O
derrame de cachorros foi o primeiro sinal forte de que os homens não
eram aqueles anjos que Amâncio estava querendo impingir. Mesmo se
fizeram aquilo por simples brincadeira, mostraram completa
desconsideração pelos direitos alheios.
Dois
ou três dias antes o povo notou que os cachorros da tapera estavam
ficando inquietos, turbulentos, aflitos como em véspera de uma
grande caçada. À noite o alarido era tal que chegava a perturbar o
sossego na cidade. A impressão geral era que os homens não estavam
dando comida suficiente aos bichos. Seria por maldade? Ou distração?
Ou falta de recursos? Talvez Geminiano pudesse dar uma explicação?
—
Cachorros? Esconjuro. Capetas. Capetas de
quatro pés. Cachorros. — Foi só o que se conseguiu de Geminiano.
—
Quantos são, Gemi? Parece que são
muitos.
—
Muitos? Dobre e ponha mais.
— Uma
dúzia? Dúzia e meia?
— Que
dúzia e meia! Dúzia e meia morre por dia.
— Morre
de quê?
—
Morre. Cai no chão, estrebucha e morre.
— Onde
arranjaram tantos?
— Eu
sei? Recebem.
— De
onde? Quem traz?
— De
longe. Do inferno. Quem traz é o capeta. Só pode ser. Cachorros!
Peste!
Não
adiantava mais falar com Geminiano. Aquele trabalho sem fim estava
bulindo com o juízo dele. Ele agora preferia falar sozinho a
conversar, e qualquer dia sairia por aí gritando e xingando a esmo,
como o velho Inácio Medrado. Parece que toda a cidade precisa ter um
louco na rua pra chamar o povo à razão; agora que Inácio não
existia mais, Geminiano estava exercitando para preencher o lugar.
Era certo que os homens tinham muito cachorro na tapera, a latomia
que faziam não deixava dúvida; mas não podiam estar recebendo
cachorros todos os dias sem parar, faltava o cabimento.
Os
cachorros baixaram de repente, apanhando todo mundo de surpresa. A
cidade estava engrenando na rotina do tomar café, do regar horta, do
varrer casa, do arrear cavalo, quando os latidos rolaram estrada
abaixo. As pessoas correram para as janelas, as cercas, os barrancos
e viram aquela enxurrada avançando rumo à ponte, cobrindo buracos,
subindo rampas, contornando pedras, aos destrambelhos, latindo
sempre.
—
Nossa! É cachorro! É cachorro! E vem
pra cá!
— Ih,
é cachorro! Escapuliram!
— Os
cachorros!
— Feche
a porta! Os cachorros!
— Os
meninos! Chame os meninos!
—
Corre, gente!
— Fecha
tudo!
—
Prepare porretes!
Portas
batiam em toda parte, gente gritava, criança chorava, galinhas em
pânico, mães ralhavam, batiam, sacudiam, rezavam, homens iam e
vinham correndo, procurando espingarda, garrucha, porrete, outros
apenas acendiam um cigarro e iam para a janela espiar.
Apesar
da curiosidade, ninguém se aventurou a sair de casa. No largo e nas
ruas desertas apenas alguns animais pastavam apáticos, alheios à
ameaça ou talvez confiantes na eficiência dos cascos. Até os
pássaros, percebendo alguma coisa no ar, retiraram-se prudentes para
os galhos mais altos das árvores. Borboletas inocentes enfeitavam as
margens do rego, e ali morreriam em poucos minutos pisadas, mordidas,
desmanchadas como flores depois de ventania. O palco estava armado
para os cachorros, e eles o ocuparam como demônios alucinados.
A
vaga de pelos, de dentes, de patas, de rabos, de uivos chegou inteira
e logo se espalhou por toda a parte farejando, raspando, acuando,
regando pedras, barrancos, muros, raízes de árvores, unhando
portas, choramingando, erguendo-se nas patas traseiras para ver se
descobriam nas salas alguma coisa digna de atenção — e era
repelida pelos moradores a varadas, lambadas, pauladas, até a tapas
e chineladas.
Escorraçados
da frente, os cachorros surgiam nos quintais quebrando plantas,
revolvendo hortas, derrubando cercas, pulando muros, perseguindo
galinhas, matando pintos, parando de vez em quando para retirar
chumaços de penas da boca com as patas ou pelo processo de esfregar
o focinho no chão. Os homens tentavam espantá-los a pedradas,
apanhavam uma pedra e ficavam tontos com ela na mão, não sabendo
para que lado jogar, os cachorros eram muitos e vinham de todos os
lados, nem tomavam conhecimento da gente, pareciam estar à procura
de alguma coisa mais importante. Às vezes se ouvia um tiro e um
ganido, que o alarido geral abafava.
Era
impossível saber quantos seriam, quem tentou calcular por alto
desistiu alarmado, eles estavam sempre passando e pareciam nunca
acabar de passar. Pelo meio da manhã o cheiro de pelo suado, de
urina concentrada, de estrume pisado era tão forte que invadia as
casas e obrigava as pessoas a queimarem ervas para espantar a
morrinha.
