sexta-feira, 20 de outubro de 2017

A aventura de um bandido

O importante era não ser preso logo. Gim se espremeu contra um vão de porta, os policiais pareciam correr em frente, mas de repente ouviu os passos retornarem, darem a volta pelo beco. Pulou fora rápido, em saltos leves.
Para ou a gente atira, Gim!
Está bom, vamos ver, atirem!”, pensava ele, e já estava fora do alcance dos tiros, a grandes passadas na beirinha dos degraus de pedra, despencando pelas vielas tortas da cidade velha. Acima da fonte saltou a balaustrada da rampa, e então ficou embaixo da arcada que amplificava o rumor dos passos.
Todo o circuito que lhe vinha à mente era para ser descartado: Lola não, Nilde não, Renée não. Dentro de pouco tempo eles estariam em toda a parte, batendo nas portas. Era uma noite suave, com nuvens tão claras que poderiam estar ali de dia, por cima das arcadas altas sobre as vielas.
Ao desembocar nas ruas largas da cidade nova, Mario Albanesi, dito Gim Bolero, freou um pouco seu impulso, enfiou por trás das orelhas os fiapos de cabelos que lhe tinham caído nas têmporas. Não se ouvia um passo. Andando decidido e discreto, chegou ao portão da casa da Armanda, subiu. A essa hora ela com certeza não tinha mais ninguém e estava dormindo. Gim bateu com força.
Quem está aí? — falou pouco depois uma irritada voz de homem. — A esta hora a gente está dormindo… — Era Lilin.
Abre um instante, Armanda, sou eu, o Gim — respondeu ele, não forte, mas decidido.
Armanda se vira na cama:
Hum, Gim, querido, já vou abrir para você, hum, o Gim está aí. — Segura o cordão na cabeceira da cama que faz a porta abrir, e puxa.
A porta cede, dócil. Gim vai pelo corredor, com as mãos nos bolsos, entra no quarto. Na grande cama de Armanda o corpo dela, pelos altos relevos do lençol, parece estar ocupando tudo. No travesseiro, o rosto sem pintura, embaixo da franjinha negra, se entrega em bolsas e rugas. Mais para lá, como que numa prega do cobertor num lado da cama, está deitado seu marido Lilin, que parece querer afundar no travesseiro a cara miúda e azulada para agarrar de novo o sono interrompido.
Lilin tem de esperar que o último cliente vá embora para poder se meter na cama e digerir o sono com que se abastece em seus preguiçosos dias. Não há nada no mundo que Lilin saiba ou queira fazer; é só ter o que fumar e fica sossegado. Armanda não pode dizer que Lilin lhe saia caro, a não ser pelos pacotes de fumo que queima em um dia. Sai com seu pacote de manhã, senta no sapateiro, no ferro-velho, no consertador de chaminé, enrola um papelzinho depois do outro e fuma, sentado naqueles banquinhos de oficina, as mãos de ladrão, lisas e longas, nos joelhos, o olhar mortiço, ouvindo tudo como um espião, quase nunca abrindo a boca durante as conversas, senão por frases breves e inesperados sorrisos tortos e amarelos. À noite, depois que a última oficina fecha, vai até a cantina e esvazia um litro, e queima os cigarros que restam, até que arriem as portas de aço. Sai, a mulher ainda está rondando pela avenida com a roupa caprichada, os pés inchados nos sapatos apertados. Lilin desponta numa esquina, manda-lhe um assobio baixinho, algumas frases ininteligíveis, para lhe dizer que já é tarde, venha para a cama. Ela, sem olhar para ele, no meio-fio da calçada como numa ribalta, o seio apertado na armadura de elástico e arame, o corpo de velha naquela roupa de garota, com um nervoso mexer da bolsa entre as mãos, um desenhar de círculos com os saltos dos sapatos no calçamento, um cantarolar improvisado, responde-lhe que não, que ainda tem gente passando, que ele vá embora e espere. É a corte que eles se fazem, todas as noites.
E então, Gim? — fala Armanda arregalando os olhos.
Ele já achou cigarros em cima da cômoda e acende.
Preciso passar a noite aqui, hoje.
