terça-feira, 19 de setembro de 2017

Um dia eu conto

Choveu a noite anterior e Sidónio vem, pela calada do dia, canguruando pelas ruas. Saltita para rodear os charcos, no inglório esforço de poupar os sapatos. Contorna o mercado e vai deixando para trás a pensão onde se alojara desde que chegara a Vila Cacimba.
Encontra Dona Munda no pátio traseiro da casa, estendendo a roupa. O médico vai balançando, em rídicula dança, tentando escapar dos lençóis golpeados pelo vento.
Acha que ainda vai chover, Doutor?
Sidónio olha para cima, incompetente para tanto céu. Aquelas nuvens não são as suas, e mesmo que fossem as de Lisboa, ele não saberia ler nelas nenhuma previsão meteorológica. Não, ele nunca fora aquilo que na Vila se chama “um coleccionador de nuvens”.
Sempre que estendo lençóis — confidencia Munda — o fulano me espreita da janela. Coitado, ele pensa que preparo o leito da nossa nova noite de núpcias…
E por que não?
Nunca.
Porquê?
São razões minhas.
Mas a senhora ainda o ama. Vê-se bem que ainda o ama.
O amor não é chamado.
Pense bem no assunto, Dona Munda.
Quero que ele morra. Depois de Bartolomeu morrer, eu dormirei com ele todas as noites.
O médico vai seguindo a mulher por entre os esvoaçantes lençóis, como num jogo de cabra-cega.
A senhora tem que me dizer: porquê tanto ódio?
Ódio? Ódio seria sentimento demais para ele.
Por que pretende matar o seu marido? Que mal ele lhe fez?
Não é tanto o mal que fez: é o que ele vai fazer.
Bartolomeu não é suficientemente medroso para ser violento. Por que motivo fermentaria vinagres contra a própria esposa?
Bartolomeu não lhe fará mal.
Eu pergunto, então: por que motivo ele me ameaça todos os dias?
Mundinha deixa escorregar a bacia da roupa ao longo do ventre. Esfrega o rosto com o avental para secar o suor.
Pois eu vou-lhe dizer: esse fulano ameaça divulgar pelo bairro que eu sou uma feiticeira.
O destino das mulheres é serem culpadas. A idade torna-as ainda mais donas de perigosos saberes. Não é preciso prova. Basta que recaia sobre elas a acusação de feitiçaria. A justiça é sumária, sem juízes, sem juízos. O veredicto está facilitado: as mulheres já foram julgadas antes de haver tribunal.
A mais recente obra de feitiçaria de Munda poderia ser, por exemplo, a praga que recaiu sobre os soldados enlouquecidos. Mais do que outros exércitos, esses homens haviam, durante a recente guerra civil, desafiado poderes de natureza divina. Os tresandarilhos estavam pagando o preço dessa transgressão. Tudo por causa dos secretos poderes de Munda.
Sabe o que aconteceu a uma viúva que morava aqui ao lado? Acusada de bruxaria, foi apedrejada e morta.
Assassinada por mãos anônimas, legitimadas por receios milenares. Não muito diferente, afinal, da tentativa que ela buscava para matar o marido: um veneno disfarçado de remédio. A malograda vizinha enviuvara por completo. Munda era, apenas, a semiviúva. Os seus poderes esperavam pela morte do marido para se revelarem por inteiro.
Agora, Doutor, vá para dentro. Sossegue o fulano. Ele deve estar espreitando, nervoso de nos ver falando.
Eu vou, então.
E diga-lhe, já agora, que esta roupa não vem dos soldados. É roupa limpa, mais limpa que aquela que ele suja todos os dias.
O estrangeiro retrocede sem se virar, observando Munda aparecer e desaparecer entre os golpes de roupa branca. Acaba de abrir a porta que dá para o pátio, quando a mulher o faz parar:
Bartolomeu me disse que o senhor pensa visitar os lados do velho cemitério… Por favor, não vá.
O quartel fica para aqueles lados, eu tenho que ir lá, como médico sou obrigado…
Não vá, Doutor, eu lhe peço. Jura que não vai.
De qualquer maneira, terei que esperar que a chuva passe.
