quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Outro fragmento apócrifo

Um dos discípulos do mestre queria falar a sós com ele, mas não se atrevia. O mestre disse:
Diga-me que pesadelo te oprime.
O discípulo replicou:
Me falta valor.
O mestre disse:
Eu te dou o valor.
A história é muito antiga, mas urna tradição, que bem pode não ser apócrifa, conservou as palavras que esses homens disseram, nos limites do deserto e do amanhecer.
Disse o discípulo:
Cometi há três anos um grande pecado. Não o sabem os outros mas eu o sei, e não posso olhar sem horror minha mão direita.
Disse o mestre:
Todos os homens pecaram. Não é dos homens não pecar. O que olhar um homem com ódio já lhe terá dado a morte em seu coração.
Disse o discípulo:
Há três anos, na Samaria, eu matei um homem.
O mestre ficou em silêncio, mas seu rosto se alterou e o discípulo pôde temer sua ira. Disse finalmente:
Há dezenove anos, na Samaria, eu engendrei um homem. Já te arrependeste do que fizeste.
Disse o discípulo:
É isso. Minhas noites são de prece e de pranto. Quero que tu me dês teu perdão.
Disse o mestre:
Ninguém pode perdoar, nem sequer o Senhor. Se a um homem o julgaram por seus atos, não há quem fosse merecedor do inferno e do céu. Estás certo de ser ainda aquele homem que deu morte a seu irmão?
Disse o discípulo:
Já não entendo a ira que me fez desnudar o aço.
Disse o mestre:
Costumo falar em parábolas para que a verdade grave-se nas almas, mas falarei contigo como um pai fala com seu filho. Eu não sou aquele homem que pecou; tu não és aquele assassino e não há razão alguma para que continues sendo seu escravo. Te incumbem os deveres de todo homem: ser justo e ser feliz. Tu mesmo tens que te salvar. Se algo sobrou de tua culpa, eu a carregarei.
O restante daquele diálogo se perdeu.
Jorge Luis Borges, in Os conjurados

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