segunda-feira, 7 de agosto de 2017

O dia dos cachorros (trecho)


Mas uma tarde, já ao escurecer, como obedecendo um comando secreto, todos os cachorros cessaram o que estavam fazendo, farejaram o ar, limparam os pés e dispararam no rumo da tapera, atropelando gente e se atropelando. Saíam de quintais, latadas, de monturos, ainda arrastando gravetos e ramagens, derrubando cinza, cavacos, folhas secas do lombo. Os bandos que saíam de cada rua iam desaguar no largo, formando uma enchente que se despejava para a ponte, ganhava a estrada e subia compacta para a tapera, deixando atrás um vazio escuro que o ventinho fresco da boca da noite vinha preencher. Na passagem estreita da ponte o aperto era tanto que se viam cachorros avançando por cima dos outros, derramando-se para fora das grades e despencando na pedreira lá embaixo, deixando na queda um risco de grito a prumo.
As pessoas ficaram sem saber o que pensar nem o que fazer, com medo de se descontraírem antes da hora e terem de repor a máscara às pressas. Não querendo fazer comentários prematuros, todos se recolheram cedo para absorver no escuro as humilhações desnecessárias e tão prontamente aceitas, quando não procuradas espontaneamente.
Cada um torturado pela sua vergonha particular, ninguém dormiu bem aquela noite, nem mesmo os que se conservaram de lado desaprovando a degradação geral com um simples abanar de cabeça; esses já sentiam que desaprovar em silêncio é pouco menos do que aprovar, e nem tinham o consolo barato dos que tiveram a coragem de aderir.
No dia seguinte a cidade se esforçou por voltar à vida normal, e ninguém quis falar nos cachorros; mas a lembrança deles estava em toda a parte, no estrume deixado nos corredores das casas, nas calçadas, na grama do largo; no cheiro de urina que empestava todos os cantos; nos riscos de unhas feitos nas portas e paredes; nas penas de galinha espalhadas pelos quintais e que até ainda voavam no ar, no espanto ainda visível nos olhos das crianças e no constrangimento dos adultos.
Parece que Amâncio Mendes foi o primeiro a tocar no assunto, e do jeito que ele falou deu a impressão de estar sondando, provocando. Mas ninguém emendou conversa, ele sorriu, desviou.
Estou pensando em espichar a venda — disse ele com uma perna assentada no balcão. — É só derrubar uma dessas paredes do lado, fazer um puxado pra lá. Depois ponho fazendas, perfumaria, artigos finos.
Então vai ser uma loja — disse Dildélio. — Como a de seu Quinel.
Ou melhor. Vou contratar um bom empregado. Um ou dois.
E a freguesia? Seu Quinel anda se queixando da paradeira.
Freguesia tem. Vocês vão ver.
Os presentes se olharam disfarçadamente. Entenderam.
Dizem que eles não compram nada. Têm de tudo lá. Recebem de fora.
É, é? Deixa dizerem. Enquanto vão dizendo, eu vou vendendo.
E quando eles forem embora? — Quem falou foi Manuel Florêncio, sondando também.
Eles vão embora, é? Sabia não. Quem foi que disse?
Ninguém não. Mas um dia terão de ir.
É, é? Pois vá esperando.
Isso inquietou os presentes. Com exceção de Amâncio, que agora era uma espécie de advogado dos homens, ninguém sabia muito a respeito deles, e o que ia sendo revelado era sempre assim, desagradável. Então eles iam ficar. Fazendo o quê? Soltando cachorro na cidade para assustar o povo?
Afinal de contas, o que é que eles vieram cheirar aqui? — indagou Manuel Florêncio, não a Amâncio, nem a ninguém, mas como quem deixa escapulir uma pergunta que há muito o incomoda; mas todos olharam para Amâncio, reconhecendo que só ele podia dar resposta.
Amâncio não gostou da pergunta. Respondeu sério, repreendendo:
Cheirar, não. Ninguém veio cheirar nada. Eles vieram trabalhar, trazer progresso. Se o povo não entende, e fica de pé atrás, a culpa é do atraso, que é grande. Mas eles vão trabalhar assim mesmo, vão tocar para a frente de qualquer maneira. Quem não gostar que coma menos.
