E
é um gato. (Pela janela as grandes gaivotas do mar nunca entram, não
está em nosso poder.) Saltara do chão à mesa, sem esforço o
erguer-se, nada o sustentando ou suspendendo, tal nas experiências
mágicas. São mestres de alta insinuação, silêncio. Dele, claro,
tem-se só um avesso. Tudo é recado. Coisas comuns comunicam, ao
entendedor, revelam, dão aviso. Raras, as outras, diz-se respondem
apenas a alguma fórmula em nossa mente — penso, tranquiliza às
vezes achar com rapidez. Mais há, vaga, na gente, a vontade de não
saber, de furtarmo-nos ao malesquecido; o inferno é uma escondida
recordação. O gato, gris. Não mero ectoplasma, mas corpóreo, real
como o proto-eu profundíssimo de Fichte ou bagaço de cana chupada
pelo menino corcunda. O gato de capuz. Se em estórias, ele logo
falava: — “Meu senhor, dono da casa...” A lâmpada não
o tira de penumbra. Seus olhos me iluminam mui fracamente.
Apareceu,
ao querer começar a noite, feito sorriso e raio, e conquanto como
entende de cavernas e corujas. A aventura é intrometida. Antes de
cochilar, eu a ele me acostumara; decerto estranho-o, agora, quando o
rapto de mim mesmo me faz falta. Que mundo é este, em que até
insônia a gente tem! Desenrola volutas, ilude e imita o desenho de
alma do amoroso. Circunscreve-se. Vá fosse um vulgar, sem ornato,
gato de sarjeta. Porém, não: todo de lenda, de origem — corpo
leonino, a barba cerimonial, rosto quase humano — formulador de
pergunta. Senta-se nas patas de trás, por uma operação de
inteligência. Convidado para sonhar eu morava perto de alguma mulher
desconhecida... A beleza insiste — ao som de tornozelos e opalas,
as danaides do mundo seco. A vida, essa função inevitável. Suas
pupilas endireitam-se em quarto minguante. Só é preciso perder-se,
a todo instante, o equilíbrio?
—
“Bast...” Ouvisse-me. Sem fu
nem fufo, nenhum bufido. Temo enxotá-lo, de quantas sombras. Quieto,
quedo — “Sape-te!” Não é um sonho. Resiste, imoto.
Imóvel pedra a cara, barbas até à testa, pintadas, crivadas as
bochechas, donde os bigodes. Desfecha ideias. Amor mínimo qualquer
preenche abismos formidáveis (não de sonho; no sonho só há ½
dimensão, nenhuma desordem)... E está aqui, idosamente, quer-se que
em si imerso. Descobriu o fulgor da monotonia. O tempo é o absurdo
de sua presença. (A que alvo buquê de dedos longos... mentiu que
sorriu... Ininteligimo-nos. O adeus estreita-nos...) O tempo,
fazedor, separador, escolhedor. Talvez eu tenha sido sozinho. Ainda
vou viver anos, meses, minutos. Saio. Ora, deixemo-nos do que somos.
Sua
dela lembrança, incristalizável — resumo de vertigens,
indefinível como qualquer dor. Longe de nós, há alegria. Os ônibus
tinham festa dentro. — “Fale e vou...” — digo, entre
mim. É profundo o futuro: é. O passado é urgente... Marraxo!
Morrongo.
Comina-me.
Capta o menor movimento, esperdiçando perspicácia, decifrador de
mímicas. Por um evo. Tem-me no centro de sua visão. O gato,
inominado. Despiu-se de qualquer fácil realidade. (Ela — padeço-a,
entre o eu inexistente e o movediço mim. Se para sempre? — por
minha culpa, ignorância privativa...) Sentado, arrumadas retamente à
frente as patas dianteiras, fita-me com fantasia luminosa, assesta-me
os poderes mais sutis.
— “Quem
é você?” — a interminável questão. Agora engatinho, ando,
apoio-me: contra o nada, só minha memória trabalha, quase vencida.
Juro por Tutmés, deus! E o mundo come-nos. Creio, que digo: — “Eu
sou a minha própria lacuna, e todas...” — resposta de abismo
a abismo.
Então,
sim, sou. Ele apagou os olhos. Tem de ir-se, quando eu readormecer,
como brinca o menino cego, no inesperado sossego. Salta, quadrilongo
e real, sem pena o alar-se, precipita-se, feito impelido por meiga
mão. Some-se, em esfumo — e contudo belo diverso, como uma análise
de poema. A janela exata, a imensa curva da noite, o fundo, não são
o contrário de mim; talvez seja-se o mesmo. Só podemos alcançar
sábios extratos de delírios.
E
ei-la (sua lembrança apaziguada) forma subsistente. Tanto o telefone
é um frêmito, calado, na madrugada, na vida. Mas, a voz. A que o
menino surdo sabe de cor. (Quem sabe a palavra mais doce: b u l b
u l — como os árabes chamam o rouxinol.)
Guimarães
Rosa, in Ave, palavra
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