Para
Sérgio Augusto
Em
1956, quando completei quatro anos de idade, nossa família deixou um
sobrado antigo na Joaquim Nabuco e se mudou para uma casa com traços
modernistas na avenida Getúlio Vargas, também no centro de Manaus.
Do
nome da avenida à imagem foi apenas um salto no tempo: em 1959 vi o
retrato de Vargas pendurado numa sala do grupo escolar Barão do Rio
Branco: o rosto quase sério, o busto estufado dividido pela faixa
presidencial, a cabeçorra enquadrada por hastes douradas. O retrato
do presidente suicida sobrevivera numa sala de aula ensolarada da
capital do Amazonas, como uma imagem descorada que parecia vir de
outro tempo.
Na
década de 1970, um retrato semelhante reapareceu nas paredes de
escolas e repartições públicas dos povoados isolados e paupérrimos
do rio Negro. Alguns ribeirinhos diziam que Vargas não cometera
suicídio, insinuando que fora assassinado. Poucos sabiam quem era
Médici ou Geisel, generais que presidiam o país naquela década.
Outros juravam que Vargas ainda vivia: o “Pai dos pobres” era
imortal.
Nas
conversas domingueiras, quando todos se reuniam na casa de minha avó,
Vargas era ao mesmo tempo venerado e odiado por dois parentes
próximos. Toda vez que o suicida entrava na discussão da dupla,
minha avó fechava portas e janelas e mandava as crianças jogarem
futebol no quintal. Mesmo assim, o bate-boca na sala prevalecia sobre
a algazarra do jogo. No fim, a matriarca intrometia-se na discussão:
“Chega!”,
ela berrava. “Esse Vargas não era santo nem demônio. Era
político, e isso diz tudo.”
Um
desses parentes foi um adepto fervoroso do trabalhismo e suas
“conquistas sociais”. O outro era ácido com Getúlio: um
caudilho anão, um populista vulgar que tinha banido o Partido
Comunista e perseguido intelectuais, artistas e sindicalistas…
No
dia do suicídio, o primeiro estava morando no Rio. Escutou a notícia
trágica quando almoçava com uma namorada no Saara. Parou de
mastigar, largou os talheres, chorou; em seguida, largou a moça e
foi engrossar a massa de enlutados.
Muitos
anos depois ele mesmo confessou que perdera uma namorada linda por
causa de um suicida.
O
outro morava e estudava em São Paulo. Por volta das dez da manhã,
saiu da pensão e se dirigiu ao antigo hotel Esplanada, atrás do
Teatro Municipal. Garoava, e o Viaduto do Chá estava quase deserto.
No saguão do hotel, um grupo de homens e mulheres conversava em
francês. Então ele soube que no Esplanada haveria uma reunião da
Sociedade dos Americanistas de Paris. Reconheceu e cumprimentou o
antropólogo Paulo Duarte, que fora exilado durante a ditadura
Vargas. Mal a notícia do suicídio chegou ao Esplanada, um cochicho
bilíngue ecoou no saguão do hotel. Alguém abriu uma garrafa de
Bordeaux, duas ou três vozes tentaram explicar a razão do suicídio.
Meu
parente se surpreendeu com outro fato, não menos estranho: a
ausência de comoção popular no centro de São Paulo.
Quando
ele nos contou esse detalhe, não sei se foi traído pela memória ou
pelo ódio a Vargas. Sei que ele e mais dois amigos permaneceram ali,
esperando horas a fio um hóspede, até o fim da tarde fria de 24 de
agosto.
Mas
William Faulkner não desceu para dar autógrafos nem entrevistas:
preferiu ficar bebendo e talvez escrevendo em seu quarto do
Esplanada. Naquele ano, 1954, o grande escritor norte-americano
publicou Uma fábula.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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