E já vai tirando o paletó, afrouxando a gravata.
Está bom, Gim, vem para a cama. Você vai para o sofá, Lilin, vamos, Lilin meu bem, sai fora, deixa o Gim deitar.
Lilin fica um pouco ali como uma pedra, depois se levanta, soltando um lamento sem palavras articuladas, sai da cama, pega seu travesseiro, um cobertor, o fumo da mesinha de cabeceira, os papéis de enrolar, os fósforos, o cinzeiro.
Vai, Lilin meu bem, vai.
Ele se encaminha pequeno e curvado debaixo daquela carga para o sofá do corredor.
Gim tira a roupa fumando, pendura as calças bem dobradas, arruma o casaco numa cadeira junto da cabeceira, leva os cigarros da cômoda para a mesa de cabeceira, os fósforos, um cinzeiro, entra na cama. Armanda apaga a luz do abajur e suspira. Gim fuma. Lilin dorme no corredor. Armanda se vira. Gim apaga o cigarro no cinzeiro. Batem na porta.
Com uma das mãos Gim já está tocando o revólver no bolso do paletó, com a outra segura Armanda por um cotovelo, para que ela preste atenção. O braço de Armanda é gordo e macio; ficam parados assim um pouco.
Pergunta quem é, Lilin — fala Armanda, baixo.
Lilin bufa no corredor.
Quem está aí? — pergunta com maus modos.
Ei, Armanda, sou eu, Angelo.
Que Angelo? — ela fala.
Angelo, o sargento, Armanda, eu estava passando por aqui, pensei em subir… Pode abrir um minuto?
Gim já saiu da cama e faz sinal para ficarem quietos. Abre uma porta, olha o toalete, pega a cadeira com suas roupas e carrega com ele.
Ninguém me viu. Trata dele rápido — diz baixinho e se tranca no toalete.
Vem, Lilin, meu bem, volta para a cama, vamos, Lilin. — Armanda, deitada, dirige os deslocamentos.
Então, Armanda, quer me fazer esperar? — diz o outro da porta.
Com calma Lilin recolhe cobertor, travesseiro, fumo, fósforos, papéis de enrolar, cinzeiro, volta para a cama, enfia-se nela e puxa o lençol para cima dos olhos. Armanda agarra o cordão e abre a porta.
Entra Soddu, com seu aspecto amarfanhado de velho agente à paisana, os bigodinhos grisalhos no rosto gordo.
Você passeia até tarde, sargento — disse Armanda.
Oh, estava dando uma voltinha — disse Soddu —, e tive a ideia de vir visitar você.
O que é que você queria?
Soddu estava à cabeceira da cama, enxugava o rosto suado no lenço.
Nada, só uma visitinha. Novidades?
Novidades de quê?
Por acaso você não viu o Albanesi?
Gim? O que é que ele aprontou?
Nada. Esses rapazes… A gente queria perguntar uma coisa a ele. Você o viu?
Faz três dias.
Não. Agora.
Faz duas horas que estou dormindo, sargento. Mas por que você vem na minha casa? Vai no pessoal dele: a Rosy, a Nilde, a Lola…
Não adianta, quando faz uma besteira vai para longe.
Aqui não esteve. Fica para outra vez, sargento.
Pois é, Armanda, estava só perguntando, quero dizer que gostei de ter visitado você.
Boa noite, sargento.
Boa noite.
Soddu se voltou, mas nada de ir embora.
Eu estava pensando, já é madrugada e não vou mais andar por aí. Voltar para aquela cama de campanha não tenho vontade. Já que estou aqui, até que podia ir ficando, hein, Armanda?
Sargento, você continua sendo gente fina, mas a essa hora, para dizer a verdade, não estou mais recebendo, esta é que é a verdade, sargento, cada um tem seu horário.
Armanda, um amigo como eu. — Soddu já estava tirando o paletó, a camisa.
Você é gente fina, sargento; e se ficasse para amanhã de noite?
Soddu continuava a se despir:
É para fazer a manhã chegar, entende, Armanda? Então: dá um lugar para mim.
Quer dizer que Lilin vai para o sofá; levanta, Lilin, vamos, Lilin meu bem, vai indo.
