Castelo
de Berg am Irchel
Cantão
de Zurique
23
de fevereiro de 1921
Meu
querido Hausenstein,
quanta
razão você teve em me enviar precisamente esse livro! Fui
completamente tomado e desde ontem que o estou lendo. O que me
surpreende é que você tenha chegado a apresentar as condições, o
destino, a fatalidade dessa obra (incomensurável, sempre pensei):
você faz isso com uma infalibilidade e uma profundidade que não só
ajudam a compreender o trabalho de Klee como me parecem ser
decisivas, porque se tenta aqui realizar um corte único na situação
presente do artista.
Todos
nós vimos a vinda dessa fuga do acontecimento que se desenrola no
invisível, essa renúncia, preparada simultaneamente em todas as
partes de um mundo que se desliga do equivalente sensível. O
profundo desespero da criação em Cézanne, sua luta para “realizar”
me deram muitas vezes a impressão de uma violência, na tentativa de
voltar a unir, a qualquer preço, o objeto e sua significação; mas
já naquele momento o preço era a oblação, a renúncia cotidiana,
o sacrifício da vida em favor daquilo que nenhuma apropriação pode
subtrair.
Sobre
o que Cézanne fez, por mais prodigioso que tenha sido seu triunfo,
parece legível a palavra “fatalidade”. É graças ao fato de
você não ter hesitado em escrever isso, em inscrever isso na
existência de Klee, que você tem, no horizonte deste testemunho, a
liberdade necessária para caracterizar as alturas extraordinárias a
que pode chegar um homem, caso permaneça atento ao chamado dos dons
que lhe são próprios, e caso resista sempre à tentação de
empregar meios de expressão que não têm a exatidão a ser
atingida. Como os náufragos, ou como aqueles que ficam aprisionados
pelas geleiras do mar polar, e que ainda assim conseguem, até o fim,
recolher seus sofrimentos e suas emoções para traçar uma última
curva de vida na margem totalmente pura da folha em que, até então,
ninguém havia chegado; assim Klee (segundo o seu livro) se consagra
a descrever as associações e os contatos que nos ligam às
aparências defronte de nós. Estas, livres de conexões, se desviam
e o ajudam tão pouco que, “ébrio de ausência”, às vezes se
torna capaz de utilizar as formas como uma superabundância de sua
própria privação.
Talvez
aqui seja o ponto onde tem início a clarividência que o destaca, e
da qual tive um pressentimento no passado, na época em que (foi em
1915) pude ter na minha casa, durante vários meses, 40 trabalhos
dele.
Naquele
tempo eu já tinha adivinhado que seu desenho muitas vezes era
transcrição de música. Ou melhor, naquele período, inclusive sem
ele ter dito que sempre tocava violino, infatigavelmente, tinha
adivinhado essa transcrição da música. Para mim, esse é o ponto
mais desconcertante da sua existência de artista; pois, se a música
de fato oferece ao traço do lápis uma base de necessidades que
valem tanto num campo quanto no outro, em todo caso não consigo
observar sem algum abalo esse tipo de conivência das artes, dando as
costas para a natureza: como se um dia devêssemos sofrer um assalto
do inferno e nos encontrarmos espantosamente indefesos.
Acrescento
a essas linhas apressadas meus agradecimentos e saudações.
Sinceramente,
seu
Rainer
Maria Rilke
p.s.
Por acaso Klee (tudo isso me faz pensar nele) conhece minhas
observações publicadas com o título (que não é meu) de
Urgeräusch [ruído primordial]? Envie um exemplar para ele
com minhas saudações.
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