Ninguém disse nada. Todos ficaram olhando para o chão, para os sacos de gêneros, para as mercadorias penduradas, para as moscas enervantes. Amâncio parecia saber alguma coisa, devia saber, mas teimava em desconversar, em fazer mistério — ou pelo prazer de irritar ou porque não podia mesmo falar, ordem dos homens, proibição.
Mas Manuel Florêncio, positivo, meticuloso, incômodo, não ia se conformar. Torcendo um fio de sobrancelha, real ou imaginário, falou olhando para o chão:
Engraçado. Eles vieram trabalhar, trazer progresso, fazer o bem. Então por que ficam entocados lá longe, cercados, fechados, não se abrem com ninguém, e quando querem se distrair soltam cachorros em cima da gente?
Já vem você — disse Amâncio. — Você não entende, está de cabeça cheia. Ninguém aqui entende. Os homens estão trabalhando. Eu estive lá, eu vi.
Esteve lá jogando peteca. Se isso é trabalhar…
Amâncio fungou, derrubou o cigarro, apanhou; tornou a derrubar, pisou em cima com raiva, como quem mata um bicho venenoso, escorpião, lacraia.
Não é nada disso — gritou, por fim. — Ouviram cantar o galo. Eu sabia que iam avacalhar. O culpado é o Geminiano. Ele vai ver comigo. Pretete fedido.
Você é quem ouviu cantar o galo. Geminiano nem quis falar. Quem contou foi o menino.
Seja quem for, fez fuxico. Mas não faz mal. Podem falar até rachar o papo. Estou com os homens, o resto é muxingo de gongomé macho. Quem não gostar tire a ceroula e pise em cima.
Quando acabou de falar, Amâncio estava fungando forte, os dentes cerrados. A raiva era tanta que ele teve de riscar vários paus de fósforos para poder acender um cigarro. Era difícil discutir qualquer assunto com Amâncio. Sempre que ele ficava sem defesa caía na valentia e os outros recuavam. Brigar dá trabalho, e na maioria das vezes não paga a pena. Amâncio mesmo era um exemplo. Das brigas que vencia — quase todas — não ficava satisfeito com nenhuma. Passada a raiva, esfriada a cabeça, não havia muita diferença entre ele e o vencido. Em muitos casos, vencer briga não é melhor do que perder. Para que então andar brigando à toa?
Bom — disse Manuel Florêncio —, você diz que eles estão trabalhando e que no fim nós todos vamos lucrar. Então eu acredito e fico esperando.
Amâncio olhou para ele agradecido, desconfiado. Aquele Manuel às vezes dava raiva, às vezes também dava alegria. Manuel era mestre em evitar briga sem correr. Era mestre em muitas coisas que uma pessoa deve saber para poder viver neste mundo difícil. Manuel Osório de Almeida Florêncio. Manuel bobo. Manuel ladino. Manuel amigo.
Vamos tomar uma calcinada todo mundo — disse Amâncio virando-se para a prateleira para providenciar garrafa e copos.
Os outros se animaram, preparando a boca, antecipando; mas Manuel, sentado nas mãos apoiadas num caixote, disse sem alarde:
Tomem vocês. Eu agradeço.
Me esqueci que ele é contra. Está aprendendo para santo — disse Amâncio. Muitos riram, Amâncio sorriu satisfeito, Manuel explicou:
É o estômago. Não aguento nem o cheiro.
Tampa o nariz e vira — sugeriu um.
Não compensa. Prefiro olhar.
Então come um pé de moleque. Um beiju. Qualquer coisa — disse Amâncio mandando.
Manuel aceitou um beiju para evitar crítica, enquanto os outros iam virando, careteando, bufando e cuspindo. Se era tão bom, para que tanta resistência, tanto esforço?
Manuel demorou-se um pouco mais, riu, conversou, deu uma desculpa e saiu. Aquela função iria longe, terminaria em tocata de viola e cantaria, com algumas discussões no meio, depois a galopada de Amâncio pelas ruas, os tiros a esmo, os insultos diante das casas fechadas, trancadas, escoradas, depois o sono largado em alguma vala de arrabalde; Manuel tinha de estar descansado para o trabalho de procura e salvamento.
José J. Veiga, in A hora dos ruminantes

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