sexta-feira, 23 de junho de 2017

Que seria de nós sem o socorro que não existe?

Mesmo o mais corajoso entre nós só raramente tem coragem para aquilo que ele realmente conhece”, observou Nietzsche. Camus acrescentou um detalhe acerca da hora quando a coragem chega: “Só tardiamente ganhamos a coragem de assumir aquilo que sabemos.” Só tardiamente. Foi o que aconteceu comigo. Eu sabia, mas não tinha coragem de dizer. O mundo universitário que me cercava me amedrontava. Por prudência optei pelo silêncio. Aí, de repente, uma criança entrou na minha vida, tardiamente. Uma filha temporã. Foi ela que me fez ter coragem. Penso que Bachelard deve ter tido experiência semelhante. Se assim não fosse, como poderia ter afirmado que “a inquietação que temos pela criança sustenta uma coragem invencível”?
Foi a criança que me deu coragem para que eu deixasse que o inventor de estórias que em mim vivia calado pelo medo, falasse. Estória, não histórias, contrariando assim dicionários e revisores. O mundo dos escritores não é o mundo dos gramáticos. Guimarães Rosa tinha o mesmo problema. Começa Tutameia afirmando: “A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História.” A “história” nos abre o mundo das coisas acontecidas no passado. Mas as “estórias” nos levam para o mundo das coisas que nunca aconteceram e só existem na imaginação.
Disse que sou um “inventor” de estórias. Mas não é bem assim. As estórias não são inventadas pelo escritor da mesma forma como as músicas não são compostas pelo compositor. Estórias e músicas já existem em algum lugar místico. Escritores e compositores são seres que têm a graça de, repentinamente, se defrontarem com essas entidades, vindas não se sabe de onde, como se fossem emissárias de um outro mundo. Fernando Pessoa se espantava com isso e dizia que era como se um anjo que não conhecemos descesse à terra e com suas asas soprasse as brasas de lugares esquecidos... Uma coisa é certa: ao terminar a estória, vem o espanto de que a tenhamos escrito. E perguntamos: “Por que escrevi isto? Onde fui buscar isto? De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu... Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?”
Aconteceu assim comigo, sem se anunciar, de repente, sem preparo, sem credenciais. As estórias começaram a aparecer porque havia uma menina que precisava delas. Sim, precisava delas...
De noite, quando eu terminava a estória, ela me perguntava: “Papai, essa estória aconteceu de verdade?” Ela não era boba. Pequena, já tinha um agudo senso de realidade. Pássaros encantados, gigantes verdes, dragões dourados, panteras que falam, flores que empinam pipas, sementinhas que têm medo, gansos que envelhecem ficando cada vez mais leves até que voam na direção das montanhas onde cresce o fruto mágico vermelho – não são seres deste mundo. Nunca existiram. Assim conclui-se obrigatoriamente que as estórias são feitas com mentiras. Mas mentira é uma palavra tão feia! Ela tem o poder de matar qualquer palavra. Acontecia, entretanto, que minha filha amava as estórias. Elas eram belas, ela ficava encantada ao ouvi-las. O seu coração exigia que fossem verdadeiras. O amor deseja a eternidade da coisa amada. Acho que o padre Antônio Vieira deveria ter acabado de ouvir uma estória bonita quando escreveu: “Se os olhos veem com amor o que não é, tem de ser”. Minha filha filosofava sem saber. Perguntava-me sobre o estatuto ontológico da imaginação, lugar onde moram as estórias... E eu não podia dar a resposta. Era muito difícil para ela. A resposta seria: “Esta estória não aconteceu nunca para que aconteça sempre.” Romeu e Julieta, A Bela Adormecida, Cinderela, Édipo, O amor nos tempos do cólera, A terceira margem do rio, “O operário em construção”: essas estórias não aconteceram nunca. Mas a despeito disso queremos lê-las de novo, e todas as vezes que as re-lemos elas acontecem. A Palavra se faz carne... Prova disso são os tremores que percorrem nosso corpo, ora como riso, ora como choro. Se tivessem acontecido de fato, elas seriam criaturas da história, tempo do “nunca mais”. “Never more, never more”, repetia o corvo de Poe. “Nunca mais” é o tempo dos mortos, das sepulturas, do sem volta. Mas as estórias são criaturas do tempo da imaginação, tempo do eterno retorno, das repetições, das ressurreições. Quando se conta de novo uma estória, aquilo que nela aconteceu no passado imaginário se torna vivo no presente. Sim, já ouvimos a música muitas vezes. Sabemo-la de cor. Mas queremos ouvi-la de novo para sentir a sua beleza sempre presente, para rir e chorar. Assim é o tempo da imaginação. A alma é o lugar onde o amor guarda o que não aconteceu, sob a forma da imaginação, para que aconteça sempre.
Havíamos ido ao cinema ver o E.T. Minha filha, cinco anos, chorava convulsivamente ao voltar para casa. Depois do lanche, quis consolá-la das lágrimas que não paravam. “Vamos lá fora procurar a estrelinha do E.T.!”, sugeri. Ela me acompanhou. Mas o céu se cobrira de nuvens. Não havia nenhuma estrela visível. Fiquei sem saber o que dizer. Improvisei, então. Corri para trás de uma árvore e disse: “Venha! O E.T. está aqui!” Ela parou de chorar, olhou-me séria e disse com voz firme: “Papai, não seja bobo. O E.T. não existe.” Essa resposta realista e fria pegou-me desprevenido. Me defendi. Armei um xeque-mate: “Não existe? Então, por que é que você estava chorando?” O seu choro não era uma evidência de que ela acreditava na existência do E.T.? Mas quem levou o xeque fui eu. Foi isto que ela me respondeu: “Eu estava chorando por isso mesmo, porque o E.T. não existe.”
Eu, tolo, misturara o que não podia ser misturado. Tirara o E.T. do mundo da fantasia onde vivia – uma estrela distante, provavelmente vizinha da estrela sorridente, morada do Pequeno Príncipe – e o matara ao trazê-lo para o mundo real. Ela sabia mais do que eu. Sabia que o E.T. só existia no mundo da fantasia. Até a minha intervenção desastrada, o E.T. era real. A estória estava acontecendo. Por isso ela chorava. A alma chora pelo que não existe. Mas o seu choro parou de repente quando tirei o E.T. de sua estrela distante e o coloquei atrás da árvore do meu jardim. Acho que Fernando Pessoa teve muitos choros parecidos com o choro de minha filha. E foi para explicar o sem razões dos seus choros que ele escreveu:

