Sua
condição de “apaixonado-pela-primeira-vez” o encheu de impulsos
literários. Você sentiu que uma experiência tão linda e única
como a do seu amor merecia ser transformada em livro. E agora você
me envia o seu manuscrito, pedindo minha opinião.
A
condição de “apaixonado-pela-primeira-vez” é perigosa,
tornando o apaixonado, frequentemente, tolo. Assim, quero adverti-lo
do perigo de tentar fazer literatura num surto de paixão. A paixão,
divina para os apaixonados, pode ficar piegas para o leitor que não
está apaixonado. A doce condição de apaixonado tende a lambuzar as
palavras com o seu melado, tornando o texto enjoativo. Segundo o
testemunho de Gabriel García Márquez no seu livro O amor nos
tempos do cólera, foi isso que fez com que Fiorentino Ariza
perdesse o emprego. Fiorentino era um escriturário numa companhia de
navegação. Além disso, era apaixonado pela Firmina Dazza,
adolescente. Aconteceu, entretanto, que, obedecendo às determinações
do pai, Firmina foi obrigada a se casar com o doutor Urbino.
Fiorentino quase enlouqueceu. O resultado foi que suas cartas de
escriturário, que deveriam ser inodoras cartas comerciais, passaram
a ter um indisfarçável perfume de paixão. Fiorentino foi
despedido.
“Apaixonados-pela-primeira-vez”
só deveriam escrever cartas de amor. E isso porque, havendo-os a
paixão privado da lucidez exigida pela literatura, tudo o que
escrevem parece maravilhoso para eles, sendo ridículo aos olhos dos
outros. “Todas as cartas de amor são ridículas”, disse Álvaro
de Campos. Ridículas para os que não estão apaixonados. Para os
apaixonados, obra-prima literária.
A
paixão mergulha as pessoas num mar de sentimentos, resultando daí
que tudo o que escrevem é pura emoção. Mas literatura e poesia não
se fazem com emoção. Quem o diz é Fernando Pessoa:
A
emoção não é a base da poesia. [...]
A
poesia é superior à prosa porque exprime não um grau superior de
emoção, mas, por contra, um grau superior do domínio dela.
Para
se escrever sobre a paixão é preciso estar na praia. É só da
praia que se pode contemplar o oceano. São poucos os que conseguem
escrever literariamente sobre a paixão enquanto mergulhados nas
funduras do oceano da paixão.
Aconselho-o,
portanto, por enquanto, a deixar de lado suas pretensões literárias
e a se dedicar à aprendizagem. Eu o aconselharia a ler o que dizem
da paixão duas mulheres que, havendo vivido paixões avassaladoras,
foram capazes de escrever sobre ela de forma comovedora e lúcida,
sem que a sua condição de apaixonadas tivesse diminuído o seu
vigor literário.
Leia
o livro da Lya Luft, O lado fatal: é sobre a paixão que ela
e o Hélio Pelegrino viveram. É impossível ler O lado fatal
sem chorar.
E
não deixe de ler Esse amor, esta dor, da Lenir Santos. O
livro é sobre a paixão que ela e o Guido Ivan de Carvalho viveram.
Uma vez escrevi uma crônica sobre um amigo muito querido que
morrera. Muitas pessoas ficaram tristes comigo pela morte do meu
amigo. Mas uma delas me disse: “Choro, não pela morte do seu
amigo. Choro porque sei que não chorarei como você chorou pela
morte de nenhum dos meus amigos...” Esse é o perigo da leitura do
livro da Lenir: chorar, não pela dor que ela teve e tem; chorar por
saber que é possível que a gente nunca chorará como ela, por não
ter tido, não ter e não vir a ter uma paixão parecida com a que
ela e o Guido viveram. Nos casos da Lya e da Lenir, a razão por que
a paixão não perturbou a literatura talvez se deva ao fato de a
morte lhes ter dado lucidez. “Tenho a lucidez de quem está para
morrer” (Fernando Pessoa). O Hélio Pelegrino e o Guido Ivan de
Carvalho morreram. Ao escreverem, elas estavam diante do Vazio. A
literatura e a poesia são as palavras que colocamos no Vazio – um
gesto: no lugar da ausência, um ramo de hortênsia (Cassiano
Ricardo)... Os apaixonados felizes não podem produzir literatura por
não estarem diante do Vazio. Estão diante do Pleno. E o Pleno não
precisa de palavras. Parodiando o Chico: “Literatura é escrever
uma carta para o amante que já morreu...” Literatura é sempre
sobre o que não é. É um bruxedo para o retorno do que já foi.
Lendo
o livro da Lenir, vi a volta acontecer. O passado ressuscitou: vi os
dois rindo, de mãos dadas, se amando. Você também verá.
Rubem
Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente
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