Não vá! Ainda fica contagiado pelos maus espíritos.
Vou pensar no seu conselho. Agora tenho é que ir ter com o meu doente predileto. Depois falamos, Dona Munda.
Sidónio Rosa entra na cozinha, sentindo que o olhar de Munda o segue até à obscuridade do ventre da casa. As cortinas estão fechadas, como sempre. Suspenso sobre um banco alto, o majestoso feto secou. Há tempo que morreu mas ninguém o deita fora. “Há-de renascer”, defende Munda. Sabida e consentida ilusão: a planta nunca mais viverá.
No fundo do corredor, a porta do quarto se abre, mesmo antes que o médico peça licença, e Bartolomeu dispara a pergunta:
Falavam de quê, vocês os dois?
Assim, sem bons-dias, nem saudações. As pálpebras tremem-lhe como folhas na ventania. A doença lhe minguara o rosto e fizera crescer os olhos a ponto de não poderem ser contemplados. A regra humana é: o corpo todo envelhece, menos os olhos. Em Bartolomeu, até o olhar o tempo embaciara.
Feiticeira, sim, é isso mesmo que ela é — proclama o doente.
Não diga isso, é perigoso…
Perigosa é ela mesmo.
Bastava encostar-se numa única lembrança para fazer prova: certa vez ele lhe oferecera uma flor, um lírio selvagem de grandes pétalas brancas. Colocada em jarra, a flor parecia iluminar a sala.
Cheira a carne, essa flor.
Foi o agradecer dela. Apenas isso, sem pitada de gratidão. No dia seguinte, a flor se havia convertido numa mão humana. A mulher confirmou o presságio:
Eu disse que não colhesse flores naquele campo?
Que mais tem esse campo?
Esse campo não podia dar flores. Esse campo foi um cemitério dos soldados alemães, é um lugar maldito.
Maldito porquê? Não foi ali que o seu avô alemão, esse muito transacto, foi sepultado?
Bartolomeu hesitou: deitava ao lixo a flor, aliás, a mão? Sem coragem para fazer, nem força para não fazer, acabou por não se aproximar da jarra. Não imaginava quanto se iria arrepender da sua passividade. Na manhã seguinte, a mão pingava sangue e, em vez de água, um líquido rosado preenchia o bojo transparente do vaso. Dona Munda advertiu:
Não tarda que daqui nasça um corpo inteiro.
Neste ponto do relato, o velho Bartolomeu cala-se, subitamente alheado de tudo.
E o que aconteceu à mão? — inquire o médico.
Que mão?
A mão que virou flor, essa história que me estava a contar.
Suspenso no vácuo, Bartolomeu Sozinho enfrenta o médico nos olhos e murmura:
Um dia eu conto. Neste momento estou muito cansado.
Só nós vemos a flor, em si mesma. Mas essa é uma visão ilusória: a flor é a planta toda inteira. A flor existe na fragilidade do caule, estende-se pelas profundezas da raiz; a flor é a terra em redor, é a água que ascende em seiva. Arrancar a flor do cemitério é rasgar a terra onde os mortos fazem morada. Tinha sido isso que sucedera: com as pétalas veio areia das campas, a sala tinha sido conspurcada, a casa amaldiçoada. Mas nada disso o mecânico relembrou. Ele estava ausente, arrependido de ter chamado o assunto.
Um dia conto, agora dói-me muito a alma.
Então por que não se deita? Vai ver que não tarda a dormir com os anjos.
Com quem?
Com os anjos, é uma forma de expressão.
Eu precisava era de uns comprimidos para me ajudar a dormir.
Vai ver que, esta noite, dorme como um santo.
Como quem?
É uma outra forma de expressão.
Sabe uma coisa? Sinto que os meus fígados estão a regressar à barriga. E não é uma forma de expressão.
É bom sinal, os fígados querem-se é na barriga.
O medicamento que me deu o mês passado está agora a fazer efeito.
Sidónio já nem se recorda da receita. Disfarça para não contrariar a aura de omnipotência que lhe cabe como médico.
Ainda bem, ainda bem.
Não me pode receitar mais?
