quarta-feira, 12 de julho de 2017

O homem entre os bois

O convívio que lhe vem, entre solidão, e que nada acaba, é uma grande vida poderosa — tudo calma ou querela — arraia graúda de surdos-cegos, infância oceânica. Acompanha-o o lendário, margeia-o o noturno. O estouvado amor e as querências guardadas. O manso migrar sem razão, trans redondeza. A sábia alternância dos malhadores. Os vultos abalroantes, remoendo as horas, ao prazo de um calor em que o solo pede mais sombras. Os bois escoltando a escuridão até à porta de casa. O círculo de mugidos, lastimais, falando ao sangue ou à lua. O medo grande que de dia e de noite esvoaça, e que pousa na testa da rês como uma dor. Os touros que o demônio monta. O ódio como sobe da terra e o bailar de grotescas raivas. A queixa do bicho doente, de balançantes chifres, súplicas que não se dirigem a Deus nem ao homem. Os rastros que levam o chão para longínquas águas. As negras refeições remendadas dos corvos. Os rebanhos estrãos, removendo a paisagem. As sentinelas que eles traspassam, e que olham e admugem o horizonte. A poeira arribavã, sobre os matos, na fuga das manadas. A simetria obscurada das coisas, as folhas que crescem com virtudes. Os verdes que se vão e vêm, como relâmpagos tontos. A dança mágica do capim que a vaca vai comendo.
De tudo, ele ser, regra própria, crescido em si e taciturno, fazejo na precisão de haver sua ciência e de imitar instintos.
Guimarães Rosa, in Ave, palavra

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