Já
eram conhecidas nossas. Juntas, apareciam, ano por ano, frequentes,
mais ou menos no inverno. Um par. Vinham pelo rio, de jusante,
septentrionais, em longo voo — paravam no Sirimim, seu vale. Apenas
passavam um tempo na pequenina região. Vivida a temporada, semanas,
voltavam embora, também pelo rio, para o norte, horizonte acima, à
extensão de suas asas. Deviam de estar em amores, quadra em que as
penas se apuram e imaculam; e, às quantas, se avisavam disso, meiga
meiamente, com o tão feio gazear. Eram da garça-branca-grande, a
exagerada cândida, noiva. Apresentavam-se quando nem não se pensava
nelas, não esperadas. Por súbito: somente é assim que as garças
se suscitam. Depois, então, cada vez, a gente gostava delas. Só sua
presença — a alvura insidiosa — e os verdes viam-se reverdes, o
céu-azul mais, sem empano, nenhuma jaça. Visitavam-nos porque
queriam, mas ficavam sendo da gente. Teriam outra espécie de recado.
Naquele ano, também, foi assim. Há muito tempo, mesmo; deve de ter
sido aí por junho, por julho. De manhã, bem você acordou, já elas
se achavam no meio da várzea-grande, vestidas e plantadas. Não lhes
minguavam ali peixes: os barrigudinhos em pingues bandos; e ainda
rãs, jias, pererecas, outros bichinhos se-mexentes. Seus bicos,
pontuais, revolviam brejos. Andavam na várzea, desciam o Sirimim
todo, ficavam seguindo o Sirimim, pescando no Sirimim. Até a passear
pelos regos e pocinhos da horta, para birra do Joaquim, suspeitoso
das verduras, de estragos. — “Sai! Sai!” —
enxotava-as, ameaçava-as, atrás. E elas, sempre ambas: jét!
jét! — já no ar. Davam voadas baixas, por curto, ou
suspendiam-se longe, leves, em arredondo, em órbitas, de suso
vigiando a qualquer vida do arrozal. Passavam, planadas, pelo Pedro.
— “Ôi! Ô bicho esquisito, gáiça...” tinha ele modos
de apreciar. O revoo oblíquo, quase brusco, justo virara-se para cá,
vinham batendo trape as asas, preparando-se para baixar, cruzavam
rente à cozinha, resvés, amarrotavam um vento. — “Cruz!
Nunca vi tão perto de mim esse trem...” — exclamava Maria
Eva, em suma se sorrindo. Deixavam o brinquedo Lourinha e Lúcia —
a que, ao contrário, era muito pretinha. — “E elas vão
ficando mansas, querem morar mais com a gente?” — Lourinha, a
sério, achou.
Nigra,
latindo, perseguia-lhes as sombras no chão, súbito longo
perpassantes. Após, olhava-as, lá acima, céleres: asinha, azadas,
entre si alvas. Nigra, tão negra; elas — as brancas. Ainda mais,
quando nos lindes da várzea, compartilhadas entre ervas, boscarejas,
num pensativo povoar. Ali, o junco ou o arroz, acortinava-as.
Sumiam-se e surgiam, nódoas, vivas, do compacto — o branco
individuado. Sonhasse a gente naquilo repousar rosto, para um outro
sono. Obrigavam-nos os olhos, se pegavam neles, seu grosso leite, a
guiratingi-los. Aprumavam-se esquecidas, aprontadas, num pé só, na
tortidão das pretas pernas, arremedando um infindar. Assim
miravam-se nos espelhinhos d’água, preliminarmente, em pausas.
Sós, horas. Zape! — o zás — porém, no jogar o bico, de quando
em momento, pinçando e pingando: o chofre, e peixinho nenhum
escapava-lhes, no discardume. Pois, bis. Daí, de repente, subiam do
verdejo, esvoaçadas, quais sopradas, meias-altas, altas, não
trêmulas, entravam naquele circunvagar de carrossel, sem sair das
fronhas. Gostoso, acompanhá-las: voando, a garça golpeia devagar.
Nigra, latia, aborrecida.
— “E
elas são o contrário da jabuticaba?” ... — Lourinha achava
de defini-las. Sabia-se que a Irene, que queria uma daquelas penas,
tentara capturá-las, em grandes, infundadas urupucas. Do Dengo,
empinado o queixo, parando de capinar o jardim: — “Se diz que
essa carne não presta, é seca, seca, com ranço de peixe...”
