quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Além da amendoeira

Vai, vez, um fim de tarde, saía eu com o Sung, para nosso passeio, que era o de não querer ir longe nem perto, mas buscar o certo no incerto, a tão bom esmo. Só me esquece a data. Cumprindo-nos, também, conferir as amendoeiras.
Seria em março — as frutinhas do verde já boladas? Pode que em abril: as folhas birutas, com lustro sem murcho, dando ponto às sanguíneas e às amarelinhas de esmalte. Se em maio, aí que, por entre, frequentam e se beliscam um isto de borboletas, quase límpidas, e amadurecem as frutas, cheirando a pêssego e de que os morcegos são ávidos? Talvez em junho, que as drupas caídas machucam-se de ilegíveis roxos. Também julho, quando se colorem ainda mais as folhas, caducas, no enrolar-se, vistosas que nem as dos plátanos de Neuilly-sur-Seine ou de San Miniato al Monte, e as amêndoas no chão são tantas? Seja em agosto — despojadas. Ou em setembro, a desfolha espalhando nas calçadas amena sarapueira, em que feerem ainda árduos rubros. Sei não, sempre é tempo de amendoeira.
Mas, pois, descíamos rua nossa vizinha e simpática, eu a considerar na mudável imutabilidade das coisas, o Sung a puxar-me pela trela, quando, eis senão, passávamos rente a uma casa, inusual, tão colocada, suposta para recordar as da outra idade da gente, no Belorizonte. Dita que era uma aparição, conforme se ocultava, às escuras, o que dela se abrindo sendo só uma varanda de arco, perfeita para o escuro, e que se trazia de estórias — a casa na floresta, da feiticeira. Sob cujo efeito, sorte de adivinhamento, refiz-me fiel ao que, por onde ando, muito me aconselho: com um olho na via, o outro na poesia.
De de-dentro, porém, e reta para a varanda, pressentia-se tensa presença. Súbito, com elástico pé-ante-pé, alguém avançara de lá, a furto. Já de noite, às pardas, à primeira não se distinguia: sombra ou resumo de vulto. Se bem que entre luz e fusco o vulto avultasse, permanecendo, para espreita; apenas lobrigável, não visório. Até que por viva alma decifrei-o — ao bruxo de outras artes. Drummond. E só então deve de ter-me reconhecido. Ele morava, ali, à beira da amendoeira.
Sabia-o adicto e professo nessa espécie de árvores, seu mestre de fala. Mas, a que se via que havia, entre calçada e varanda e o fementido asfalto, e que era o objeto que ele cocava, não passasse de uma varinha recém-fincada, simples débil caule, e por isso amparada, necessitando uma estaca de tutela. Drummond de tudo me instruiu, e de como não fora de mero recreio, agora, aquela sua tocaia. E, como eu não pudesse aceitar de entrar, que o Sung discordava, confabulamos mesmo assim, ele no âmbito de seu rincão, semilunar, eu à sombra futura da menos que amendoeira.
Era: que, no lugar, falhara uma, sucumbida ao azar ou aos anos, e ele arranjara que plantassem outro pé, no desfalcado. Mais de uma vez. Porque vinham os vadios e malinos, a criançada ingrata, e destruíam demais, sendo indispensável acautelá-la contra essa gente de ralo juízo ou de iníqua índole. Para o mister, Drummond já requerera a prestança de um guarda. Por enquanto, porém, velava-a ele mesmo, às horas, dali de seu promontório de Sagres.
Sendo que falávamos, um pouco sempiternamente, unidos pelo apropósito de tão estimável circunstância, isto é, da amendoeira-da-índia ou molucana, transplantada da Malásia ou de Sequimeca, quer dizer, árvore aventurada, e, pois, de praia e areia, de marinha e restinga, do Posto 6.
Elas pintam bem, têm outono. Dão-se com frente e perfil. Abrem-se a estórias e hamadríadas. Convêm, sem sombra de dúvida, com as beira-atlânticas cigarras. Despeito das folhas graúdas, compõem-se copas amabilíssimas, de donaire. Prezam-se de folhagem sempre a eldorar-se, em alegria e aquarela. E também ensinam acenos. São de sólita serventia.
Ultra que a amendoeira é a que melhor resiste aos ventos, mesmo os de mais rojo, sob o tiro de qualquer tufão ela sustenta o pairo. Nem se dizendo que seja uma árvore castigada. Sua forma se afez a isso, desde a fibra, e no engalhamento, forçoso flexível, e nos ramos que se entregam com eficaz contravontade. Se ao vendaval, as grandes amendoeiras se entornam, desgrenham, deploradoras, ele roda-as, rodopia-se, contra o céu, baço, baço. Mas há uma técnica nesse renhimento, decerto de aquisição milenar: no que temperam o quanto de sustentação de choque com a cessão esquiva ou o dobrar-se submisso, o volver os eixos para furtar-se ao abalo. E fingem a mímica convulsiva, como quando cada uma se estira, vai, volta, voa; isto, sim: a amendoeira procelária.
Bem, a nossa conversa não se copiando talvez precisamente esta, pode mesmo ser que falássemos de outras coisas; mas o substrato de silêncio, que insiste por detrás de todo palavreado. Só a fim de recordar. Eu com o Sung à tira, conforme ele já se estendera chato no chão, desistente. E Drummond de constantes olhos em seu fiozinho de amendoeira-infante. O amor é passo de contemplação; e é sempre causa.
Afinal, a vigilância da amendoeira se exerce indefinida, e volve-se sem intervalos sua desconfiança. Veja-se como responde, pendulativa, à aragem mais fina, só zéfiro. Toque o primeiro leve e ligeiro sopro, e já as folhas estremecem, apalpando o que haja, o tronco ensaia um balanço preventivo, os ramos a sacudir-se, diversamente, para o equilíbrio: e fazendo face. Nada apanha-as de surpresa. Fio, e me argumentei, que devem de trocar sinais entre si, e manter uma sempre de sentinela, contra o ar e o mar. Drummond concordaria comigo. Ou vice-versa, pois. Era uma célebre noite. E, se esmorecíamos, era pelos inadiáveis deveres do introvertimento.
Mas, de longe, ainda as amendoeiras, que mútuas são, e pertinentes. Isto é, Drummond não ficara sabendo que moro também entre elas, íntimas, de janela; no verão suas sombras comovem-se nas venezianas do quarto, conforme jogam, de manhã. Vejo uma, principalmente, a um tempo muda e loquaz. Ela faz oito anos. Digo: que ele morreu, uma noite fria, de um julho, ali debaixo dela o enterramos, muito, muito. Um gato. Apenas. Chamava-se Tout-Petit , e era só um gato, só um gato, um gato... Além. Ah, as amendoeiras. A de Drummond, amendoeirinha de mama, ainda sem nem sussurros. A minha, a quem, então, às vezes peço: — Cala, amendoeira…
Guimarães Rosa, in Ave, palavra

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