quinta-feira, 29 de junho de 2017

O dia dos cachorros (trecho)

O derrame de cachorros foi o primeiro sinal forte de que os homens não eram aqueles anjos que Amâncio estava querendo impingir. Mesmo se fizeram aquilo por simples brincadeira, mostraram completa desconsideração pelos direitos alheios.
Dois ou três dias antes o povo notou que os cachorros da tapera estavam ficando inquietos, turbulentos, aflitos como em véspera de uma grande caçada. À noite o alarido era tal que chegava a perturbar o sossego na cidade. A impressão geral era que os homens não estavam dando comida suficiente aos bichos. Seria por maldade? Ou distração? Ou falta de recursos? Talvez Geminiano pudesse dar uma explicação?
Cachorros? Esconjuro. Capetas. Capetas de quatro pés. Cachorros. — Foi só o que se conseguiu de Geminiano.
Quantos são, Gemi? Parece que são muitos.
Muitos? Dobre e ponha mais.
Uma dúzia? Dúzia e meia?
Que dúzia e meia! Dúzia e meia morre por dia.
Morre de quê?
Morre. Cai no chão, estrebucha e morre.
Onde arranjaram tantos?
Eu sei? Recebem.
De onde? Quem traz?
De longe. Do inferno. Quem traz é o capeta. Só pode ser. Cachorros! Peste!
Não adiantava mais falar com Geminiano. Aquele trabalho sem fim estava bulindo com o juízo dele. Ele agora preferia falar sozinho a conversar, e qualquer dia sairia por aí gritando e xingando a esmo, como o velho Inácio Medrado. Parece que toda a cidade precisa ter um louco na rua pra chamar o povo à razão; agora que Inácio não existia mais, Geminiano estava exercitando para preencher o lugar. Era certo que os homens tinham muito cachorro na tapera, a latomia que faziam não deixava dúvida; mas não podiam estar recebendo cachorros todos os dias sem parar, faltava o cabimento.
Os cachorros baixaram de repente, apanhando todo mundo de surpresa. A cidade estava engrenando na rotina do tomar café, do regar horta, do varrer casa, do arrear cavalo, quando os latidos rolaram estrada abaixo. As pessoas correram para as janelas, as cercas, os barrancos e viram aquela enxurrada avançando rumo à ponte, cobrindo buracos, subindo rampas, contornando pedras, aos destrambelhos, latindo sempre.
Nossa! É cachorro! É cachorro! E vem pra cá!
Ih, é cachorro! Escapuliram!
Os cachorros!
Feche a porta! Os cachorros!
Os meninos! Chame os meninos!
Corre, gente!
Fecha tudo!
Prepare porretes!
Portas batiam em toda parte, gente gritava, criança chorava, galinhas em pânico, mães ralhavam, batiam, sacudiam, rezavam, homens iam e vinham correndo, procurando espingarda, garrucha, porrete, outros apenas acendiam um cigarro e iam para a janela espiar.
Apesar da curiosidade, ninguém se aventurou a sair de casa. No largo e nas ruas desertas apenas alguns animais pastavam apáticos, alheios à ameaça ou talvez confiantes na eficiência dos cascos. Até os pássaros, percebendo alguma coisa no ar, retiraram-se prudentes para os galhos mais altos das árvores. Borboletas inocentes enfeitavam as margens do rego, e ali morreriam em poucos minutos pisadas, mordidas, desmanchadas como flores depois de ventania. O palco estava armado para os cachorros, e eles o ocuparam como demônios alucinados.
A vaga de pelos, de dentes, de patas, de rabos, de uivos chegou inteira e logo se espalhou por toda a parte farejando, raspando, acuando, regando pedras, barrancos, muros, raízes de árvores, unhando portas, choramingando, erguendo-se nas patas traseiras para ver se descobriam nas salas alguma coisa digna de atenção — e era repelida pelos moradores a varadas, lambadas, pauladas, até a tapas e chineladas.
Escorraçados da frente, os cachorros surgiam nos quintais quebrando plantas, revolvendo hortas, derrubando cercas, pulando muros, perseguindo galinhas, matando pintos, parando de vez em quando para retirar chumaços de penas da boca com as patas ou pelo processo de esfregar o focinho no chão. Os homens tentavam espantá-los a pedradas, apanhavam uma pedra e ficavam tontos com ela na mão, não sabendo para que lado jogar, os cachorros eram muitos e vinham de todos os lados, nem tomavam conhecimento da gente, pareciam estar à procura de alguma coisa mais importante. Às vezes se ouvia um tiro e um ganido, que o alarido geral abafava.
Era impossível saber quantos seriam, quem tentou calcular por alto desistiu alarmado, eles estavam sempre passando e pareciam nunca acabar de passar. Pelo meio da manhã o cheiro de pelo suado, de urina concentrada, de estrume pisado era tão forte que invadia as casas e obrigava as pessoas a queimarem ervas para espantar a morrinha.
