quinta-feira, 27 de julho de 2017

Uma fábula

Para Sérgio Augusto

Em 1956, quando completei quatro anos de idade, nossa família deixou um sobrado antigo na Joaquim Nabuco e se mudou para uma casa com traços modernistas na avenida Getúlio Vargas, também no centro de Manaus.
Do nome da avenida à imagem foi apenas um salto no tempo: em 1959 vi o retrato de Vargas pendurado numa sala do grupo escolar Barão do Rio Branco: o rosto quase sério, o busto estufado dividido pela faixa presidencial, a cabeçorra enquadrada por hastes douradas. O retrato do presidente suicida sobrevivera numa sala de aula ensolarada da capital do Amazonas, como uma imagem descorada que parecia vir de outro tempo.
Na década de 1970, um retrato semelhante reapareceu nas paredes de escolas e repartições públicas dos povoados isolados e paupérrimos do rio Negro. Alguns ribeirinhos diziam que Vargas não cometera suicídio, insinuando que fora assassinado. Poucos sabiam quem era Médici ou Geisel, generais que presidiam o país naquela década. Outros juravam que Vargas ainda vivia: o “Pai dos pobres” era imortal.
Nas conversas domingueiras, quando todos se reuniam na casa de minha avó, Vargas era ao mesmo tempo venerado e odiado por dois parentes próximos. Toda vez que o suicida entrava na discussão da dupla, minha avó fechava portas e janelas e mandava as crianças jogarem futebol no quintal. Mesmo assim, o bate-boca na sala prevalecia sobre a algazarra do jogo. No fim, a matriarca intrometia-se na discussão:
Chega!”, ela berrava. “Esse Vargas não era santo nem demônio. Era político, e isso diz tudo.”
Um desses parentes foi um adepto fervoroso do trabalhismo e suas “conquistas sociais”. O outro era ácido com Getúlio: um caudilho anão, um populista vulgar que tinha banido o Partido Comunista e perseguido intelectuais, artistas e sindicalistas…
No dia do suicídio, o primeiro estava morando no Rio. Escutou a notícia trágica quando almoçava com uma namorada no Saara. Parou de mastigar, largou os talheres, chorou; em seguida, largou a moça e foi engrossar a massa de enlutados.
Muitos anos depois ele mesmo confessou que perdera uma namorada linda por causa de um suicida.
O outro morava e estudava em São Paulo. Por volta das dez da manhã, saiu da pensão e se dirigiu ao antigo hotel Esplanada, atrás do Teatro Municipal. Garoava, e o Viaduto do Chá estava quase deserto. No saguão do hotel, um grupo de homens e mulheres conversava em francês. Então ele soube que no Esplanada haveria uma reunião da Sociedade dos Americanistas de Paris. Reconheceu e cumprimentou o antropólogo Paulo Duarte, que fora exilado durante a ditadura Vargas. Mal a notícia do suicídio chegou ao Esplanada, um cochicho bilíngue ecoou no saguão do hotel. Alguém abriu uma garrafa de Bordeaux, duas ou três vozes tentaram explicar a razão do suicídio.
Meu parente se surpreendeu com outro fato, não menos estranho: a ausência de comoção popular no centro de São Paulo.
Quando ele nos contou esse detalhe, não sei se foi traído pela memória ou pelo ódio a Vargas. Sei que ele e mais dois amigos permaneceram ali, esperando horas a fio um hóspede, até o fim da tarde fria de 24 de agosto.
Mas William Faulkner não desceu para dar autógrafos nem entrevistas: preferiu ficar bebendo e talvez escrevendo em seu quarto do Esplanada. Naquele ano, 1954, o grande escritor norte-americano publicou Uma fábula.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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