terça-feira, 12 de setembro de 2017

O arroto de Dona Elisa

Íamos todos ver e ouvir Dona Elisa arrotar. Era aos sábados, pela tardinha. A casa de Elisa ficava onde o casario deixa de ser bairro. Depois dali era a estrada, o longe, o mundo. Se dizia que o universo começara nas traseiras da casa da matrona. A prova se manifestava na pedra do pátio — uma pegada. Era de pé humano mas bordada de fabulosas versões. O dono da pegada era o mais antigo, esse que caminhou para todos lados e continua marchando dentro de nós. Por isso, nos benzíamos quando aflorávamos o pátio de Elisa.
Cada sábado se cumpria o ritual em casa da Dona. Almoço longo, sempre de igual cardápio: caril de raia, empapado em mandioca e farinha de milho. Mantimento pesado, de enfartar quartel. Dava se lhe aquela imensa refeição para ela se entafulhar. E depois se retirava vantagem das flatulências de Dona Elisa. Quem desejasse assistir que pagasse. Que se podia querer? A miséria dá a chávena, a necessidade põe a colher.
Cobravam os sobrinhos à entrada: não podia ser em papel. Tudo em moeda. Um sobrinho à porta, de olhos fechados, estava interditado de olhar os pagamentos. Conferia pelo som, tintilando os dinheirinhos na concha fechada das mãos. Outro moço, ao lado, ordenava:
Entra. E não esqueça de benzer.
Dona Elisa lá estava no meio do quintal, sentada em sua imensidão. Parecia em transe, meio adormecida, olhos semicerrados, toda ela se crocodilando na sombra. A boca lhe descaía, tivesse perdido o tino na maxila. A dona estava, dizia se, preparando o momento. Suas entranhas fermentavam, sua alma flutuava além do imenso corpo. Nós nos sentávamos em volta. Solicitava se o privado e gentil silêncio, contribuição do estimado público.
E ali ficávamos, em respeitosa espera. Aguardávamos que irrompesse dela o poderosíssimo arroto, esse que se dizia vir não dela mas das entranhas do mundo.
São gases das profundezas — se garantia.
Eu já havia assistido, certa vez, àquele espetáculo. E era de inesquecer. Aquilo era erupção provinda dos magmas, um vulcão que se adensava, como comboio que vem aflorando das vísceras do próprio planeta. Por um instante se acreditava no final total, o arpocalipse.
Desta vez, não fui só. Comigo levei o estrangeiro para assistir ao fenômeno. Ia eu envergonhado, conscrito. Ser generoso é isso, de tão fácil: dar se o que os outros nem chegam a pedir. Pois, o estranho homem chegara à vila munido de credenciais. Não vinha estudar plantas, ervas ou bichezas. Vinha nos estudar a nós, gente useira em usos e acostumada a costumes. Ele ouvira falar de Dona Elisa e seus poderes. E doutor que era trazia os engenhos que capturam os momentos: fotografia, gravação.
Já no pátio, depois de benzido, o estrangeiro se assentou como nós, calça na areia, caneta e papéis no colo. Receoso, ainda me perguntou se podia fotografar.
É melhor não — sugeri.
Mas o fulano ia fotografar o quê? Um arroto? E mesmo o botão do gravador lhe ia eu pedir que não usasse quando fomos interrompidos pelo anunciar de um súbito adiamento.
Mamã Elisa está incomodada.
Ainda a vi passar, amparada. Por um momento, estacou na penumbra. Espreitava, pareceu me, o visitante. Percebi que chorava. Os familiares, em redor, evitavam que fosse vista. Sentaram a pesada senhora e abanaram leques em seu redor. Até que um sobrinho se aproximou de nós e ordenou que o estrangeiro se descalçasse. Pés nus atravessaram o patamar e me foi dito que traduzisse a ordem:
Encoste o seu pé na pegada na pedra.
O homem decalcou o pé no oco da rocha. Mas a pegada não lhe servia no pé. Mandaram que voltasse a calçar. Alguém disse:
A mamã pede que cheguem perto.
Fomos, eu e o estrangeiro. Elisa parecia zonza. Bebera? Pediu que o visitante se inclinasse sobre ela. Um longo momento ela espreitou o rosto dele e sussurrou, triste:
Não, não é ele.
E ficou, cheia de peso e idade, até que se endireitou no assento. O triplo queixo estremeceu. Uma voz decretou o alarme:
Ela vai arrotar! Em vez do esperado e proclamado arroto veio um fiozinho de voz, um piar de passarinho. Esse sopro foi sua última exibição.
Um sobrinho à saída nos devolveu as moedas. Se desculpou:
Esses barulhos sempre foram o seu peito desmoronando.
Dona Elisa, afinal, não era caso de ciências. Nem geologia nem humanologia a entenderiam. Seu único fenômeno era amor, a ausenciada paixão. E a pegada que, cada tarde de sábado, se soltava da pedra e caminhava pelo peito de Elisa. Essa era a única razão do estrondo: a pedra se soltando da pedra, o enterrado passo regressando a este lado da vida.
Mia Couto, in Na berma de nenhuma estrada

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