terça-feira, 4 de julho de 2017

Mania de perseguição

Excelentíssimo Senhor Destino, 
 
Venho por meio desta pedir encarecidamente a Vossa Senhoria que faça o favor de parar de me perseguir, fato este que vem ocorrendo de forma assídua e incansável (e às vezes bastante desagradável), desde que eu nasci até os dias de hoje. Os acontecimentos diários que me trouxeram ao atual estado de desespero em que me encontro são muitos (afinal, são diários), mas, se eu fosse tomar seu tempo listando aqui todas as vezes em que fui perseguido por Sua Excelência, o que seria do destino da humanidade? Por essa razão, serei breve.
Quis o Destino que o meu nascimento tenha ocorrido em pleno carnaval, época em que todos os médicos viajam. A coitada da minha mãe ficou horas sofrendo de trabalho de parto, pedindo a Deus que aparecesse alguém no hospital, uma parteira, uma vizinha, meu pai, uma visita (mesmo que fosse para o quarto do lado), qualquer um que resolvesse aquele problema: eu. Finalmente, às cinco da manhã, conseguiram arrastar um dermatologista fantasiado de índio diretamente do Baile dos Casados, e assim foi. Nasci. Estava um calor desgraçado. A roupinha bordada pela minha bisavó era de lã. Continuo alérgico.
Contava eu com apenas cinco dias de idade quando meu encantador primo Rodolfo, num lampejo de senso de justiça, concluiu que eu deveria participar mais ativamente da festa em comemoração ao meu próprio nascimento e me serviu uma mamadeira de feijoada com um pouco de cerveja. Continuo sofrendo de úlcera. Quando eu estava com sete meses, minha irmã mais velha me derrubou no chão (continuo com medo de altura); no meu primeiro aniversário, morri de medo do palhaço que contrataram (continuo com síndrome do pânico); com pouco mais de cinco anos, rolei a escada (continuo rolando vida abaixo); aos nove, o helicopterozinho que eu ganhei de Natal espatifou no meio da rua, só porque eu resolvi arremessá-lo do 12 o andar.
Relevarei aqui os vários arranhões no joelho, topadas de toda espécie, tropeções, beliscões, recuperações em matemática e a infinidade de tragédias que ocorreram durante a minha adolescência, incluindo as espinhas e o fora que levei da Katya Regina. Levarei em consideração que, na década de setenta, o senhor estava muito ocupado com a ditadura e o destino do país. Mas não posso deixar de culpá-lo pela vergonha que passei quando o meu zíper quebrou no dia da minha formatura. Eu podia ter passado sem essa, não acha? Mesmo assim, serei compreensivo. Pouparei Vossa Excelência das queixas relativas ao século passado, Plano Collor, hiperinflação, o “passarinho quer dançar” no programa do Gugu, e outras chacinas.
O conteúdo deste documento se concentrará exclusivamente nos últimos tempos. Lá vai.
Dois mil e um. Réveillon: porre de cidra seguido de uma ressaca de três dias. Abril: prendi o dedo na porta do carro. Páscoa: dois quilos a mais. Agosto: toda a sorte de azares. Outubro: fui demitido. Natal: tirei meu cunhado no amigo secreto.
Dois mil e dois. Janeiro, fevereiro, março e abril: falta de dinheiro. Maio: falta de dinheiro seguido de divórcio. Junho: falta de dinheiro, apendicite e problemas com o plano de saúde.
Julho, agosto e setembro: falta de dinheiro e vara de família. (Perdi a ação movida pela minha ex-mulher e continuo deprimido e sem dinheiro.) Evitarei comentar os engarrafamentos, a alta do dólar, os aterradores índices de violência e a desigualdade social com o intuito de me ater à sua perseguição particular em relação a mim. A gota d’água, seu Destino, foi o reboco do banheiro que o senhor jogou na minha cabeça ontem, causando um alagamento que destruiu todos os meus móveis. Acho que não merecia tamanha desconsideração vinda de sua pessoa, e nem venha me pedir desculpas agora, pois dessa feita sua atitude foi totalmente indefensável. Enquanto não ficar provado que o meu destino tem sido fruto de algum problema operacional no seu sistema, continuarei me sentindo pessoalmente ofendido com seus atos. Gostaria ainda de dizer, em minha defesa, que não pedi para nascer e portanto não me coloquei ao seu dispor. Nunca lhe dei meu nome ou endereço. Jamais aceitei suas interferências em juízo ou fora dele. Não fui consultado a respeito das minhas preferências. Sequer escolhi o tom da minha voz, a cor dos meus olhos, meu manequim ou minha estatura. Compreendo que, seja por hábito, seja por ofício, o seu destino é justamente esse: meter-se nos destinos alheios. Talvez até não tenha sido escolha sua. Nem por isso vejo razão para me submeter às suas vontades. Aliás, esse seu poder absoluto e arbitrário, próprio de um tirano, não condiz com seu tão sonoro nome. Alguém chamado Destino, com tamanha influência no ciclo da vida, deveria ouvir as pessoas em vez de agir sempre por conta própria. Afinal, nós não vivemos numa democracia?
Certo de que contarei com sua atenção, subestimo-me atenciosamente,
José dos Santos Souza e Silva
Adriana Falcão, in O doido da garrafa

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