Assim passavam pelo bambu do sabiá, preferiam aterrissar na horta,
luminosa de águas. Para pousar, vinha uma em-pé-zinha, do alto,
meio curvas asas, a prumo e pino, com a agora verticalidade de um
helicóptero. Já a outra porém se adiantara, tomando o chão: mas
não firme, direto, não, senão que feito o urubu, aos três
pulinhos — puf! puf! puf! — às vezes a gente se
assustava. O Joaquim resmungou, confessou: que não desestimava
delas, que deviam de ser o sinal certo de bom chover. Aproximavam-se
ou afastavam-se, sem pressa, no meio dos canteirinhos das hortaliças,
iam-se naquelas mesmas escuras e finas pernas, levantavam uma, o pé
assim muito altinho erguido, encolhendo e enrugando as unhas para
dentro: póf! — do jeito Lourinha descrevia-as.
Nigra
esperava-as, latindo e se precipitando, de orelhas em-pé, com
incerta celeradeza. Porém, foi atravessar a pontezinha, de quatro
bambus, resvaladiços, e escorregou, de afoita, afundando-se de
pernas entre eles, no saque da sofreguidão. Até poder safar-se,
ficou ali, enganchado o grande corpo e remando no vácuo com as
patas, que não dava para tocarem em fundo ou chão. Já por aí, às
súbitas, aquelas se tinham alado, fazendo um repique ao acertarem o
voo, e haviam-se longe, lá: elas voavam atrás da chuva.
Sobrepassavam o quintal do Joaquim Sereno, retornavam para cá, no
que é do Antônio, chegavam a um areal no rio, descendo —
descaíam, colhidas. Justo faziam maio, júbilo, virgens, jasmins,
verdade, o branco indubitável; lá longo tempo ficavam. E por toda a
parte. Só quase nunca atravessavam a varzeazinha dos bois, para
baixo da ponte, onde o Sirimim, subidinho, acrescentado de chuvas, se
puxa com correnteza mais forte, e seus peixinhos rareiam ou se
demoram menos, de ariscos.
Dormiam
na várzea, ou nas pedras de beira ou meio do rio, as ilhas grandes.
Também naquela árvore atrás da casa do Joaquim, o cajueiro, hoje
cortado, só toco. Estavam por lá, nivais, próprias, já havia sete
dias. Às vezes, ausentavam-se, mais, por suas horas; mas, de
tardinha, voltavam.
Depois,
porém, não foi assim.
Quando
chegou uma tarde, levaram mais, muito, para voltar, e voltou só uma.
Era a mulherzinha, fêmea — o Pedro explicou, entendedor. Ter-se-ia
onde, a outra? Ao menos, não apareceu, a extraviada. A outra — o
outro — fora morta. Ao Pedro, então, o Cristóvão simplesmente
contou: que, lá para fora, um homem disse — que andou comendo “um
bicho branco”.
A
que sozinha retornou, voou primeiro, em círculos, por cima dos
lugares todos. Decerto fatigada, pousou; e, ao pousar-se, tombava
panda, à forte-e-meiga, por guarida. Altanada, imota, como de seu
uso, a alvinevar, uma galanteza, no centro da várzea. Tanto parecia
um grande botão de lírio, e a haste — fincado, invertido posto.
Ouviu-se, à vez, que inutilmente chamasse o companheiro: como
gloela, rouca, o gragraiado gazinar. Sim, se. Fazia frio, o ventinho,
ao entardecer. Daí, logo, levantava voo outramente, desencontrado e
quebrado, de busca — triste e triste. O voo da garça sozinha não
era a metade do das duas garças juntas: mas só o pairar de
ausência, a espiral de uma alta saudade — com fundo no céu.
Mas,
foi daí a três dias.
Lourinha
e Lúcia, de manhã, vinham à casa do Pedro, buscar uma galinha e
dúzia de ovos. No que passavam perto da goiabeira de beira do
Sirimim, depois da ponte, escutaram talvez débeis pios, baixinho:
quic, quic. Na volta, porém, com os ovos e a galinha, no
mesmo lugar, aquilo era berrando zangado: qué! qué! — o
quaquá num apogeu.
