domingo, 16 de julho de 2017

Carta sobre Paul Klee



Castelo de Berg am Irchel
Cantão de Zurique
23 de fevereiro de 1921

Meu querido Hausenstein,

quanta razão você teve em me enviar precisamente esse livro! Fui completamente tomado e desde ontem que o estou lendo. O que me surpreende é que você tenha chegado a apresentar as condições, o destino, a fatalidade dessa obra (incomensurável, sempre pensei): você faz isso com uma infalibilidade e uma profundidade que não só ajudam a compreender o trabalho de Klee como me parecem ser decisivas, porque se tenta aqui realizar um corte único na situação presente do artista.
Todos nós vimos a vinda dessa fuga do acontecimento que se desenrola no invisível, essa renúncia, preparada simultaneamente em todas as partes de um mundo que se desliga do equivalente sensível. O profundo desespero da criação em Cézanne, sua luta para “realizar” me deram muitas vezes a impressão de uma violência, na tentativa de voltar a unir, a qualquer preço, o objeto e sua significação; mas já naquele momento o preço era a oblação, a renúncia cotidiana, o sacrifício da vida em favor daquilo que nenhuma apropriação pode subtrair.
Sobre o que Cézanne fez, por mais prodigioso que tenha sido seu triunfo, parece legível a palavra “fatalidade”. É graças ao fato de você não ter hesitado em escrever isso, em inscrever isso na existência de Klee, que você tem, no horizonte deste testemunho, a liberdade necessária para caracterizar as alturas extraordinárias a que pode chegar um homem, caso permaneça atento ao chamado dos dons que lhe são próprios, e caso resista sempre à tentação de empregar meios de expressão que não têm a exatidão a ser atingida. Como os náufragos, ou como aqueles que ficam aprisionados pelas geleiras do mar polar, e que ainda assim conseguem, até o fim, recolher seus sofrimentos e suas emoções para traçar uma última curva de vida na margem totalmente pura da folha em que, até então, ninguém havia chegado; assim Klee (segundo o seu livro) se consagra a descrever as associações e os contatos que nos ligam às aparências defronte de nós. Estas, livres de conexões, se desviam e o ajudam tão pouco que, “ébrio de ausência”, às vezes se torna capaz de utilizar as formas como uma superabundância de sua própria privação.
Talvez aqui seja o ponto onde tem início a clarividência que o destaca, e da qual tive um pressentimento no passado, na época em que (foi em 1915) pude ter na minha casa, durante vários meses, 40 trabalhos dele.
Naquele tempo eu já tinha adivinhado que seu desenho muitas vezes era transcrição de música. Ou melhor, naquele período, inclusive sem ele ter dito que sempre tocava violino, infatigavelmente, tinha adivinhado essa transcrição da música. Para mim, esse é o ponto mais desconcertante da sua existência de artista; pois, se a música de fato oferece ao traço do lápis uma base de necessidades que valem tanto num campo quanto no outro, em todo caso não consigo observar sem algum abalo esse tipo de conivência das artes, dando as costas para a natureza: como se um dia devêssemos sofrer um assalto do inferno e nos encontrarmos espantosamente indefesos.
Acrescento a essas linhas apressadas meus agradecimentos e saudações.
Sinceramente, seu

Rainer Maria Rilke

p.s. Por acaso Klee (tudo isso me faz pensar nele) conhece minhas observações publicadas com o título (que não é meu) de Urgeräusch [ruído primordial]? Envie um exemplar para ele com minhas saudações.

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