sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Ter água por um bom período

Ao amanhecer, grossas gotas de chuva caíram sobre a terra. Soavam ocas ao estampar-se no pó branco e solto dos sulcos. Um pássaro brincalhão cruzou no rés do chão e gemeu imitando o queixume de uma criança; um pouco adiante ouviu-se que ele dava gemidos como de cansaço, e ainda mais longe, lá onde o horizonte começava a se abrir, soltou um soluço e depois uma gargalhada, para tornar a gemer depois.
Fulgor Sedano sentiu o cheiro da terra e saiu para ver como a chuva deflorava os sulcos. Seus olhos pequenos se alegraram. Até aspirou três bocadas daquele sabor e sorriu até mostrar os dentes.
Que coisa!” — disse ele. “Outro bom ano está chegando.” E acrescentou: “Vem, aguinha, vem. Deixe-se cair até cansar! Depois corre mais para lá, lembre-se que abrimos a terra inteira para a lavoura, só para você se dar esse gostinho.”
E soltou o riso.
O pássaro brincalhão que acabava de percorrer os campos passou quase na frente dele e gemeu um gemido desgarrado.
A água apertou sua chuva até que lá por onde começava o amanhecer, o céu se fechou e pareceu que a escuridão, que já estava indo embora, regressava.
A porta grande da Media Luna rangeu ao abrir, empapada pela brisa. Foram saindo primeiro dois, depois outros dois, e mais outros dois, e assim até somarem duzentos homens a cavalo que se esparramaram pelos campos chuvosos.
É preciso arrebanhar o gado do Enmedio para lá do que foi Estagua, e o de Estagua é preciso encurralar lá para os montes de Vilmayo — ia ordenando Fulgor Sedano conforme eles saíam. — E agora mesmo, que as águas estão despencando em cima de nós!
Disse isso tantas vezes que os últimos só ouviam: “Daqui para lá e de lá para mais para lá!”
Todos e cada um levavam a mão ao chapelão para dar a entender que tinham entendido.
E quando o último homem mal havia acabado de sair, entrou a todo galope Miguel Páramo, que, sem deter sua carreira, apeou do cavalo quase no nariz de Fulgor, deixando que o cavalo buscasse sozinho seu cocho.
E de onde você vem a essas horas, rapaz?
De ordenhar.
Ordenhar quem?
Você não adivinha?
Deve ser de ordenhar a Dorotea Perneta, a única que gosta de bebês.
Você é um imbecil, Fulgor; mas não por culpa sua.
E saiu, sem tirar as esporas, atrás de almoço.
Na cozinha, Damiana Cisneros também fez a ele a mesma pergunta:
Vindo de onde, Miguel?
De aí pelas vizinhanças, visitando mães.
Não é para se zangar. Disfarce. Como quer que eu prepare os ovos?
Do jeito que você gosta.
Estou falando direito com você, Miguel.
Está bem, Damiana. Não se preocupe. Escuta aqui, você conhece uma tal de Dorotea Perneta?
Conheço. E se você quiser vê-la, está logo aí fora. Madruga sempre para vir até aqui atrás do café da manhã. É uma que traz um embrulhinho de pano dentro do xale e fica embalando e dizendo que é seu filho. Parece que aconteceu alguma desgraça lá em seus tempos; mas, como nunca fala, ninguém sabe o que aconteceu. Vive de esmola.
Maldito velho! Vou armar uma para ele que vai ser de fazer redemoinho em seus olhos.
Depois ficou pensando se aquela mulher não lhe serviria para alguma coisa. E, sem duvidar um instante, foi até a porta dos fundos da cozinha e chamou Dorotea:
Venha até aqui, que eu quero propor um trato — disse a ela.
E quem saberá que tipo de proposta faria, mas o fato é que quando entrou de novo esfregava as mãos:
Mande logo esses ovos! — gritou para Damiana. E acrescentou: — De hoje em diante você vai dar de comer a essa mulher a mesma coisa que dá para mim, e não importa o que aconteça.
Enquanto isso, Fulgor Sedano foi até o celeiro revisar a altura do milho. Estava preocupado com a escassez porque ainda faltava muito para a colheita. Para falar a verdade, mal haviam acabado de semear. “Quero só ver se dá.” Depois, continuou: “Esse rapaz! Igualzinho ao pai; mas começou cedo demais. A esse passo, acho que não vai conseguir. Esqueci de mencionar a ele que ontem chegaram aqui com a acusação de que ele tinha matado alguém. Se continuar assim...”
Suspirou e tratou de imaginar por onde andariam os vaqueiros. Mas o potro alazão de Miguel Páramo, que raspava o focinho contra a cerca, o distraiu. “Nem para tirar a sela”, pensou. “E não vai tirar. Pelo menos dom Pedro é mais responsável com a gente, e tem lá seus momentos de calma. Só que mima muito esse Miguel. Ontem contei a ele o que o filho tinha feito, e me respondeu: ‘Pense que fui eu, Fulgor; ele é incapaz de fazer isso: ainda não tem nem força para matar alguém. Para isso é preciso ter os rins deste tamanhão.’ Pôs as mãos assim, como se medisse uma abóbora. ‘Bote em mim a culpa de tudo que ele fizer’.”
Miguel há de lhe dar muitas dores de cabeça, dom Pedro. Ele gosta de criar caso.
Deixa ele se mexer. É só um menino. Quantos anos fez? Deve ser uns 17. Não é isso, Fulgor?
Pode ser. Lembro que foi trazido logo depois de nascer, como se fosse ontem; mas é tão violento e vive tão depressa que às vezes acho que está apostando corrida com o tempo. Vai acabar perdendo, o senhor haverá de ver.
Ainda é uma criança, Fulgor.
Será o que o senhor quiser, dom Pedro; mas essa mulher que veio ontem chorar aqui, alegando que o senhor seu filho tinha matado seu marido, estava desconsolada e sem remédio. Eu sei medir o desconsolo, dom Pedro. E essa mulher carregava quilos dele. Ofereci a ela 50 hectolitros de milho para que esquecesse o assunto; mas ela não quis. Então prometi que arranjaríamos um jeito de corrigir o dano. Mas ela não se conformou.
De quem se tratava?
É gente que eu não conheço.
Então você não tem por que se preocupar, Fulgor. Essa gente não existe.
Chegou ao celeiro e sentiu o calor do milho. Tomou em suas mãos um punhado para ver se não tinha sido pego pelo gorgulho. Mediu a altura: “Renderá” disse. “Assim que o pasto crescer não vamos mais precisar de dar milho para o gado. Tem de sobra.”
De volta olhou o céu cheio de nuvens: “Teremos água durante um bom tempo.” E se esqueceu de todo o resto.
Juan Rulfo, in Pedro Páramo

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