sexta-feira, 16 de junho de 2017

Sou um escritor de verdade (trecho)

Sou um escritor da verdade A verdade é geralmente desagradável, mas precisa ser dita. Nesse caso, a verdade é que Jenny não é uma moça bonita. Faz uma heroína lamentável para esta história. É baixa e gorda, com ondas de banha que caem por seu corpo. Sua burrice vai além. Na verdade, ela me dá nojo. Não: isso não é verdade, pois ela não me dá nojo. Mas ela provoca algo em mim que não é bom. Ela me entristece. Quando penso nela, um sentimento de desesperança toma conta de mim, um sentimento de que nada posso fazer em relação à desigualdade entre homens e mulheres. Não odeio Jenny, mas certamente desprezo as coisas que ela representa. Porém sou incapaz de dizer que coisas são essas.
Certo anoitecer, ofegante, ela entrou correndo em meu quarto com os braços estendidos. Urrava com deleite, seus olhos cinzentos rindo e rindo em triunfo. Afastei-me da máquina de escrever e pedi uma explicação.
Veja! — disse ela. — No meu pulso! Olhe só! Meu namorado me deu!
Era um relógio de pulso.
Jenny — falei. — Pelo amor de Deus, pare de dizer “namorado”. Eu abomino essa palavra. Eu a detesto!
O namorado de Jenny é um sujeito chamado Mike Schwartz. É judeu — e um tremendo de um homem, oitenta quilos, forte e quieto, que vem aqui quase toda noite visitar Jenny em seu quarto. Seu jeito forte e quieto não me engana. Pessoalmente, não sou nem uma coisa nem outra, mas sei que o jeito quieto nos grandalhões é inestimável. Quando ele sobe as escadas com seu jeito quieto posso facilmente entender o que ele quer de Jenny. Claro que posso entender! Sei que o jeito quieto tem sua utilidade.
Quanto ao relógio de pulso. Jenny é estenógrafa num escritório do centro de Los Angeles. Naquela tarde mesmo, disse ela, Mike Schwartz apareceu por lá. Chegou quieto, um homenzarrão carregando o relógio de pulso numa caixinha minúscula. Ficou parado lá, forte e quieto. Eu podia visualizar claramente toda a cena. Achei aquilo monstruoso; a verdade é que tenho de rir quando penso a respeito. Mike Schwartz perguntou a ela o que achava do relógio.
É uma gracinha — disse Jenny.
Uma gracinha! Deus do Céu! Que descrição grotesca. Uma gracinha! Que palavra desprezível! Um relógio de pulso pode ser interessante ou encantador ou até mesmo bonito. Mas nunca uma gracinha. Nunca! Só uma pessoa de inteligência limitada, como Jenny, poderia chamar um relógio de pulso de uma gracinha. Mike disse:
É para uma amiga minha, uma garota que vai se casar. É um presente de casamento.
Isso desapontou Jenny, que achava que o relógio era para ela. Sem outra palavra, ela devolveu o relógio para ele. Era uma gracinha e aquilo bastava. Posso ver toda a cena. Com o nariz empinado, ela devolveu o relógio.
Mike Schwartz começou a deixar o escritório. Deu as costas e caminhou para a porta. Estou contando exatamente o que Jenny me contou. Sou um escritor: vejo tudo muito claramente. Na porta, ele se virou e havia lágrimas em seus olhos. Lágrimas em seus olhos! Imaginem isso! Um homem forte e quieto, um gigante de um homem, com lágrimas nos olhos. Quero ser verdadeiro e, para mim, um homem de quarenta anos com lágrimas nos olhos é um asno. Ele se virou e havia lágrimas em seus olhos e, sem dúvida, lágrimas em sua camisa e em sua gravata, e ele voltou, caiu de joelhos diante de Jenny, que é gorda e tem vinte anos, e a triturou em seus braços.
Fique com ele, Jenny! — falou, arfando. — Fique com ele. Eu estava mentindo. Não é um presente de casamento. É para você. Fique com ele — para sempre!
Para sempre! Lágrimas nos olhos! Que espetáculo! Posso visualizá-lo e tive de rir e rir muito. Lá estava ele, um homem de quarenta, forte e quieto, soluçando, de joelhos, diante de uma garota vinte anos mais moça! Por Deus, é engraçado. Eu rio e rio. O imbecil! Tais lágrimas não teriam me comprado. Eu teria rido em sua cara.
