sábado, 15 de julho de 2017

Viver é um verbo sem passado

Onde vai?
Suacelência barra o caminho do médico à saída da pensão. Sidónio Rosa pousa a pasta no chão como se se libertasse de alguma prova de um flagrante delito. Suacelência questiona com tom inquisitorial:
Outra vez para a casa desse mecânico?
Para o Administrador, as contas eram claras: o estrangeiro perdia tempo demais em visitas aos Sozinhos. O português era o único médico para toda a Vila, estava o povo em plena epidemia e ele, político de carreira, em plena campanha eleitoral.
Veja em que situação me deixa a mim, aos meus simpatizantes políticos…
Depois, afinou o discurso: o português não podia deixar desamparados tantos doentes, favorecendo apenas um velho, ainda por cima sem cura.
Esse Bartolomeu já está com os pés para além da cova.
Quando, mais tarde, o médico relata este episódio a Bartolomeu Sozinho, foi como que o destapar da cratera. O vulcão jorrou incontíveis raivas:
Com os pés para a cova está esse cabrão desse Administrador.
Calma, veja o seu coração.
Sabe uma coisa? Eu quero que esse Suacelência se foda. O senhor vai ver o que vou fazer.
Vai à gaveta do armário, desenrola a bandeira da Companhia Colonial e leva-a para a janela. Hasteia o pano verde e branco na antena da televisão e, depois, recua uns passos a usufruir da visão da bandeira drapejando.
Ele tem o seu reino, eu tenho o meu.
Aquela casa era a sua nação. As dimensões dessa nação não cabiam em mapa métrico. Todos sabem: a casa só é nossa quando é maior que o mundo. Mas, agora, à sombra daquela bandeira, a soberania de Bartolomeu cobria a casa e o mundo.
E o cabrão que tente desapear esta bandeira!
Agita os braços no calor da fala. Ele próprio semelha um trapo dependurado de um mastro, balançando ao sabor das brisas. De súbito, o velho vê-se acometido por uma tontura, segura o peito como se os órgãos quisessem escapar do corpo.
Antes que sucumba, o médico ampara-o e ajuda-o a que se estenda no sofá. Sidónio Rosa pede-lhe que sossegue e respire fundo, depois pinça-lhe o pulso entre o polegar e o indicador a registar os batimentos do revolto coração.
Em que preciso momento a pessoa adormece? Quando perde o mundo, tombada no fundo da alma? Quando apenas lhe sobra uma derradeira fresta de luz, ecos de vozes sopradas de tão longe que parecem rumores de anjos?
Bartolomeu não carece de anjos para adormecer. Bastam-lhe as mãos de Sidónio Rosa. O velho escorrega no sono enquanto o médico lhe mede a pulsação. A cabeça balança como se fosse tombar, desamparada, da haste do pescoço.
Segundos depois, porém, ele desperta assaltado por um brusco encontrão interior. Alguém, dentro de si, o empurra para fora do sono. Olhos assarapantados, usa a palma da mão como se fosse uma toalha e limpa demoradamente o rosto. A seguir, todo o corpo se arrepanha num fundo arrepio.
Que frio!
Olha em redor à cata de um aconchego. Volta a estremecer dos pés à cabeça.
Quero cobrir-me e essa puta levou-me todos os cobertores para tapar as janelas.
Ainda se ergue em busca de uma improvável manta. Cambaleia-lhe o corpo, cambaleiam-lhe as palavras. O quarto já perdeu o desenho, ele simplesmente adivinha as sombras e, às cegas, desvia-se dos familiares objetos.
Agora, eu pergunto-lhe: quem tem mais frio, eu ou a casa?
E volta a derramar-se no leito. O dorso arredonda-se num oco ovo e todo o seu peso se resume a um suspiro.
O sono que eu tenho, Doutor! Este sono me intriga muito.
E porquê?
Porque não é sono de gente. É de bicho. E me dá medo dormir.
O mecânico teme viajar por essas profundezas onde moram os seus monstros interiores. É por isso que desperta sempre num solavanco. Estremunhado, fita o médico arrumando o estetoscópio e percebe que a demora nos gestos do outro se destina a adiar o relatório clínico. O Doutor, coitado, é tão mentiroso que não sabe mentir.
Eu queria fazer um pedido. Não me vai dizer que não.
Depende.
Mate-me, Doutor.
Desculpe?
Estou a pedir que me mate, que acabe com isto…
Tenha juízo, meu amigo.
Peço-lhe, por tudo o que o senhor respeita. Dê-me um desses remédios venenosos…
Nem respondo.
Então, se não é capaz, deixe Munda fazer isso. Ajude Munda a cumprir esse desejo, meu e dela.
Você não entende, Bartolomeu.
Por favor…
Na pressa de negar o pedido, o médico não se apercebe de que o velho está chorando. Bartolomeu soluça tão baixo e tão sem lágrima que nem ele mesmo dá conta que está pranteando.
Você não entende, Bartolomeu, que a sua esposa… Sabe o que ela me disse?
Não quero nem ouvir.