Fechadas
em casa, abanando-se contra a fumaça, enervadas com os latidos, as
pessoas tapavam os ouvidos, pensavam e não conseguiam compreender
aquela inversão da ordem, a cidade entregue a cachorros e a gente
encolhida no escuro, sem saber o que aconteceria a seguir. Às vezes
um cachorro aparecia dentro de uma casa, vindo não se sabe por onde,
pondo as pessoas em pânico. O cachorro olhava para um, para outro,
escolhia uma pessoa, chegava-se para ela, abanando o rabo. A pessoa
se encolhia, guardava as mãos, as pernas, e não achava voz para
espantá-lo. O cachorro insistia, farejava, esperando: nenhum agrado
vinha, ele desistia e se retirava desapontado, a cabeça baixa, o
rabo quase colado nas pernas. Outros entravam por um lado, varavam a
casa e procuravam saída pelo outro lado, riscando a porta com as
patas, ajudando com o focinho, ganindo o tempo todo, até que alguém
criava coragem, abria a porta e ele saía disparado atrás de uma
caça invisível. Houve casos também de cachorros entrando numa
casa, indo direto aos quartos e saindo com chinelas, sapatos, roupas,
tudo o que pudessem agarrar com a boca, lençóis eram arrastados
pelos quintais, estraçalhados em espinhos de roseiras ou mandacaru,
lambuzados na lama dos regos e afinal abandonados em qualquer parte,
quando já não serviam para nada.
Outros
parece que entravam numa casa apenas para descarregar a bexiga;
chegavam, farejavam, escolhiam o lugar, às vezes até um par de
botinas encostado num canto, e calmamente se aliviavam; ou rodavam,
rodavam no meio da sala, o corpo encurvado no meio, as pernas
traseiras abertas, espremiam, largavam uns charutinhos ou uma broa;
satisfeitos com o resultado, raspavam as patas duas, três vezes e
saíam sem olhar para ninguém, os donos da casa que providenciassem
a limpeza. Eram desacatos que as pessoas toleravam resignadas,
consolando-se em pensar que não há mal que sempre dure.
Mas
vendo que os cachorros não tinham pressa de ir embora, o povo
começou a mudar de atitude. Os porretes, as correias, as espingardas
iam sendo escondidos e substituídos por tentativas de afagos,
palavras mansas, agrados de comida. Gente se amontoava nas janelas
assoviando para eles, estalando os dedos, esticando a mão para
alisá-los com medo, é verdade, mas desejando receber um abano de
rabo. Muitos iam à cozinha buscar qualquer coisa de comer para jogar
aos pés deles. De repente ficou parecendo que todo mundo adorava
cachorro, quanto mais melhor, e só tinha na vida a preocupação de
fazê-los felizes. Se uma criança desavisada apanhava o chicote
preparado pelo pai e ameaçava um cachorro mais atrevido, era
imediatamente obstada e castigada com o mesmo chicote. A ordem era
respeitar os cachorros. Foi um tempo difícil aquele para os puros,
os ingênuos, os de boa memória.
Quando
foi ficando claro que os cachorros não estavam interessados em
morder ninguém (o máximo que faziam era rosnar e mostrar os dentes
para quem os incomodasse inadvertidamente), mas apenas em dar vazão
à energia represada na disciplina da tapera, as pessoas foram
criando coragem e saindo de casa desarmadas, e até já achavam graça
nos desatinos e bodejos dos bichos. Vê-los perseguindo galinhas nos
quintais ficou sendo um espetáculo considerado divertido. Quando uma
galinha conseguia escapar para cima de um muro, de um cafezeiro, para
o meio de uma moita qualquer, e lá ficava ofegante se refazendo do
susto, sempre aparecia alguém com uma vara para espantá-la, e a
perseguição recomeçava. Frequentemente uma galinha já manca, de
asa despencada e muitas falhas de penas pelo corpo era apanhada e
entregue na boca de um cachorro; e geralmente o cachorro distinguido
com a prenda apenas a cheirava e virava as costas.
Nas
ruas, se um cachorro se aproximava de um chafariz, não faltava quem
corresse com as mãos em cumbuca para poupá-lo do incômodo de beber
da bica. Os cachorros de Manarairema, antigos donos daquelas ruas,
também sofreram grandes humilhações. Quando atacados por um dos
estranhos eles não podiam reagir nem se defender, bastava rosnarem e
já os donos vinham correndo castigá-los pelo atrevimento. Eles
tinham de correr ou se deixar morder passivamente, se não quisessem
levar pauladas.
Cachorros
estranhos dormindo nas passagens eram respeitados mais do que
crianças ou velhos, as pessoas passavam nas pontas dos pés para não
acordá-los, muita gente entrava e saía de casa pelas janelas ou
dando volta pelos fundos para não passar por cima deles. Muita
almôndega macia, fritada em boa gordura, lhes foi servida em prato
de louça, como se faz com hóspedes de categoria. Toda a cidade
estava praticamente a serviço dos cachorros, tudo o mais parou,
ficou adiado, relegado, esquecido. Qualquer cachorro pelado, sujo,
sarnento, contanto que fosse estranho, encontrava quem o elogiasse
por qualidades que ninguém via mas que todos confirmavam. Era uma
grande vantagem ser cachorro estranho em Manarairema naqueles dias.
José
J. Veiga, in A hora dos ruminantes
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