Nem compraram Jenny. Mas Jenny é esperta, rápida, astuta. Agora o relógio se tornou mais do que uma gracinha. Era um relógio maravilhoso e ela chorava também. E lá estavam, duas pessoas chorando em cima de um mero relógio de pulso. E naquela noite Jenny trouxe o relógio para o meu quarto e me contou toda a estória, me aborreceu com aquela bobagem toda, contando-me que Mike Schwartz tocava sua alma e que ela chorava por toda a delicadeza dele.
Não pude aguentar, sr. Bandini — ela falou para mim, um escritor, um intérprete da psicologia humana.
Recusei-me a acreditar em Jenny. Além do mais, recuso-me a acreditar que ela chorou por aquele motivo. Ela é arguta demais, esperta demais, gorda demais para arrependimento ou ternura. Minha teoria é que, se ela chegou a chorar, suas lágrimas foram de alegria, de posse, porque agora ela era dona do relógio, ele lhe pertencia agora, e ela chorava de triunfo.
Deixe-me ver esse relógio — falei.
Examinei-o com indiferença. Era um Bulova Bagette ou alguma trivialidade dessas. Um minúsculo relógio de prata, com uma pulseira de prata agarrada a ele — um relógio realmente absurdo, um mero brinquedo, pois mal dava para ver o mostrador, menos ainda os ponteiros: uma piada de relógio, absurdo, e inadequado para ver as horas do dia. Virei-o na palma da minha mão. Havia arranhões na caixa, feridas feitas por um canivete, como se alguém tivesse arrancado um monograma. Um relógio de segunda mão. Indiscutivelmente, um relógio de segunda mão.
Rá! — exclamei. — Mercadoria usada! Um relógio de segunda mão! Precisamente o que suspeitei. O homem é uma fraude. Um malfeitor. Um charlatão barato.
Jenny sabia que era de segunda mão porque ela era realmente astuta. Sabia mais do que aquilo. Fora ao joalheiro e apreçara o relógio. Só Jenny para fazer isso mesmo!
Bem — eu disse. — O que foi que o joalheiro falou?
Recusou-se a me responder.
Bastante caro — afirmou ela.
Seja sincera, por favor — falei. — Sou um escritor, um homem da verdade. A hipocrisia é estranha à minha natureza. Quanto foi que o joalheiro disse que ele valia?
Um bocado — ela sorriu.
Pois bem — falei. — Longe de mim meter o bedelho nas suas atividades prosaicas. Mas se você quer saber a verdade, eu lhe digo aqui e agora que você pode conseguir um relógio muito melhor que esse por três dólares e cinquenta centavos. Um relógio bem melhor.
Devolvi o relógio a ela.
Existe pouco propósito em defender o homem diante de mim — expliquei. — Sem dúvida, ele é uma fraude. Um faquir perfeito. Ele é uma bugiganga. Me diverte ao enésimo grau. Quando você deixar esta sala, vou começar a rir dele.
Ela prendeu o relógio no seu pulso sem uma palavra e então saiu. Estava magoada. Não usa o relógio agora. Não o usou mais desde então. Ele jaz na gaveta de sua cômoda, numa caixinha que descobri uma noite em que vasculhei suas coisas em busca de cigarros.
O relógio de pulso não tem nenhum significado. Verdade que era um relógio barato e Mike Schwartz poderia ter comprado algo melhor. Mas Jenny vir ao meu quarto e perguntar o que eu achava dele — ah! Agora temos aí algo muito significativo! Revela suas próprias suspeitas. O escritor comum teria elogiado o relógio elaboradamente, distorcendo a verdade. Mas não eu. Minhas palavras apunhalavam como uma faca quente. Pois em seu coração ela sabe o que Mike Swartz realmente quer, e eu sei também. O relógio era um lamentável subterfúgio, um insulto. Mas, apesar de tudo, não é da minha conta, nem estou muito interessado.
John Fante, in A grande fome: Contos (1932-1959)

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