Excelentíssimo
Senhor Destino,
Venho
por meio desta pedir encarecidamente a Vossa Senhoria que faça o
favor de parar de me perseguir, fato este que vem ocorrendo de forma
assídua e incansável (e às vezes bastante desagradável), desde
que eu nasci até os dias de hoje. Os acontecimentos diários que me
trouxeram ao atual estado de desespero em que me encontro são muitos
(afinal, são diários), mas, se eu fosse tomar seu tempo listando
aqui todas as vezes em que fui perseguido por Sua Excelência, o que
seria do destino da humanidade? Por essa razão, serei breve.
Quis
o Destino que o meu nascimento tenha ocorrido em pleno carnaval,
época em que todos os médicos viajam. A coitada da minha mãe ficou
horas sofrendo de trabalho de parto, pedindo a Deus que aparecesse
alguém no hospital, uma parteira, uma vizinha, meu pai, uma visita
(mesmo que fosse para o quarto do lado), qualquer um que resolvesse
aquele problema: eu. Finalmente, às cinco da manhã, conseguiram
arrastar um dermatologista fantasiado de índio diretamente do Baile
dos Casados, e assim foi. Nasci. Estava um calor desgraçado. A
roupinha bordada pela minha bisavó era de lã. Continuo alérgico.
Contava
eu com apenas cinco dias de idade quando meu encantador primo
Rodolfo, num lampejo de senso de justiça, concluiu que eu deveria
participar mais ativamente da festa em comemoração ao meu próprio
nascimento e me serviu uma mamadeira de feijoada com um pouco de
cerveja. Continuo sofrendo de úlcera. Quando eu estava com sete
meses, minha irmã mais velha me derrubou no chão (continuo com medo
de altura); no meu primeiro aniversário, morri de medo do palhaço
que contrataram (continuo com síndrome do pânico); com pouco mais
de cinco anos, rolei a escada (continuo rolando vida abaixo); aos
nove, o helicopterozinho que eu ganhei de Natal espatifou no meio da
rua, só porque eu resolvi arremessá-lo do 12 o andar.
Relevarei
aqui os vários arranhões no joelho, topadas de toda espécie,
tropeções, beliscões, recuperações em matemática e a infinidade
de tragédias que ocorreram durante a minha adolescência, incluindo
as espinhas e o fora que levei da Katya Regina. Levarei em
consideração que, na década de setenta, o senhor estava muito
ocupado com a ditadura e o destino do país. Mas não posso deixar de
culpá-lo pela vergonha que passei quando o meu zíper quebrou no dia
da minha formatura. Eu podia ter passado sem essa, não acha? Mesmo
assim, serei compreensivo. Pouparei Vossa Excelência das queixas
relativas ao século passado, Plano Collor, hiperinflação, o
“passarinho quer dançar” no programa do Gugu, e outras chacinas.
O
conteúdo deste documento se concentrará exclusivamente nos últimos
tempos. Lá vai.
Dois
mil e um. Réveillon: porre de cidra seguido de uma ressaca de
três dias. Abril: prendi o dedo na porta do carro. Páscoa: dois
quilos a mais. Agosto: toda a sorte de azares. Outubro: fui demitido.
Natal: tirei meu cunhado no amigo secreto.
Dois
mil e dois. Janeiro, fevereiro, março e abril: falta de dinheiro.
Maio: falta de dinheiro seguido de divórcio. Junho: falta de
dinheiro, apendicite e problemas com o plano de saúde.
Julho,
agosto e setembro: falta de dinheiro e vara de família. (Perdi a
ação movida pela minha ex-mulher e continuo deprimido e sem
dinheiro.) Evitarei comentar os engarrafamentos, a alta do dólar, os
aterradores índices de violência e a desigualdade social com o
intuito de me ater à sua perseguição particular em relação a
mim. A gota d’água, seu Destino, foi o reboco do banheiro que o
senhor jogou na minha cabeça ontem, causando um alagamento que
destruiu todos os meus móveis. Acho que não merecia tamanha
desconsideração vinda de sua pessoa, e nem venha me pedir desculpas
agora, pois dessa feita sua atitude foi totalmente indefensável.
Enquanto não ficar provado que o meu destino tem sido fruto de algum
problema operacional no seu sistema, continuarei me sentindo
pessoalmente ofendido com seus atos. Gostaria ainda de dizer, em
minha defesa, que não pedi para nascer e portanto não me coloquei
ao seu dispor. Nunca lhe dei meu nome ou endereço. Jamais aceitei
suas interferências em juízo ou fora dele. Não fui consultado a
respeito das minhas preferências. Sequer escolhi o tom da minha voz,
a cor dos meus olhos, meu manequim ou minha estatura. Compreendo que,
seja por hábito, seja por ofício, o seu destino é justamente esse:
meter-se nos destinos alheios. Talvez até não tenha sido escolha
sua. Nem por isso vejo razão para me submeter às suas vontades.
Aliás, esse seu poder absoluto e arbitrário, próprio de um tirano,
não condiz com seu tão sonoro nome. Alguém chamado Destino, com
tamanha influência no ciclo da vida, deveria ouvir as pessoas em vez
de agir sempre por conta própria. Afinal, nós não vivemos numa
democracia?
Certo
de que contarei com sua atenção, subestimo-me atenciosamente,
José
dos Santos Souza e Silva
Adriana
Falcão, in O doido da garrafa
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