Custaram
para achar. Embrulhada no cipó, no meio do capinzal, caída, jogada,
emaranhada presa toda, debaixo da goiabeira da grota — a garça,
só. Sangue, no capim. Ela estava numa lástima. Tinha uma asa
quebrada muito, dependurada. Arriçada, os atitos, queria assim mesmo
defender-se, dava bicadas bem ferozes.
Sendo
preciso livrá-la. Tomaram ânimo, as meninas. Lúcia agarrou-a pelo
engrossar-se e arrijar-se renitente do pescoço, a desencurvar-se;
enquanto Lourinha segurava nas asas — sã e quebrada. Pesava, um
tanto. Jeito que a garça, meio resignada, meio selvagem, queria
virar-se sempre, para rebicar. Só a pausas, seu guincho, que nem de
pato; jeremiava.
Trazida
para o terreirinho da casa, todos a rodearam, indecisos. Sem
equilíbrio, pendente morta aquela asa, ela não podia suster-se.
Jacente, mole, nem se movia. Mas não piava. Olhava-nos, a vago, de
soslento, com aqueles amarelos-esverdolengados olhos, na cabecinha
achatada, de quase cobra. A asa, esfrangalhada, faltando-lhe uns
quatro dedos de osso, prendia-se ao corpo só por um restinho de
pele. Que colmilhos de fera, de algum horrível e voraz bicho
garceiro, assim teriam querido estraçalhá-la? Todavia, comeu seus
uns dois ou três peixes, que Lourinha e Lúcia foram buscar, do
Sirimim, pegos de peneira. Que se tinha de fazer?
O
Cici e o Maninho achavam: só se torando o trambolho de asas, que
senão ela não viveria. Mamãe e Lourinha e Lúcia não queriam,
não. Não se chegando a concerto, assim rebatidas as razões,
tirou-se à sorte. Então, o Cici, cortou, de um tico, com a tesoura,
a pelanquinha, e a asa estragada se abateu no chão. Nossa garça,
descativa, deu um sacolejão, depois se sacudiu toda, e saiu andando
— fagueira, feia, feliz. Caminhou um pouco. Nigra, ressabiada, a
boa distância, com desgosto, rabujava tácita, só olhares lançados.
Teve-se
de levá-la a um dos canais da horta, lá ela podia gapuiar e
esperar, dando suas quatro pernadas por ali, embaraçosa, assaz mais
tímida e suspicaz. A várzea-grande, agora, era para ela um longe
inacessível. Andava, porém, por aqueles pocinhos e regos todos do
Joaquim, mal-encarado mas concorde. Apeada, metida em sua corcunda
branca, permanecia, outro tanto, sem se encardir, só e esguia. Mas
metia o bico dentro d’água, fisgava, arpoava, engolia. Tinha o
bico forte, rosinha-alaranjado. — Jamais chamou pelo companheiro.
Toda
tarde, a gente ia-a buscar. Fez-se-lhe um ninho de palha, no barracão
da porta-da-cozinha. — “E agora, ela não vai mais embora, ficou
da gente, de casa...” — jurava Lourinha, a se consolar.
Durou
dois dias.
Morreu,
no terceiro.
Ora,
dá-se que estava coagulada, dura, durante a tarde, à boa beira
d’água, caída, congelada, assaz. Morreu muito branca. Murchou.
Lourinha
e Lúcia trouxeram-na, por uma última vez. Lúcia carregando-a,
fingia que ela estivesse ainda viva, e que ameaçava dar súbitas
bicadas nas pessoas, de jocoso. De um branco, do mesmo branco em
cheio, pronto, por puro. O Dengo foi enterrá-la debaixo dos bambus
grandes, de beira do Sirimim, onde sempre se sepultam pássaros, cães
e gatos, sem jazigo.
Daí,
o entendido disse: que fora pelo frio, pneumonia, pela falta da asa,
que não a protegia mais, qual uma jaqueta. O entendido viera para
examinar a Nigra, com um olho doente, vermelho, inchado, ela já
estava quase cega; e Nigra era uma bondosa cachorra. Disse que algo
pontudo furara-lhe aquele olho: ponta de faca, por exemplo, ápice de
bico de ave.
A
gente pensava nelas duas. De que lugar, pelo rio, do norte, elas
costumavam todo ano vir? A garça, as garças, nossas, faziam falta,
tristes manchas de demasiado branco, faziam muito escuro.
Guimarães
Rosa, in Ave, palavra
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