Sou
um escritor da verdade A verdade é geralmente desagradável, mas
precisa ser dita. Nesse caso, a verdade é que Jenny não é uma moça
bonita. Faz uma heroína lamentável para esta história. É baixa e
gorda, com ondas de banha que caem por seu corpo. Sua burrice vai
além. Na verdade, ela me dá nojo. Não: isso não é verdade, pois
ela não me dá nojo. Mas ela provoca algo em mim que não é bom.
Ela me entristece. Quando penso nela, um sentimento de desesperança
toma conta de mim, um sentimento de que nada posso fazer em relação
à desigualdade entre homens e mulheres. Não odeio Jenny, mas
certamente desprezo as coisas que ela representa. Porém sou incapaz
de dizer que coisas são essas.
Certo
anoitecer, ofegante, ela entrou correndo em meu quarto com os braços
estendidos. Urrava com deleite, seus olhos cinzentos rindo e rindo em
triunfo. Afastei-me da máquina de escrever e pedi uma explicação.
— Veja!
— disse ela. — No meu pulso! Olhe só! Meu namorado me deu!
Era
um relógio de pulso.
— Jenny
— falei. — Pelo amor de Deus, pare de dizer “namorado”. Eu
abomino essa palavra. Eu a detesto!
O
namorado de Jenny é um sujeito chamado Mike Schwartz. É judeu — e
um tremendo de um homem, oitenta quilos, forte e quieto, que vem aqui
quase toda noite visitar Jenny em seu quarto. Seu jeito forte e
quieto não me engana. Pessoalmente, não sou nem uma coisa nem
outra, mas sei que o jeito quieto nos grandalhões é inestimável.
Quando ele sobe as escadas com seu jeito quieto posso facilmente
entender o que ele quer de Jenny. Claro que posso entender! Sei que o
jeito quieto tem sua utilidade.
Quanto
ao relógio de pulso. Jenny é estenógrafa num escritório do centro
de Los Angeles. Naquela tarde mesmo, disse ela, Mike Schwartz
apareceu por lá. Chegou quieto, um homenzarrão carregando o relógio
de pulso numa caixinha minúscula. Ficou parado lá, forte e quieto.
Eu podia visualizar claramente toda a cena. Achei aquilo monstruoso;
a verdade é que tenho de rir quando penso a respeito. Mike Schwartz
perguntou a ela o que achava do relógio.
— É
uma gracinha — disse Jenny.
Uma
gracinha! Deus do Céu! Que descrição grotesca. Uma gracinha! Que
palavra desprezível! Um relógio de pulso pode ser interessante ou
encantador ou até mesmo bonito. Mas nunca uma gracinha. Nunca! Só
uma pessoa de inteligência limitada, como Jenny, poderia chamar um
relógio de pulso de uma gracinha. Mike disse:
— É
para uma amiga minha, uma garota que vai se casar. É um presente de
casamento.
Isso
desapontou Jenny, que achava que o relógio era para ela. Sem outra
palavra, ela devolveu o relógio para ele. Era uma gracinha e aquilo
bastava. Posso ver toda a cena. Com o nariz empinado, ela devolveu o
relógio.
Mike
Schwartz começou a deixar o escritório. Deu as costas e caminhou
para a porta. Estou contando exatamente o que Jenny me contou. Sou um
escritor: vejo tudo muito claramente. Na porta, ele se virou e havia
lágrimas em seus olhos. Lágrimas em seus olhos! Imaginem isso! Um
homem forte e quieto, um gigante de um homem, com lágrimas nos
olhos. Quero ser verdadeiro e, para mim, um homem de quarenta anos
com lágrimas nos olhos é um asno. Ele se virou e havia lágrimas em
seus olhos e, sem dúvida, lágrimas em sua camisa e em sua gravata,
e ele voltou, caiu de joelhos diante de Jenny, que é gorda e tem
vinte anos, e a triturou em seus braços.
— Fique
com ele, Jenny! — falou, arfando. — Fique com ele. Eu estava
mentindo. Não é um presente de casamento. É para você. Fique com
ele — para sempre!
Para
sempre! Lágrimas nos olhos! Que espetáculo! Posso visualizá-lo e
tive de rir e rir muito. Lá estava ele, um homem de quarenta, forte
e quieto, soluçando, de joelhos, diante de uma garota vinte anos
mais moça! Por Deus, é engraçado. Eu rio e rio. O imbecil! Tais
lágrimas não teriam me comprado. Eu teria rido em sua cara.