Lilin mexeu as longas mãos no ar, procurou o fumo na mesinha, ergueu-se gemendo, saiu da cama quase sem abrir os olhos, pegou o travesseiro, o cobertor, os papéis de enrolar, os fósforos. “Vai, Lilin meu bem”, foi-se, arrastando o cobertor pelo corredor. E Soddu já se metia entre os lençóis.
A essa altura Gim olhava pela vidraça o céu ficando verde. Havia esquecido os cigarros em cima da mesinha de cabeceira, isso é que era chato. E agora aquele outro se metia na cama e ele tinha que ficar trancado até de manhã entre aquele bidê e aquelas caixas de talco sem poder fumar. Vestira-se em silêncio, penteara-se com capricho olhando-se no espelho da pia, do outro lado da muralha de perfumes e colírios e peras de borracha e remédios e inseticidas que guarneciam a prateleira. Leu algumas etiquetas à luz da janela, roubou uma caixa de pastilhas, depois continuou a inspeção do toalete. Não havia muitas descobertas a fazer: roupas numa bacia, outras estendidas. Começou a experimentar as torneiras do bidê; a água jorrou ruidosamente. E se Soddu ouvisse? Ao diabo Soddu e o xadrez. Gim estava entediado, perfumou o paletó com água-de-colônia, passou brilhantina. Bem, se não o prendiam hoje, prendiam amanhã, mas não havia flagrante, se tudo desse certo era logo solto. Esperar ali ainda duas, três horas sem cigarros, naquela toca… por que precisava fazer isso? Bem, seria liberado logo. Abriu um armário, rangeu. Ao diabo o armário e todo o resto. Dentro estavam pendurados vestidos de Armanda. Gim pôs seu revólver no bolso de um casaco de pele. “Depois venho buscar”, pensou, “isso daqui ela não vai usar até o inverno.” Tirou para fora a mão branca de naftalina. “Melhor: a traça não rói”, riu. Foi novamente lavar as mãos, e como as toalhas de Armanda lhe davam nojo, se enxugou num casaco do armário.

Soddu, deitado, tinha ouvido barulho daquele lado. Pousou uma das mãos em Armanda.
Quem está aí?
Ela se voltou para ele, pôs-lhe um braço grande e mole em torno da cabeça:
Nada… Quem havia de ser…
Soddu não queria se soltar, embora ouvisse movimento e perguntasse, como que brincando:
— …Quem está aí, hein?… hein, quem está aí?
Gim abriu a porta.
Vamos, sargento, não se faça de bobo, prenda-me.
Soddu esticou a mão para o revólver no paletó pendurado, mas sem se desencostar de Armanda.
Quem está aí?
Gim Bolero.
Mãos ao alto.
Estou desarmado, sargento, não banque o durão. Estou me entregando.
Estava de pé à cabeceira da cama, com o paletó nos ombros e as mãos meio erguidas.
Oh, Gim — murmurou Armanda.
Daqui a uns dias volto para ver você, Anda — falou Gim.
Soddu se levantava reclamando, enfiava as calças.
Maldito serviço… Nunca se pode ficar sossegado…
Gim pegou os cigarros da mesinha de cabeceira, acendeu, pôs o maço no bolso.
Quero fumar, Gim — disse Armanda, e se esticou levantando o peito mole.
Gim lhe pôs um cigarro na boca, acendeu-o, ajudou Soddu a vestir o paletó.
Vamos embora, sargento.
Quer dizer que fica para outra vez, Armanda — falou Soddu.
Até logo, Angelo — disse ela.
Até logo, hein, Armanda — disse de novo Soddu.
Tchau, Gim.
Foram-se. No corredor Lilin dormia, agarrado na borda do sofá acabado; nem se mexeu.
Armanda fumava sentada na cama grande; apagou o abajur porque uma luz cinzenta já estava entrando pelo quarto.
Lilin — chamou. — Vem, Lilin, vem para a cama, anda, Lilin meu bem, vem.
Lilin já apanhava o travesseiro, o cinzeiro.
Italo Calvino, in Os amores difíceis

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