segunda-feira, 3 de julho de 2017

Conversas ao redor do fogão

Fonte: Google Imagens

Lembro-me da sala de visitas da casa do meu avô, num sobradão colonial, lá em Minas. Era um vasto espaço luminoso, que se abria para a praça da cidade em quatro portas envidraçadas que terminavam em sacadas de ferro. O assoalho, de largas tábuas brancas, dizia sua velhice por meio dos rústicos pregos de ferro feitos na bigorna. O teto, esculpido em relevo, sugeria riqueza por meio de frisos dourados. Um gigantesco espelho pendia, oblíquo, da parede dos fundos, duplicando o espaço. Quadros a óleo nas paredes. Vasos importados e bibelôs. Do meio do teto descia um lustre de cristal, que pendia sobre uma mesa hexagonal de mármore. Portas de vidros coloridos, azuis, amarelos, vermelhos, verdes, por onde o sol passava tingindo chão e paredes. Sofá e cadeiras de palhinha, escondendo idade, tão novos e intocados pareciam...
Quase sempre vazia. Não era lugar de convivência cotidiana. Como seu nome dizia, era sala de visitas. Por isso ficava bem na frente da casa, ao final de uma escadaria de dois lances. Dialética de deixar entrar sem deixar entrar. Estar dentro, mas quase fora, sem atingir a intimidade. Visitas podiam entrar, mas não podiam penetrar. Os segredos da casa ficavam assim protegidos... Ali se assentavam as pessoas de cerimônia, em ângulos retos, os homens de pernas cruzadas e botinas engraxadas, as mulheres de joelhos unidos. Servia-se cafezinho com sequilhos, e a conversa acontecia dentro dos limites de uma etiqueta silenciosa que todos respeitavam: “Em casa de enforcado não se fala em corda.” Não se permitem tropeções... Falava-se sobre política, eventos de conhecimento público, tempo, decadência dos costumes, e cuidava-se para que não houvesse silêncios. Os silêncios são sempre embaraçosos porque nunca se sabe o que o outro está pensando...
Os detalhes arquitetônicos podiam variar: havia casas ricas e casas pobres. Mas a filosofia da sala de visitas era sempre a mesma: mostrar o mínimo, elegantemente. O resto da casa – a vida que nela havia – tinha que ficar protegido.
Mas havia um outro lugar onde as visitas não entravam, lugar dos amigos: a cozinha. Ali as pessoas se assentavam à roda do fogão, e o corpo se libertava das regras da etiqueta. Espaço mágico presidido pelo fogo, o corpo livre do controle do espelho, ali aflorava uma outra verdade, pela sedução dos gostos e dos cheiros. O silêncio não incomodava, porque na cozinha havia um “estar juntos” que permitia a solidão, na encantada contemplação dos paus de lenha que gemiam e desprendiam os seus sucos ferventes pelas frestas de suas fibras. Os corpos experimentavam sua solidariedade com a comida, e os pensamentos ficavam diferentes. Os pensamentos que nascem do fogão não são os mesmos que vivem no espelho. O corpo na sala de visitas não é o mesmo corpo que aparece na cozinha.
Para ir até esse lugar, era preciso penetrar na casa; ele ficava longe da fachada: não se abria para a praça pública, mas para a horta murada. A cozinha ficava depois dos quartos e logo antes do banheiro: lugares de intimidades distintas...
Quem quer que tivesse inventado essa divisão do espaço da casa conhecia os segredos dos espaços do corpo. Pois a casa é uma extensão do corpo. Quem entra dentro de uma casa, entra dentro de um corpo... Os construtores das velhas casas sabiam das coisas da psicanálise. Pois ela diz que o corpo é assim. Tem uma sala de visitas luminosa onde qualquer um pode entrar. Só que, saindo-se dela, vai-se de novo para a praça pública. Vez por outra a cerimoniosa etiqueta é quebrada por acidentes imprevisíveis: cheiros que passam pelas frestas e trazem sugestões do que está sendo cozido no fogão; gemidos abafados, não se sabe se vêm de porões de tortura ou de alcovas de amor; crianças que irrompem correndo e fazem as perguntas proibidas; tropeções involuntários que mostram os convivas em posições inesperadas. Todos continuam gravemente assentados, a conversa prossegue de acordo com as regras, mas sabe-se silenciosamente que, se se penetrar lá dentro da casa, aparecerá uma outra verdade.
