— Onde
vai?
Suacelência
barra o caminho do médico à saída da pensão. Sidónio Rosa pousa
a pasta no chão como se se libertasse de alguma prova de um
flagrante delito. Suacelência questiona com tom inquisitorial:
— Outra
vez para a casa desse mecânico?
Para
o Administrador, as contas eram claras: o estrangeiro perdia tempo
demais em visitas aos Sozinhos. O português era o único médico
para toda a Vila, estava o povo em plena epidemia e ele, político de
carreira, em plena campanha eleitoral.
— Veja
em que situação me deixa a mim, aos meus simpatizantes políticos…
Depois,
afinou o discurso: o português não podia deixar desamparados tantos
doentes, favorecendo apenas um velho, ainda por cima sem cura.
— Esse
Bartolomeu já está com os pés para além da cova.
Quando,
mais tarde, o médico relata este episódio a Bartolomeu Sozinho, foi
como que o destapar da cratera. O vulcão jorrou incontíveis raivas:
— Com
os pés para a cova está esse cabrão desse Administrador.
—
Calma, veja o seu coração.
— Sabe
uma coisa? Eu quero que esse Suacelência se foda. O senhor vai ver o
que vou fazer.
Vai
à gaveta do armário, desenrola a bandeira da Companhia Colonial e
leva-a para a janela. Hasteia o pano verde e branco na antena da
televisão e, depois, recua uns passos a usufruir da visão da
bandeira drapejando.
— Ele
tem o seu reino, eu tenho o meu.
Aquela
casa era a sua nação. As dimensões dessa nação não cabiam em
mapa métrico. Todos sabem: a casa só é nossa quando é maior que o
mundo. Mas, agora, à sombra daquela bandeira, a soberania de
Bartolomeu cobria a casa e o mundo.
— E
o cabrão que tente desapear esta bandeira!
Agita
os braços no calor da fala. Ele próprio semelha um trapo
dependurado de um mastro, balançando ao sabor das brisas. De súbito,
o velho vê-se acometido por uma tontura, segura o peito como se os
órgãos quisessem escapar do corpo.
Antes
que sucumba, o médico ampara-o e ajuda-o a que se estenda no sofá.
Sidónio Rosa pede-lhe que sossegue e respire fundo, depois pinça-lhe
o pulso entre o polegar e o indicador a registar os batimentos do
revolto coração.
Em
que preciso momento a pessoa adormece? Quando perde o mundo, tombada
no fundo da alma? Quando apenas lhe sobra uma derradeira fresta de
luz, ecos de vozes sopradas de tão longe que parecem rumores de
anjos?
Bartolomeu
não carece de anjos para adormecer. Bastam-lhe as mãos de Sidónio
Rosa. O velho escorrega no sono enquanto o médico lhe mede a
pulsação. A cabeça balança como se fosse tombar, desamparada, da
haste do pescoço.
Segundos
depois, porém, ele desperta assaltado por um brusco encontrão
interior. Alguém, dentro de si, o empurra para fora do sono. Olhos
assarapantados, usa a palma da mão como se fosse uma toalha e limpa
demoradamente o rosto. A seguir, todo o corpo se arrepanha num fundo
arrepio.
— Que
frio!
Olha
em redor à cata de um aconchego. Volta a estremecer dos pés à
cabeça.
— Quero
cobrir-me e essa puta levou-me todos os cobertores para tapar as
janelas.
Ainda
se ergue em busca de uma improvável manta. Cambaleia-lhe o corpo,
cambaleiam-lhe as palavras. O quarto já perdeu o desenho, ele
simplesmente adivinha as sombras e, às cegas, desvia-se dos
familiares objetos.
—
Agora, eu pergunto-lhe: quem tem mais
frio, eu ou a casa?
E
volta a derramar-se no leito. O dorso arredonda-se num oco ovo e todo
o seu peso se resume a um suspiro.
— O
sono que eu tenho, Doutor! Este sono me intriga muito.
— E
porquê?
—
Porque não é sono de gente. É de
bicho. E me dá medo dormir.
O
mecânico teme viajar por essas profundezas onde moram os seus
monstros interiores. É por isso que desperta sempre num solavanco.
Estremunhado, fita o médico arrumando o estetoscópio e percebe que
a demora nos gestos do outro se destina a adiar o relatório clínico.
O Doutor, coitado, é tão mentiroso que não sabe mentir.
— Eu
queria fazer um pedido. Não me vai dizer que não.
—
Depende.
—
Mate-me, Doutor.
—
Desculpe?
— Estou
a pedir que me mate, que acabe com isto…
— Tenha
juízo, meu amigo.
—
Peço-lhe, por tudo o que o senhor
respeita. Dê-me um desses remédios venenosos…
— Nem
respondo.
—
Então, se não é capaz, deixe Munda
fazer isso. Ajude Munda a cumprir esse desejo, meu e dela.
— Você
não entende, Bartolomeu.
— Por
favor…
Na
pressa de negar o pedido, o médico não se apercebe de que o velho
está chorando. Bartolomeu soluça tão baixo e tão sem lágrima que
nem ele mesmo dá conta que está pranteando.
— Você
não entende, Bartolomeu, que a sua esposa… Sabe o que ela me
disse?
— Não
quero nem ouvir.
— A
sua mulher pediu que, no dia em que você morresse, eu a fizesse
morrer também.