Nem
compraram Jenny. Mas Jenny é esperta, rápida, astuta. Agora o
relógio se tornou mais do que uma gracinha. Era um relógio
maravilhoso e ela chorava também. E lá estavam, duas pessoas
chorando em cima de um mero relógio de pulso. E naquela noite Jenny
trouxe o relógio para o meu quarto e me contou toda a estória, me
aborreceu com aquela bobagem toda, contando-me que Mike Schwartz
tocava sua alma e que ela chorava por toda a delicadeza dele.
— Não
pude aguentar, sr. Bandini — ela falou para mim, um escritor, um
intérprete da psicologia humana.
Recusei-me
a acreditar em Jenny. Além do mais, recuso-me a acreditar que ela
chorou por aquele motivo. Ela é arguta demais, esperta demais, gorda
demais para arrependimento ou ternura. Minha teoria é que, se ela
chegou a chorar, suas lágrimas foram de alegria, de posse, porque
agora ela era dona do relógio, ele lhe pertencia agora, e ela
chorava de triunfo.
—
Deixe-me ver esse relógio — falei.
Examinei-o
com indiferença. Era um Bulova Bagette ou alguma trivialidade
dessas. Um minúsculo relógio de prata, com uma pulseira de prata
agarrada a ele — um relógio realmente absurdo, um mero brinquedo,
pois mal dava para ver o mostrador, menos ainda os ponteiros: uma
piada de relógio, absurdo, e inadequado para ver as horas do dia.
Virei-o na palma da minha mão. Havia arranhões na caixa, feridas
feitas por um canivete, como se alguém tivesse arrancado um
monograma. Um relógio de segunda mão. Indiscutivelmente, um relógio
de segunda mão.
— Rá!
— exclamei. — Mercadoria usada! Um relógio de segunda mão!
Precisamente o que suspeitei. O homem é uma fraude. Um malfeitor. Um
charlatão barato.
Jenny
sabia que era de segunda mão porque ela era realmente astuta. Sabia
mais do que aquilo. Fora ao joalheiro e apreçara o relógio. Só
Jenny para fazer isso mesmo!
— Bem
— eu disse. — O que foi que o joalheiro falou?
Recusou-se
a me responder.
—
Bastante caro — afirmou ela.
— Seja
sincera, por favor — falei. — Sou um escritor, um homem da
verdade. A hipocrisia é estranha à minha natureza. Quanto foi que o
joalheiro disse que ele valia?
— Um
bocado — ela sorriu.
— Pois
bem — falei. — Longe de mim meter o bedelho nas suas atividades
prosaicas. Mas se você quer saber a verdade, eu lhe digo aqui e
agora que você pode conseguir um relógio muito melhor que esse por
três dólares e cinquenta centavos. Um relógio bem melhor.
Devolvi
o relógio a ela.
—
Existe pouco propósito em defender o
homem diante de mim — expliquei. — Sem dúvida, ele é uma
fraude. Um faquir perfeito. Ele é uma bugiganga. Me diverte ao
enésimo grau. Quando você deixar esta sala, vou começar a rir
dele.
Ela
prendeu o relógio no seu pulso sem uma palavra e então saiu. Estava
magoada. Não usa o relógio agora. Não o usou mais desde então.
Ele jaz na gaveta de sua cômoda, numa caixinha que descobri uma
noite em que vasculhei suas coisas em busca de cigarros.
O
relógio de pulso não tem nenhum significado. Verdade que era um
relógio barato e Mike Schwartz poderia ter comprado algo melhor. Mas
Jenny vir ao meu quarto e perguntar o que eu achava dele — ah!
Agora temos aí algo muito significativo! Revela suas próprias
suspeitas. O escritor comum teria elogiado o relógio elaboradamente,
distorcendo a verdade. Mas não eu. Minhas palavras apunhalavam como
uma faca quente. Pois em seu coração ela sabe o que Mike Swartz
realmente quer, e eu sei também. O relógio era um lamentável
subterfúgio, um insulto. Mas, apesar de tudo, não é da minha
conta, nem estou muito interessado.
John
Fante, in A grande fome: Contos (1932-1959)
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