Também a sociologia sabe disso. O sociólogo é uma visita indiscreta que não se acanha em pedir para ir ao banheiro, não porque as pressões fisiológicas o obriguem a isso, mas porque as pressões da curiosidade não o deixam em paz. Diante das belas salas de visitas que podem ser vistas da rua, ele se pergunta sobre o que acontece lá dentro, onde a vista não alcança. Sabe-se que o visível é mentiroso: fachada. Por isso não resiste ao convite de um buraco de fechadura. Que haverá lá dentro, longe dos olhos? Uma inspiração, uma orgia, um culto estranho, monotonia, pessoas transformadas em lobisomens, clérigos em festins de amor?
Os mistérios sociais estão por detrás das fachadas”, diz Peter Berger. Os mistérios das casas mineiras, os mistérios da sociedade, os mistérios do corpo: tudo é muito parecido.
A teologia, coisa humana, não se furta a essa dialética da casa. Há uma teologia da sala de visitas e uma teologia da cozinha.
Na teologia da sala de visitas se falam as coisas respeitáveis sobre os mistérios de Deus, sobre os imperativos da ética, sobre as realidades da política. Como jogadores de xadrez, os participantes parecem absorvidos numa batalha – e por vezes os confrontos são ferozes, ao ponto do famoso “ódio teológico”. Mas as contradições de superfície escondem um acordo silencioso sobre as regras do jogo. Não se pode falar nem sobre os cheiros que vêm da cozinha, nem sobre os gemidos surdos de dor ou de prazer que se ouvem, nem sobre os embaraçosos tropeços que acontecem, vez por outra. Se, por acaso, uma criança travessa, ignorante das regras da etiqueta, entra na sala e diz uma coisa imprópria, o pai a fulmina com um olhar gélido, acolchoado em tonalidade paternal, que a reduz a um obsequioso silêncio, sob pena de punições mais severas.
Cansei-me da teologia da sala de visitas e moro agora na cozinha. A companhia me agrada. Primeiro, Lutero assentado à mesa com Mellanchton, bebendo sua cerveja. É dali que surge sua Tishrede, conversas ao redor da mesa... Ah! Como é bom fazer teologia assim! Para ser teólogo é preciso um pouco de loucura, pois Deus, quem quer que ele ou ela seja, não é um pássaro preso na gaiola da razão. Não está lá nos textos sagrados que a sabedoria de Deus é loucura? No entanto – e esta é uma lição que se aprende da história da igreja –, o fato é que todos os teólogos da cozinha têm sido estigmatizados com as marcas da heresia. E é triste contemplar o espetáculo dos teólogos da cozinha batendo nas portas da sala de visitas, pedindo por favor que se lhes abram as portas porque eles sabem jogar xadrez de acordo com as regras. Isso eu não faço mais. Se o pessoal da sala de visitas quiser entrar até a cozinha, aceitar ser seduzido pelos cheiros e gostos, concordar em beber um pouco de vinho, permitir-se ser levado pela loucura do Espírito (em inglês – deliciosa revelação semântica –, as bebidas alcoólicas têm o nome de spirits...), então poderemos conversar. Não existe nada de insólito nisso, pois, a se acreditar nos relatos inspirados, na experiência do Pentecostes, quando os “possuídos” começaram a falar línguas estranhas, o pessoal que estava na sala de visitas pensou que se tratava de uma orgia. “Estão todos bêbados”, eles disseram. Foi o que Hegel, esse estranho filósofo que tentou, sem êxito, misturar a cozinha com a sala de visitas, compreendeu muito bem, chegando mesmo a afirmar que “a razão é uma orgia bacanal na qual nem um só dos participantes está sóbrio”. Lá está também Feuerbach, que Marx malvadamente distorceu, dizendo que ele só pensava com os olhos. Mas, para Feuerbach, os olhos estão a serviço da boca, como acontece na cozinha. “Cada olhar é um olhar desejante...” “Somos o que comemos”, ele dizia (“man ist was man isst”). Lembro-me de que os lugares sagrados primitivos não eram nem salas de visitas, nem salas de aula, mas altares: fogões onde a carne era queimada. E os textos inspirados dizem que Deus gostava do cheiro pacificante que deles subia.
