terça-feira, 25 de julho de 2017

Quemadmodum

E é um gato. (Pela janela as grandes gaivotas do mar nunca entram, não está em nosso poder.) Saltara do chão à mesa, sem esforço o erguer-se, nada o sustentando ou suspendendo, tal nas experiências mágicas. São mestres de alta insinuação, silêncio. Dele, claro, tem-se só um avesso. Tudo é recado. Coisas comuns comunicam, ao entendedor, revelam, dão aviso. Raras, as outras, diz-se respondem apenas a alguma fórmula em nossa mente — penso, tranquiliza às vezes achar com rapidez. Mais há, vaga, na gente, a vontade de não saber, de furtarmo-nos ao malesquecido; o inferno é uma escondida recordação. O gato, gris. Não mero ectoplasma, mas corpóreo, real como o proto-eu profundíssimo de Fichte ou bagaço de cana chupada pelo menino corcunda. O gato de capuz. Se em estórias, ele logo falava: — “Meu senhor, dono da casa...” A lâmpada não o tira de penumbra. Seus olhos me iluminam mui fracamente.
Apareceu, ao querer começar a noite, feito sorriso e raio, e conquanto como entende de cavernas e corujas. A aventura é intrometida. Antes de cochilar, eu a ele me acostumara; decerto estranho-o, agora, quando o rapto de mim mesmo me faz falta. Que mundo é este, em que até insônia a gente tem! Desenrola volutas, ilude e imita o desenho de alma do amoroso. Circunscreve-se. Vá fosse um vulgar, sem ornato, gato de sarjeta. Porém, não: todo de lenda, de origem — corpo leonino, a barba cerimonial, rosto quase humano — formulador de pergunta. Senta-se nas patas de trás, por uma operação de inteligência. Convidado para sonhar eu morava perto de alguma mulher desconhecida... A beleza insiste — ao som de tornozelos e opalas, as danaides do mundo seco. A vida, essa função inevitável. Suas pupilas endireitam-se em quarto minguante. Só é preciso perder-se, a todo instante, o equilíbrio?
— “Bast...” Ouvisse-me. Sem fu nem fufo, nenhum bufido. Temo enxotá-lo, de quantas sombras. Quieto, quedo — “Sape-te!” Não é um sonho. Resiste, imoto. Imóvel pedra a cara, barbas até à testa, pintadas, crivadas as bochechas, donde os bigodes. Desfecha ideias. Amor mínimo qualquer preenche abismos formidáveis (não de sonho; no sonho só há ½ dimensão, nenhuma desordem)... E está aqui, idosamente, quer-se que em si imerso. Descobriu o fulgor da monotonia. O tempo é o absurdo de sua presença. (A que alvo buquê de dedos longos... mentiu que sorriu... Ininteligimo-nos. O adeus estreita-nos...) O tempo, fazedor, separador, escolhedor. Talvez eu tenha sido sozinho. Ainda vou viver anos, meses, minutos. Saio. Ora, deixemo-nos do que somos.
Sua dela lembrança, incristalizável — resumo de vertigens, indefinível como qualquer dor. Longe de nós, há alegria. Os ônibus tinham festa dentro. — “Fale e vou...” — digo, entre mim. É profundo o futuro: é. O passado é urgente... Marraxo! Morrongo.
Comina-me. Capta o menor movimento, esperdiçando perspicácia, decifrador de mímicas. Por um evo. Tem-me no centro de sua visão. O gato, inominado. Despiu-se de qualquer fácil realidade. (Ela — padeço-a, entre o eu inexistente e o movediço mim. Se para sempre? — por minha culpa, ignorância privativa...) Sentado, arrumadas retamente à frente as patas dianteiras, fita-me com fantasia luminosa, assesta-me os poderes mais sutis.
— “Quem é você?” — a interminável questão. Agora engatinho, ando, apoio-me: contra o nada, só minha memória trabalha, quase vencida. Juro por Tutmés, deus! E o mundo come-nos. Creio, que digo: — “Eu sou a minha própria lacuna, e todas...” — resposta de abismo a abismo.
Então, sim, sou. Ele apagou os olhos. Tem de ir-se, quando eu readormecer, como brinca o menino cego, no inesperado sossego. Salta, quadrilongo e real, sem pena o alar-se, precipita-se, feito impelido por meiga mão. Some-se, em esfumo — e contudo belo diverso, como uma análise de poema. A janela exata, a imensa curva da noite, o fundo, não são o contrário de mim; talvez seja-se o mesmo. Só podemos alcançar sábios extratos de delírios.
E ei-la (sua lembrança apaziguada) forma subsistente. Tanto o telefone é um frêmito, calado, na madrugada, na vida. Mas, a voz. A que o menino surdo sabe de cor. (Quem sabe a palavra mais doce: b u l b u l — como os árabes chamam o rouxinol.)
Guimarães Rosa, in Ave, palavra

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