“Mesmo
o mais corajoso entre nós só raramente tem coragem para aquilo que
ele realmente conhece”, observou Nietzsche. Camus acrescentou um
detalhe acerca da hora quando a coragem chega: “Só tardiamente
ganhamos a coragem de assumir aquilo que sabemos.” Só tardiamente.
Foi o que aconteceu comigo. Eu sabia, mas não tinha coragem de
dizer. O mundo universitário que me cercava me amedrontava. Por
prudência optei pelo silêncio. Aí, de repente, uma criança entrou
na minha vida, tardiamente. Uma filha temporã. Foi ela que me fez
ter coragem. Penso que Bachelard deve ter tido experiência
semelhante. Se assim não fosse, como poderia ter afirmado que “a
inquietação que temos pela criança sustenta uma coragem
invencível”?
Foi
a criança que me deu coragem para que eu deixasse que o inventor de
estórias que em mim vivia calado pelo medo, falasse. Estória,
não histórias, contrariando assim dicionários e revisores. O mundo
dos escritores não é o mundo dos gramáticos. Guimarães Rosa tinha
o mesmo problema. Começa Tutameia afirmando: “A estória
não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a
História.” A “história” nos abre o mundo das coisas
acontecidas no passado. Mas as “estórias” nos levam para o mundo
das coisas que nunca aconteceram e só existem na imaginação.
Disse
que sou um “inventor” de estórias. Mas não é bem assim. As
estórias não são inventadas pelo escritor da mesma forma como as
músicas não são compostas pelo compositor. Estórias e músicas já
existem em algum lugar místico. Escritores e compositores são seres
que têm a graça de, repentinamente, se defrontarem com essas
entidades, vindas não se sabe de onde, como se fossem emissárias de
um outro mundo. Fernando Pessoa se espantava com isso e dizia que era
como se um anjo que não conhecemos descesse à terra e com suas asas
soprasse as brasas de lugares esquecidos... Uma coisa é certa: ao
terminar a estória, vem o espanto de que a tenhamos escrito. E
perguntamos: “Por que escrevi isto? Onde fui buscar isto? De onde
me veio isto? Isto é melhor do que eu... Seremos nós neste mundo
apenas canetas com tinta com que alguém escreve a valer o que nós
aqui traçamos?”
Aconteceu
assim comigo, sem se anunciar, de repente, sem preparo, sem
credenciais. As estórias começaram a aparecer porque havia uma
menina que precisava delas. Sim, precisava delas...
De
noite, quando eu terminava a estória, ela me perguntava: “Papai,
essa estória aconteceu de verdade?” Ela não era boba. Pequena, já
tinha um agudo senso de realidade. Pássaros encantados, gigantes
verdes, dragões dourados, panteras que falam, flores que empinam
pipas, sementinhas que têm medo, gansos que envelhecem ficando cada
vez mais leves até que voam na direção das montanhas onde cresce o
fruto mágico vermelho – não são seres deste mundo. Nunca
existiram. Assim conclui-se obrigatoriamente que as estórias são
feitas com mentiras. Mas mentira é uma palavra tão feia! Ela tem o
poder de matar qualquer palavra. Acontecia, entretanto, que minha
filha amava as estórias. Elas eram belas, ela ficava encantada ao
ouvi-las. O seu coração exigia que fossem verdadeiras. O amor
deseja a eternidade da coisa amada. Acho que o padre Antônio Vieira
deveria ter acabado de ouvir uma estória bonita quando escreveu: “Se
os olhos veem com amor o que não é, tem de ser”. Minha filha
filosofava sem saber. Perguntava-me sobre o estatuto ontológico da
imaginação, lugar onde moram as estórias... E eu não podia dar a
resposta. Era muito difícil para ela. A resposta seria: “Esta
estória não aconteceu nunca para que aconteça sempre.” Romeu
e Julieta, A Bela Adormecida, Cinderela, Édipo, O amor nos tempos do
cólera, A terceira margem do rio, “O operário em construção”:
essas estórias não aconteceram nunca. Mas a despeito disso queremos
lê-las de novo, e todas as vezes que as re-lemos elas acontecem. A
Palavra se faz carne... Prova disso são os tremores que percorrem
nosso corpo, ora como riso, ora como choro. Se tivessem acontecido de
fato, elas seriam criaturas da história, tempo do “nunca mais”.
