sábado, 19 de agosto de 2017

Um narrador onisciente

Toda essa liberdade que se pode reconhecer nos meus livros resulta fundamentalmente da posição em que me coloco como um narrador realmente onisciente, onipresente e que, de certa maneira, está disposto a manipular tudo o que vem relacionado não só com a narrativa propriamente dita, mas também com as ilusões do próprio leitor. Imagino-me muito mais como alguém que está falando do que como alguém que está escrevendo. Isso explica as digressões, as interrupções, o deixar coisas em suspenso para retomá-las mais adiante enquanto se introduz um comentário irônico de tipo sociológico ou até político. Quando se chega ao final do livro, capta-se a imagem de uma coerência completa, que não decorre de nenhum esquema rígido prévio. Isso tem como resultado uma completa liberdade no ato de escrever, que me permite introduzir no livro situações que nunca teria sido capaz de imaginar antes de me pôr a escrevê-lo e que surgem do próprio processo de criação do livro. Quando eu digo que começo a ter dúvidas sobre se sou realmente um romancista, não digo de brincadeira, digo muito sinceramente, porque começo a compreender que o romancista é provavelmente algo diferente do que eu sou. Sou uma espécie de poeta que vai desenvolvendo uma ideia. Nos meus livros as coisas acontecem um pouco como uma fuga musical. Há um tema que depois é sujeito a tratamentos diferentes quanto a timbres e movimentos. Isso pode ocorrer em algum de meus livros. Chega-se ao final da leitura com a impressão de ter lido um longo poema.
José Saramago, in As palavras de Saramago

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