sábado, 8 de julho de 2017

Para quem será?

Sem razão aparente alguma, sem que eu a tivesse chamado, uma parábola de Jesus saiu por iniciativa própria do arquivo da minha memória em que ela se encontrava guardada fazia muitos anos:

Havia um homem rico cujas terras lhe deram grande colheita. E pensava consigo mesmo: “O que vou fazer? Não tenho onde guardar a colheita.” Disse então: “Já sei o que vou fazer; vou derrubar os celeiros para fazê-los maiores e ali guardar todo o trigo e os meus bens. E direi à minha vida: Tens muitos bens armazenados para muitos anos. Descansa, come, bebe, regala-te.” Deus, porém, lhe disse: “Insensato! Ainda nesta mesma noite tirarão a tua vida. E para quem ficará tudo o que acumulaste?” (Lucas 12,16-21).

Ouvi muitos sermões sobre esse texto. Os pregadores gostavam dele. Usavam-no para amedrontar os homens com a possibilidade da morte e com os horrores do inferno. Dessa forma, com frequência conseguiam submetê-los à sua manipulação espiritual. Mas a parábola não fala sobre isso. A sua pungência se encontra na pergunta terrível: “Para quem ficará tudo o que acumulaste?”
Acumular é um dos mais profundos instintos da alma. Porque a alma ama. O amor deseja possuir. Se amo a casinha de paredes brancas e janelas azuis, por que não possuí-la, se posso? Se ela for minha, eu cuidarei dela, plantarei um jardim. Se amo a cachorrinha que brinca, por que não possuí-la? Se eu, que a amo, a possuir, cuidarei dela e nós dois passearemos pelo parque. Se amo a música que ouço, por que não possuir o CD? Eu o levarei para casa e poderei gozá-lo quantas vezes quiser. O amor é onívoro – quer comer tudo. Comer é a forma mais radical de possuir. Comendo, o que estava fora e era outro passa a ser parte do meu próprio corpo. “Sou onívoro de sentimentos, de seres, de livros, de acontecimentos e lutas. Comeria toda a terra. Beberia todo o mar”, dizia Neruda.
Eu ajuntei muitas coisas e estou sendo perturbado pela pergunta da parábola: “Para quem ficará tudo o que acumulaste?” Quando o que se acumulou se resume a bens e dinheiro, a resposta é fácil. Dinheiro e bens são valores que se medem por meio de números. Assim, basta dividir o total pelo número dos herdeiros definidos legalmente e dar a cada um a parte que lhe cabe.
Mas e as outras coisas que acumulei? Jesus comparou o corpo a um tesouro do qual cada um tira as coisas que ajuntou. Cada pessoa tem um tesouro que é único, só seu. No meu tesouro há uma quantidade enorme de coisas absolutamente inúteis, que não têm nenhum valor de mercado. Livros usados, alguns, os que mais amo, já caindo aos pedaços, de tanto amor que fizemos. Há os CDs – gosto particular meu. Outros não teriam paciência para ouvi-los. Como esse que estou ouvindo agora, três suítes para violoncelo de Bach, transcritas para flauta doce. Quadros – o mais querido sendo Mulher lendo uma carta (sempre que falo sobre essa tela de Vermeer, quase choro). Livros de poesia, literatura, arte, jardins. Um peso de papel de vidro verde-claro. Fotografias. Cartas. Memórias. Parece estranho, mas o fato é que memórias são também objetos que acumulamos. Estão guardadas no nosso tesouro. Há umas memórias das quais me livraria com prazer. Seria preciso inventar uma técnica de faxina de memórias: uma vez por ano, limpeza das memórias que fazem sofrer. Mas há as memórias que amo. Curioso: nenhuma delas é sobre acontecimentos importantes. São memórias-brinquedo: fico brincando com elas. E isso me faz feliz. Bobagens: a cena de um menino andando a cavalo de madrugada no meio do campo coberto com capim-gordura, o barulho da água caindo no monjolo, a música dolorida-apaixonada dos carros de boi, o apito rouco da maria-fumaça, as minhas cachorras, chupar jabuticaba no alto da jabuticabeira, momentos de amor leve com as pessoas que amo, e uma infinidade de cenas, como se fossem fotografias, que ficaram gravadas na minha memória. Quando eu morrer, vão se perder. Mas não quero que se percam. Tenho de dá-las para alguém que tome conta delas. Aí me vem a aflição por escrever. Quando escrevo, estou lutando contra a morte. A morte das coisas que o meu amor ajuntou e que vão se perder quando eu morrer.
Alberto Caeiro diz:

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
[...]
Quando me sento a escrever versos [...],
Sinto um cajado nas mãos [...],
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,
Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho.

Também sou guardador de rebanhos. Minhas ovelhas são minhas ideias. Para quem ficarão minhas ovelhas? Quem cuidará delas? Não quero que minhas ovelhas fiquem para um açougueiro. Açougueiro só reconhece ovelhas mortas penduradas em ganchos no açougue. Ovelhas são dinheiro. Mas minhas ovelhas não são dinheiro.
O que a gente acumula é parte da gente – porque somente o amado é acumulado. Como disse, tudo é fácil quando o que se acumula se resume a dinheiro. Quem só acumulou dinheiro é porque só amou dinheiro. A coisa se complica quando o que se ajuntou foram ovelhas. É preciso encontrar alguém que as ame, que tenha alma de pastor, que as chame pelo nome, que as conduza por pastos verdes e fontes de águas frescas, as defenda dos lobos e as acaricie ao fim da tarde.
Mas o fato é que não é possível acumular coisa alguma. O acumular é uma ilusão. Por isso Deus chamou o rico de insensato. Uma outra versão diz: “louco”, alguém que perdeu o juízo. Quem pensa que acumula é doido. Bernardo Soares, no Livro do Desassossego, medita num estilo que faz lembrar santo Agostinho nas Confissões:

Que possuímos? Que possuímos? Possuímos a alma? Ouve-me em silêncio. Nós não a possuímos. Nem a nossa alma é nossa sequer. Como, de resto, possuir uma alma? E se não possuo o meu corpo, como posso eu possuir com ele? Eu não possuo a minha alma – como posso possuir com ela?

Releio a parábola. Não me causa medo. Deus não tem vinganças a realizar. Mas a pergunta me atravessa: “Para quem ficará tudo o que acumulaste?” Quem cuidará do meu rebanho?
Mas, talvez, essa seja uma pergunta ociosa, impossível de ser respondida. Eu apenas tive a ilusão de possuir um rebanho, apenas tive a ilusão de haver acumulado objetos, memórias, ideias. Esse rebanho nunca foi meu. É um grande rebanho que pasta pelos pastos do mundo, ovelhas à procura de quem cuide delas. Por um tempo estiveram sob os meus cuidados: eu as chamava pelo nome. Depois sairão por aí e encontrarão um pastor. Muitos são os pastores. De vez em quando a gente topa com um deles, e então é aquela alegria. Tocamos flauta juntos. Assim, não há por que me preocupar. Minhas ovelhas não ficarão abandonadas.
Rubem Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente

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