“Never more, never more”, repetia o corvo de Poe. “Nunca mais”
é o tempo dos mortos, das sepulturas, do sem volta. Mas as estórias
são criaturas do tempo da imaginação, tempo do eterno retorno, das
repetições, das ressurreições. Quando se conta de novo uma
estória, aquilo que nela aconteceu no passado imaginário se torna
vivo no presente. Sim, já ouvimos a música muitas vezes. Sabemo-la
de cor. Mas queremos ouvi-la de novo para sentir a sua beleza sempre
presente, para rir e chorar. Assim é o tempo da imaginação. A alma
é o lugar onde o amor guarda o que não aconteceu, sob a forma da
imaginação, para que aconteça sempre.
Havíamos
ido ao cinema ver o E.T. Minha filha, cinco anos, chorava
convulsivamente ao voltar para casa. Depois do lanche, quis
consolá-la das lágrimas que não paravam. “Vamos lá fora
procurar a estrelinha do E.T.!”, sugeri. Ela me acompanhou. Mas o
céu se cobrira de nuvens. Não havia nenhuma estrela visível.
Fiquei sem saber o que dizer. Improvisei, então. Corri para trás de
uma árvore e disse: “Venha! O E.T. está aqui!” Ela parou de
chorar, olhou-me séria e disse com voz firme: “Papai, não seja
bobo. O E.T. não existe.” Essa resposta realista e fria pegou-me
desprevenido. Me defendi. Armei um xeque-mate: “Não existe? Então,
por que é que você estava chorando?” O seu choro não era uma
evidência de que ela acreditava na existência do E.T.? Mas quem
levou o xeque fui eu. Foi isto que ela me respondeu: “Eu estava
chorando por isso mesmo, porque o E.T. não existe.”
Eu,
tolo, misturara o que não podia ser misturado. Tirara o E.T. do
mundo da fantasia onde vivia – uma estrela distante, provavelmente
vizinha da estrela sorridente, morada do Pequeno Príncipe – e o
matara ao trazê-lo para o mundo real. Ela sabia mais do que eu.
Sabia que o E.T. só existia no mundo da fantasia. Até a minha
intervenção desastrada, o E.T. era real. A estória estava
acontecendo. Por isso ela chorava. A alma chora pelo que não existe.
Mas o seu choro parou de repente quando tirei o E.T. de sua estrela
distante e o coloquei atrás da árvore do meu jardim. Acho que
Fernando Pessoa teve muitos choros parecidos com o choro de minha
filha. E foi para explicar o sem razões dos seus choros que ele
escreveu:
O
que me dói não é
O
que há no coração
Mas
essas coisas lindas
Que
nunca existirão...
Ri
muito ao reler, depois de muitos anos, o Cem anos de solidão.
E sempre choro ao ler os poemas da poeta portuguesa Sophia de Mello
Breyner Andresen. Por que rimos e choramos por aquilo que não
existe, aquilo que é fantasia? A resposta é simples: choramos e
rimos porque a alma é feita com o que não existe, coisa que só os
artistas sabem. “Somos feitos da mesma matéria dos nossos sonhos”,
afirmava Shakespeare. Com o que concorda Manoel de Barros, rude poeta
do Pantanal: “Tem mais presença em mim o que me falta”. E Miguel
de Unamuno:
Recorda,
pois, ou sonha, alma minha
– a
fantasia é tua substância eterna –
o
que não foi;
com
tuas figurações faze-te forte,
que
isso é viver, e o restante é morte.
As
estórias são flores que a imaginação faz crescer no lugar da dor.
Minhas estórias cresceram das dores da minha filha, que eram minhas
próprias dores. Por isso disse que comecei a escrever porque ela
precisava delas, das estórias. Curar a dor, isso elas não podem
fazer. Mas podem transfigurá-la. A imaginação é a artista que
transforma o sofrimento em beleza. E a beleza torna a dor suportável.
Por isso escrevo estórias: para realizar a alquimia de transformar
dor em flor. Minhas estórias são as minhas poções mágicas... Não
há contraindicações nem é preciso receitas…
Rubem
Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente
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