O
nome dele era Ramsés Terceiro Gonçalves de Souza, mas quando o povo
chamava “Zé”, ele vinha na hora. É que lá em São Miguel dos
Milagres não havia quem decorasse nome tão qualificado, “Ramsés
de quê, menino?”.
Cresceu
subindo no coqueiro e escutando conversa de turista: isso aqui sim é
o paraíso. Achava uma grande besteira. Qualquer lugar é o paraíso
com essa lourinha ao lado, moço, me desculpe.
Parou
de estudar na quinta, ou foi na sexta, mesmo assim ainda lembrava o
nome das capitais de cada estado brasileiro, de Mato Grosso do Sul
inclusive.
Um
belo dia irritou-se, saiu de São Miguel e foi pra Maceió, ele mais
seu primo Neílson. Desse, nunca mais ouviu falar, se não morreu,
esqueceu-se dele. Vai ver foi isso.
O
problema de Maceió é que lá era grande mas era pequeno, portanto
veio morar no Rio de Janeiro.
Foi
em 1994, não havia de esquecer, no dia em que o Brasil ganhou o
título. O italiano lá errou o gol, ele tomou mais uma, comprou a
passagem e quando acordou já estava naquele Itapemirim amarelo
assim, “Maceió – Rio de Janeiro”.
No
que chegou, ligou logo para a mãe, “adivinha onde é que eu tou?”,
ela não havia de adivinhar era nunca. “Só não me diga que é no
manicômio”, ô mulher pessimista, dona Maria do Socorro.
Arranjou
um bico aqui, outro ali, acabou ajudante de pedreiro num prédio
enorme de tão grande, emprego certo que durou vários meses. De lá
pra cá não parou mais. Foi porteiro, eletricista, camelô, ladrão
de carro, motoboy, evangélico e balconista de loja, só não lembra
em que ordem exatamente. Mandava dinheiro para casa, quando dava, e
ainda conseguiu juntar novecentos e cinquenta.
Quando
ia completar vinte e nove anos, tempos atrás, resolveu passar o
aniversário em casa. Era saudade da família. Foi pra São Miguel
sem avisar, mas quem levou o susto foi ele.
Descobriu
que não tinha vinte e nove, tinha trinta e quatro, e que seu
aniversário não era aquele dia.
Dona
Socorro contou tudinho com a maior sinceridade. Esqueceu de registrar
o menino, passaram-se anos, mais cinco nasceram, e ela acabou
perdendo a lembrança do dia exato do seu nascimento.
— Acho
que foi lá pro fim do mês, só não me lembro de qual mês —
disse. — Se não me engano, você é filho de Seu Tabosa da venda,
e como eu fiquei com ele por três anos, de 64 a 67, portanto você
nasceu em 65.
— Em
70 não era melhor não, mãe? — Pelo menos era o ano da Copa, mas,
como dona Socorro já tinha tomado oito cervejas, não adiantava
perguntar mais nada. Conformou-se.
Desde
então procura seu horóscopo em todos os signos e aquele que parecer
mais, ele acredita. Muitas vezes dá Sagitário, geralmente. No dia
em que leu “clima propício para o amor”, conheceu uma moreninha
na Central-Rodoviária que despertou seu interesse, parece até
mentira.
Montaram
casa, compraram colchão, mesa, cadeira, e até almoço ela fazia.
Era amor pra duzentos anos, ele dizia. Engano seu. Oito meses depois
ela se foi.
Rodou
foi tudo procurando a peste, de casa em casa, de bar em bar, não é
que ela já estava com outro? Encontrou os dois na parada de ônibus.
Não
tinha a intenção de agredir ninguém, o miserável é que veio pra
cima dele.
Fugiu
com a ideia concentrada apenas em não ficar louco, coisa que se
tornava cada vez mais difícil com aquele inferno na lembrança, a
cabeça do miserável na pedra, o sangue correndo e uma velha
gritando: “Meu Pai, Nosso Senhor!”. Pra que tanta gritaria?
Esse
negócio de complexo de culpa é complicado mesmo, realmente. Ela é
que arranjou outro, o outro é que partiu pra cima dele, e quem se
arrependeu foi ele próprio, vê se pode, porque o tal do miserável
ficou um pouco abaixo do juízo depois de todo o acontecido.
Desse
dia pra cá não encontrou mais nenhum dos dois, graças a Deus.
Parece que depois ela conheceu um gringo e hoje está pros lados da
Alemanha, ou coisa parecida, isso é problema lá dela.
Nunca
mais ligou pra mãe, nem arrumou emprego certo, nem quis saber de
mulher fixa. Em compensação passou a comemorar seu aniversário
todos os dias do ano, de segunda a domingo.
Tomava
conta de um carro aqui, arranjava uma coisa ali, vendia lá, deixou o
cabelo crescer, voltou a fumar e a beber, tinha um batimento cardíaco
triste, até que deu pra conversar com cachorro vira-lata, conversa
besta. Não é que o infeliz do cachorro era tão sem esperança que
chegou a lhe convencer que a vida não prestava?
Atualmente,
Zé tem a impressão de que está com trinta e sete anos completos.
Desde abril está no manicômio. Toda noite reza pra São Miguel dos
Milagres. Está só esperando.
Quando
fala que seu nome é Ramsés Terceiro, comentam que ele é doido.
Adriana
Falcão, in O doido da garrafa
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