Subitamente,
o velho ergue o rosto, suspendendo o lagrimejar. Acredita não ter
escutado certo. Pede que o português repita, sacode a cabeça,
perplexo.
—
Mentira!
— Juro,
foi o que ela me pediu.
O
mecânico ajusta palavra e entendimento. Mundinha, sempre torta e
azeda, queria agora coincidir os pontos e as reticências?
— Essa
conversa é para distrair os meus intentos?
— Esta
conversa é para você saber a verdade.
— Por
que não faz o que lhe peço? Um dia destes pedi-lhe que me desse
banho, o senhor negou. Agora, mais uma vez, recusa satisfazer um
pedido meu?
— Eu
até posso dar-lhe banho, mas só faço se deixar de lado esse
estúpido desejo de morrer. Eu dou-lhe banho para ficar bonito e sair
mais uma vez no engate…
—
Daquela vez que eu saí, você me
humilhou.
— Eu?
— Andou
por aí a procurar por mim, parecia que eu era um inválido…
— Só
queria ajudar…
— Pois
só atrapalhou — disse
Bartolomeu com firmeza.
— Não
volto a atrapalhar.
— O
senhor não entendeu nada. Daquela vez, eu não fui à procura de
namoros ou de miúdas.
—
Então?
— Fui
à procura de alguém que me fizesse a merda desse serviço.
— Qual
serviço?
— O
de me matar.
Num
gesto seco, transversou a mão pelo pescoço a imitar uma faca. E
deixou a mão erguida, horizontal, pressionando o pomo-de-adão.
— Pelos
vistos — ironizou o médico — esqueceram-se de cumprir a
encomenda.
— Não,
eu é que não contratei ninguém. Quando saí à rua eu percebi
tudo, voltei atrás…
Percebera
que não poderia ser executado ao desbarato. Ele tinha que valorizar
a única riqueza que lhe restava: a sua morte.
— Tenho
que ser morto por um branco!
Ao
português lhe apeteceu contestar, reclamar do pensamento racista do
outro, mas permaneceu calado. É tempo de regressar, ainda tem que
passar pela enfermaria dos afetados.
— Não
quero que faça disparates, nem que diga disparates.
— Eu
queria morrer sabe porquê? Para saber o que a minha mulher fez em
vida, se me traiu. Os mortos sabem tudo.
O
velho fala com solenidade, mas Sidónio Rosa ainda está sorrindo
quando sai para a rua, de regresso à pensão. No balcão de madeira
escura, o ensonado recepcionista, num gesto mecânico, estende-lhe a
chave. Mesmo sem olhar, o médico corrige:
— É
a outra chave.
O
recepcionista hesita, balançando o chaveiro na mão. Está medindo a
argúcia do visitante, ao mesmo tempo que avalia o seu próprio
estado de vigília.
— Que
chave é essa, afinal? — pergunta ele, com voz ensonada.
Antes
que o funcionário corrija, o médico lhe arranca todo o chaveiro da
mão e, bruscamente, vira costas e se afasta pelo corredor.
— Onde
vai, Doutor? Dê-me essas chaves.
Tarde
demais, o português já se afundou nas interditas entranhas do
decadente edifício. O recepcionista, coxeando, se lança na peugada
do inquilino. O português escuta os passos desiguais e quase lhe
adivinha o pensamento: “Grande cabrão, tuga de merda, escolhi um
serviço que me deixa ficar escondido, atrás de um balcão, e agora
me obrigas a arrastar as avariadas pernas como um caranguejo
caminhando sobre vidro…”.
Desta
feita, a voz do funcionário, bem real, impõe-se, em sentida
súplica:
— Não
faça isso, patrão Doutor, não faça isso!
O
médico detém-se apenas em frente da porta do misterioso quarto,
esse recanto que ninguém ousa visitar. O coxo gesticula
fervorosamente, rodando em redor do estrangeiro como um corvo de asa
quebrada.
O
português ainda hesita ao sentir a maçaneta da porta ceder. E
suspende o gesto a meio. Que surpresa lhe reservaria o amaldiçoado
aposento? Sangue espalhado nas paredes, o cheiro nauseabundo de
cadáver, um despedaço de corpo?
Olhos
semicerrados, Sidónio vence o medo e empurra com violência a porta.
O quarto está limpo, sem cheiro, sem sinais de violência. Pelo
contrário, respira-se ali a tranquila ordem de um mosteiro, as
roupas lavadas e passadas a ferro, impecavelmente pousadas em cima da
cama. Um par de óculos, uma pulseira e um bloco de apontamentos
estão alinhados sobre a mesinha-de-cabeceira.
— Quem
está aqui?
—
Ninguém.
— Como
ninguém?
—
Esteve. Já não está.
—
Foi-se embora? Saiu da pensão?
— Não
saiu da pensão. Saiu da vida.
—
Morreu? Como foi que morreu?
— Isso
não sei. Quem pode dizer é o patrão. Quer dizer, o outro patrão.
—
Ninguém veio buscar as coisas dele?
— Feche
a porta, Doutor, e dê-me a chave, eu vou ser castigado por isto…
O
resto da conversa resvala na metafísica. Quem tinha vivido ali? O
recepcionista, subterfugitivo, vagueia: não existe o ter vivido.
Viver é um verbo sem passado.
Mia
Couto, in Venenos de Deus, remédios do Diabo
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