Um vago “claro, claro” assegura que não haja mais assunto. Já se erguendo para as despedidas, ocorre ao médico um motivo para se demorar um pouco mais. Adia o regresso à pensão, com medo de marinar na solitária angústia de quem não sabe esperar.
Ah, é verdade, então eu hoje não tenho direito a um sonho?
A idade enevoou a cabeça de Bartolomeu. O homem não se lembra dos sonhos recentes. Por isso, narra apenas os velhos sonhos. Alguns, como ele diz, mais velhos que ele próprio.
Sente-se, Doutor, que eu tenho aqui um sonho, este sonho é muitíssimo bom, primeira qualidade. Mas, já sabe, depois do sonho, recebo uma qualquer coisita.
Está combinado.
Um cigarrito?
Olhos de menino, o português ganha assento na esquina da cama, mãos pousadas sobre os joelhos, enquanto o velho vai narrando:
Eu fiz este sonho na noite de… deixe-me ver… foi exatamente na noite de cinco de Fevereiro de 1989… ou, espere… talvez fosse a noite anterior… bom, se não era cinco era quatro.
Deixe a noite, Bartolomeu, o que importa é o sonho.
O médico estranha a sua própria ansiedade. Naquele lugar sem outra evasão, o relato dos sonhos de Bartolomeu era uma espécie de matinée de cinema. O doente desenrola a voz numa poalha luminosa e o português vai-se lembrando da sua cidade, dos rumores confusos provenientes das ruas atafulhadas de carros e gentes. E recorda Deolinda, o encontro fugaz e fabuloso, sob o fundo de luz branca de Lisboa.
Quando Sidónio volta a dar conta do tempo, já Bartolomeu desnovela: “… chovia aquela noite…”.
Chovia no sonho?
Oh, Doutor, o senhor sofre mesmo de poesias: então chove nos sonhos?
Eu, poesias?
Não é de agora. O senhor já anda poetando há muito tempo. Por exemplo, quando o senhor me aconselha para eu cortar nas bebidas…
Acha que isso é poesia?
Então não é? Cortar-se na bebida? A gente pode cortar nas árvores, cortar na roupa, cortar sei lá onde, mas diga lá, Doutor, que faca corta um líquido? Só a faca da poesia.
Você é que anda muito inspirado nestes dias, meu caro Bartolomeu.
Ah, é verdade! Há ainda mais outra: o senhor diz que beber me faz gota. Sabendo os litros que bebo, Doutor, é preciso muita poesia para falar em gota…
Que também ele, Bartolomeu Sozinho, fora dado a poesias. E pela centésima vez reabre a gaveta para reler num bloco de notas algo que escrevera sobre tempos e pensamentos. Avança para o centro do aposento e faz de conta que vai lendo um invisível manuscrito: “Aos 10 anos todos nos dizem que somos espertos, mas que nos faltam ideias próprias. Aos 20 anos dizem que somos muito espertos, mas que não venhamos com ideias. Aos 30 anos pensamos que ninguém mais tem ideias. Aos 40 achamos que as ideias dos outros são todas nossas. Aos 50 pensamos com suficiente sabedoria para já não ter ideias. Aos 60 ainda temos ideias mas esquecemos do que estávamos a pensar. Aos 70 só pensar já nos faz dormir. Aos 80 só pensamos quando dormimos”. A mão tomba-lhe num inesperado abatimento e Bartolomeu sacode a cabeça como que surpreso pela sua própria criação.
Munda diz que isto não é da minha autoria. Mas eu escrevi isto a bordo do Infante D. Henrique. Eu lá também sofri de poesia.
O português contempla o velho com comiseração. A inexistente folha de papel que lhe pende do braço pesa mais do que ele pode suportar. E ele mesmo, Sidónio Rosa, se sente subitamente envelhecido. A idade é uma repentina doença: surge quando menos se espera, uma simples desilusão, um desacato com a esperança. Somos donos do Tempo apenas quando o Tempo se esquece de nós.
Você devia sair, apanhar sol. Qualquer dia, você está da minha cor.
O senhor não tem cor, Doutor. As pessoas não têm cores. Ou têm cores que não têm nome.
Mia Couto, in Venenos de Deus, remédios do Diabo

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