O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão...

Ri muito ao reler, depois de muitos anos, o Cem anos de solidão. E sempre choro ao ler os poemas da poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen. Por que rimos e choramos por aquilo que não existe, aquilo que é fantasia? A resposta é simples: choramos e rimos porque a alma é feita com o que não existe, coisa que só os artistas sabem. “Somos feitos da mesma matéria dos nossos sonhos”, afirmava Shakespeare. Com o que concorda Manoel de Barros, rude poeta do Pantanal: “Tem mais presença em mim o que me falta”. E Miguel de Unamuno:

Recorda, pois, ou sonha, alma minha
a fantasia é tua substância eterna –
o que não foi;
com tuas figurações faze-te forte,
que isso é viver, e o restante é morte.

As estórias são flores que a imaginação faz crescer no lugar da dor. Minhas estórias cresceram das dores da minha filha, que eram minhas próprias dores. Por isso disse que comecei a escrever porque ela precisava delas, das estórias. Curar a dor, isso elas não podem fazer. Mas podem transfigurá-la. A imaginação é a artista que transforma o sofrimento em beleza. E a beleza torna a dor suportável. Por isso escrevo estórias: para realizar a alquimia de transformar dor em flor. Minhas estórias são as minhas poções mágicas... Não há contraindicações nem é preciso receitas…
Rubem Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente

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