quinta-feira, 3 de agosto de 2017

O maior mico do mundo

Pouco depois de ver o convite para o enterro do Vidigal no jornal e comentar com a mulher “acho que esse Vidigal eu conheci”, Rubens recebeu um telefonema. Da viúva do Vidigal. Enquanto Rubens fazia uma careta de espanto para a mulher, a viúva do Vidigal se identificava, dizia que o Vidigal falava muito nele, e perguntava se podia lhe pedir um favor.
Claro, claro.
A viúva então disse que um dos últimos pedidos do Vidigal fora que ele, Rubens, cantasse no seu enterro.
Que eu?
Cantasse no enterro dele.
Mas eu...
Ele disse que você saberia o que cantar. Que era só dizer “aquela música” e você saberia.
Bom, eu...
Posso contar com você? O enterro é às cinco.

Depois de saber qual era o pedido da viúva do Vidigal, a mulher do Rubens perguntou, incrédula:
E você disse “sim”?!
O que eu podia dizer? Foi o último pedido do Vidigal!
E que música é essa?
Não me lembro. Mal me lembro do Vidigal!
Mas Rubens, você não sabe cantar. Você desafina no Samba de uma nota só. No Parabéns a você!
Eu sei. Eu sei!
E você vai assim mesmo?
Agora está prometido.

No carro a caminho do cemitério, Rubens tentava se lembrar. Qual seria “aquela música”? Se ao menos se lembrasse da época em que andara com o Vidigal. Sabendo a época, localizaria a música. Ou improvisaria uma na hora. Talvez Samba de uma nota só, só a primeira parte? Não, não ficaria bem. Parabéns a você muito menos. Qual era a música? Qual era a música? E Rubens se aproximava do cemitério como um kamikaze se aproximando do alvo.

Ela se enganou, pensou Rubens. Ou o Vidigal se enganou. Não era eu que cantava a música. Era outro. Mas quem? Não se lembrava de ninguém cantando, na época em que ele andava com o Vidigal e a turma se reunia no...no... Esquecera até o nome do bar! Ninguém daquela turma cantava. Devia ser outra turma. Era isso. O Vidigal, à beira da morte, confundira as coisas. O cantor era de outra turma.
O cemitério cada vez mais perto. Não vou, pensou Rubens. Não preciso ir. Foi um engano. Dou meia-volta agora, depois invento uma desculpa se a viúva do Vidigal me cobrar. O carro quebrou. Fiquei afônico. Fui sequestrado. Mas não. Não podia deixar o Vidigal sem a sua música, fosse ela qual fosse. A viúva contava com ele. Devia aquilo ao Vidigal. Amigo é amigo, mesmo quando a gente mal se lembra quem era. E estava prometido.

O velório cheio. A viúva o recebeu com um beijo agradecido. Aquilo significaria muito para o Vidigal. E perguntou, baixinho:
Não trouxe o violão?
Rubens estava tomado por uma espécie de frenesi suicida. Tinha certeza de uma coisa: nunca, em toda a história do mundo, alguém pagara um mico como aquele. Mas agora não podia recuar. Limpou a garganta e disse:
Não. Vai a capella mesmo.
Luís Fernando Veríssimo, in Diálogos impossíveis

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