A sua mulher pediu que, no dia em que você morresse, eu a fizesse morrer também.
Subitamente, o velho ergue o rosto, suspendendo o lagrimejar. Acredita não ter escutado certo. Pede que o português repita, sacode a cabeça, perplexo.
Mentira!
Juro, foi o que ela me pediu.
O mecânico ajusta palavra e entendimento. Mundinha, sempre torta e azeda, queria agora coincidir os pontos e as reticências?
Essa conversa é para distrair os meus intentos?
Esta conversa é para você saber a verdade.
Por que não faz o que lhe peço? Um dia destes pedi-lhe que me desse banho, o senhor negou. Agora, mais uma vez, recusa satisfazer um pedido meu?
Eu até posso dar-lhe banho, mas só faço se deixar de lado esse estúpido desejo de morrer. Eu dou-lhe banho para ficar bonito e sair mais uma vez no engate…
Daquela vez que eu saí, você me humilhou.
Eu?
Andou por aí a procurar por mim, parecia que eu era um inválido…
Só queria ajudar…
Pois só atrapalhou — disse Bartolomeu com firmeza.
Não volto a atrapalhar.
O senhor não entendeu nada. Daquela vez, eu não fui à procura de namoros ou de miúdas.
Então?
Fui à procura de alguém que me fizesse a merda desse serviço.
Qual serviço?
O de me matar.
Num gesto seco, transversou a mão pelo pescoço a imitar uma faca. E deixou a mão erguida, horizontal, pressionando o pomo-de-adão.
Pelos vistos — ironizou o médico — esqueceram-se de cumprir a encomenda.
Não, eu é que não contratei ninguém. Quando saí à rua eu percebi tudo, voltei atrás…
Percebera que não poderia ser executado ao desbarato. Ele tinha que valorizar a única riqueza que lhe restava: a sua morte.
Tenho que ser morto por um branco!
Ao português lhe apeteceu contestar, reclamar do pensamento racista do outro, mas permaneceu calado. É tempo de regressar, ainda tem que passar pela enfermaria dos afetados.
Não quero que faça disparates, nem que diga disparates.
Eu queria morrer sabe porquê? Para saber o que a minha mulher fez em vida, se me traiu. Os mortos sabem tudo.
O velho fala com solenidade, mas Sidónio Rosa ainda está sorrindo quando sai para a rua, de regresso à pensão. No balcão de madeira escura, o ensonado recepcionista, num gesto mecânico, estende-lhe a chave. Mesmo sem olhar, o médico corrige:
É a outra chave.
O recepcionista hesita, balançando o chaveiro na mão. Está medindo a argúcia do visitante, ao mesmo tempo que avalia o seu próprio estado de vigília.
Que chave é essa, afinal? — pergunta ele, com voz ensonada.
Antes que o funcionário corrija, o médico lhe arranca todo o chaveiro da mão e, bruscamente, vira costas e se afasta pelo corredor.
Onde vai, Doutor? Dê-me essas chaves.
Tarde demais, o português já se afundou nas interditas entranhas do decadente edifício. O recepcionista, coxeando, se lança na peugada do inquilino. O português escuta os passos desiguais e quase lhe adivinha o pensamento: “Grande cabrão, tuga de merda, escolhi um serviço que me deixa ficar escondido, atrás de um balcão, e agora me obrigas a arrastar as avariadas pernas como um caranguejo caminhando sobre vidro…”.
Desta feita, a voz do funcionário, bem real, impõe-se, em sentida súplica:
Não faça isso, patrão Doutor, não faça isso!
O médico detém-se apenas em frente da porta do misterioso quarto, esse recanto que ninguém ousa visitar. O coxo gesticula fervorosamente, rodando em redor do estrangeiro como um corvo de asa quebrada.
O português ainda hesita ao sentir a maçaneta da porta ceder. E suspende o gesto a meio. Que surpresa lhe reservaria o amaldiçoado aposento? Sangue espalhado nas paredes, o cheiro nauseabundo de cadáver, um despedaço de corpo?
Olhos semicerrados, Sidónio vence o medo e empurra com violência a porta. O quarto está limpo, sem cheiro, sem sinais de violência. Pelo contrário, respira-se ali a tranquila ordem de um mosteiro, as roupas lavadas e passadas a ferro, impecavelmente pousadas em cima da cama. Um par de óculos, uma pulseira e um bloco de apontamentos estão alinhados sobre a mesinha-de-cabeceira.
Quem está aqui?
Ninguém.
Como ninguém?
Esteve. Já não está.
Foi-se embora? Saiu da pensão?
Não saiu da pensão. Saiu da vida.
Morreu? Como foi que morreu?
Isso não sei. Quem pode dizer é o patrão. Quer dizer, o outro patrão.
Ninguém veio buscar as coisas dele?
Feche a porta, Doutor, e dê-me a chave, eu vou ser castigado por isto…
O resto da conversa resvala na metafísica. Quem tinha vivido ali? O recepcionista, subterfugitivo, vagueia: não existe o ter vivido. Viver é um verbo sem passado.
Mia Couto, in Venenos de Deus, remédios do Diabo

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