Fechadas em casa, abanando-se contra a fumaça, enervadas com os latidos, as pessoas tapavam os ouvidos, pensavam e não conseguiam compreender aquela inversão da ordem, a cidade entregue a cachorros e a gente encolhida no escuro, sem saber o que aconteceria a seguir. Às vezes um cachorro aparecia dentro de uma casa, vindo não se sabe por onde, pondo as pessoas em pânico. O cachorro olhava para um, para outro, escolhia uma pessoa, chegava-se para ela, abanando o rabo. A pessoa se encolhia, guardava as mãos, as pernas, e não achava voz para espantá-lo. O cachorro insistia, farejava, esperando: nenhum agrado vinha, ele desistia e se retirava desapontado, a cabeça baixa, o rabo quase colado nas pernas. Outros entravam por um lado, varavam a casa e procuravam saída pelo outro lado, riscando a porta com as patas, ajudando com o focinho, ganindo o tempo todo, até que alguém criava coragem, abria a porta e ele saía disparado atrás de uma caça invisível. Houve casos também de cachorros entrando numa casa, indo direto aos quartos e saindo com chinelas, sapatos, roupas, tudo o que pudessem agarrar com a boca, lençóis eram arrastados pelos quintais, estraçalhados em espinhos de roseiras ou mandacaru, lambuzados na lama dos regos e afinal abandonados em qualquer parte, quando já não serviam para nada.
Outros parece que entravam numa casa apenas para descarregar a bexiga; chegavam, farejavam, escolhiam o lugar, às vezes até um par de botinas encostado num canto, e calmamente se aliviavam; ou rodavam, rodavam no meio da sala, o corpo encurvado no meio, as pernas traseiras abertas, espremiam, largavam uns charutinhos ou uma broa; satisfeitos com o resultado, raspavam as patas duas, três vezes e saíam sem olhar para ninguém, os donos da casa que providenciassem a limpeza. Eram desacatos que as pessoas toleravam resignadas, consolando-se em pensar que não há mal que sempre dure.
Mas vendo que os cachorros não tinham pressa de ir embora, o povo começou a mudar de atitude. Os porretes, as correias, as espingardas iam sendo escondidos e substituídos por tentativas de afagos, palavras mansas, agrados de comida. Gente se amontoava nas janelas assoviando para eles, estalando os dedos, esticando a mão para alisá-los com medo, é verdade, mas desejando receber um abano de rabo. Muitos iam à cozinha buscar qualquer coisa de comer para jogar aos pés deles. De repente ficou parecendo que todo mundo adorava cachorro, quanto mais melhor, e só tinha na vida a preocupação de fazê-los felizes. Se uma criança desavisada apanhava o chicote preparado pelo pai e ameaçava um cachorro mais atrevido, era imediatamente obstada e castigada com o mesmo chicote. A ordem era respeitar os cachorros. Foi um tempo difícil aquele para os puros, os ingênuos, os de boa memória.
Quando foi ficando claro que os cachorros não estavam interessados em morder ninguém (o máximo que faziam era rosnar e mostrar os dentes para quem os incomodasse inadvertidamente), mas apenas em dar vazão à energia represada na disciplina da tapera, as pessoas foram criando coragem e saindo de casa desarmadas, e até já achavam graça nos desatinos e bodejos dos bichos. Vê-los perseguindo galinhas nos quintais ficou sendo um espetáculo considerado divertido. Quando uma galinha conseguia escapar para cima de um muro, de um cafezeiro, para o meio de uma moita qualquer, e lá ficava ofegante se refazendo do susto, sempre aparecia alguém com uma vara para espantá-la, e a perseguição recomeçava. Frequentemente uma galinha já manca, de asa despencada e muitas falhas de penas pelo corpo era apanhada e entregue na boca de um cachorro; e geralmente o cachorro distinguido com a prenda apenas a cheirava e virava as costas.
Nas ruas, se um cachorro se aproximava de um chafariz, não faltava quem corresse com as mãos em cumbuca para poupá-lo do incômodo de beber da bica. Os cachorros de Manarairema, antigos donos daquelas ruas, também sofreram grandes humilhações. Quando atacados por um dos estranhos eles não podiam reagir nem se defender, bastava rosnarem e já os donos vinham correndo castigá-los pelo atrevimento. Eles tinham de correr ou se deixar morder passivamente, se não quisessem levar pauladas.
Cachorros estranhos dormindo nas passagens eram respeitados mais do que crianças ou velhos, as pessoas passavam nas pontas dos pés para não acordá-los, muita gente entrava e saía de casa pelas janelas ou dando volta pelos fundos para não passar por cima deles. Muita almôndega macia, fritada em boa gordura, lhes foi servida em prato de louça, como se faz com hóspedes de categoria. Toda a cidade estava praticamente a serviço dos cachorros, tudo o mais parou, ficou adiado, relegado, esquecido. Qualquer cachorro pelado, sujo, sarnento, contanto que fosse estranho, encontrava quem o elogiasse por qualidades que ninguém via mas que todos confirmavam. Era uma grande vantagem ser cachorro estranho em Manarairema naqueles dias.
José J. Veiga, in A hora dos ruminantes

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