanto Manuel pensava, Geminiano mexeu na rédea, propositalmente ou por distração. O Serrote acordou e saiu arrastando a carroça em passos lerdos, como quem cumpre uma condenação sem prazo, sem esperança de livramento. Pensando bem, o Serrote não era o mais infeliz; ele pelo menos sabia, ou parecia saber; mas as pessoas?
José J. Veiga, in A hora dos ruminantes

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