Na cozinha também se comem os caquis, coisa impensável na sala de visitas. Podem imaginar as visitas de cerimônia, com as mãos e bocas lambuzadas? Quem come caqui tem que aceitar ser criança. E, como não existe salvação a menos que nos tornemos crianças (coisa em que ninguém acredita...), tratei de fazer um ensaio de teologia comestível com o título “Sobre deuses e caquis”. Alguns comeram e gostaram. Outros comeram e não gostaram. Disseram que caqui não combina com a gravidade do Ser divino. Alegaram que eu não levava Deus a sério. Levo Deus muito a sério. Mas não levo a sério este caqui delicioso que se chama teologia. Se eu tivesse falado sobre as chagas de Cristo, tudo estaria bem. Feridas são respeitáveis; combinam com o Ser divino. Penso diferente. Quem é grave é o diabo. Ele se sente bem na sala de visitas. Mas Deus é Espírito, leve, faz todas as coisas voarem e dançarem.
Tenho a suspeita de que nossas conversas ecumênicas aconteçam sempre na sala de visitas, governadas pela dialética do entrar sem deixar entrar. Se se sentem cheiros culinários ou se se ouvem gemidos reveladores, todos observam respeitoso silêncio. Também as igrejas têm salas de visitas e cozinhas, só que nas cozinhas os visitantes não podem entrar. E me veio a hipótese, que desejo explorar, de que o respeitável discurso da ética e da política, que acontece segundo a etiqueta da sala de visitas, é uma forma de silenciar um outro discurso proibido, mal/dito: o discurso do amor.
A fala do poder não nos causa embaraço algum. Sobre ela não paira nenhum interdito. Tanto que, ao que me consta, as autoridades eclesiásticas, até o momento, não lançaram proibições sobre os rambos da vida nem sobre aqueles que se dedicam à fabricação das armas. No entanto, pudicos parlamentares evangélicos se movimentaram para que se retirassem, do salão do congresso, telas que mostravam os seios nus das mulheres, enquanto conservadores e liberais católicos se uniram para impedir a apresentação de Je vous salue, Marie! Camisinhas de Vênus são terrores infernais maiores que a violência do poder. Como disse alguém, censor é aquele que corta a cena quando o mocinho beija o seio da mocinha e deixa a cena quando o bandido corta o seio da mocinha. Brinco com a insólita possibilidade de que o discurso político tenha a função não confessada de silenciar o discurso erótico. É sintomático que, até agora, tanto as teologias conservadoras quanto as revolucionárias não tenham sido capazes de elaborar um discurso prazeroso, e muito menos um discurso sobre o prazer. A ética e a política parecem-me ser a continuação moderna do ascetismo que faz silêncio sobre as vozes do corpo. O discurso do sacrifício vai muito bem na sala de visitas.
Teologia ao redor do fogão: aquela que tem a coragem para penetrar nas intimidades da casa. Claro que ela é embaraçosa. Mas penso que esse é o único caminho para uma honestidade ecumênica. É preciso que nos assentemos juntos ao redor do fogo para ali falar sobre o fogo que queima dentro dos corpos que a sala de visitas congelou.
Rubem Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente

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