Sartre
viera me ver no Limousin; hospedara-se no hotel Boule d’Or, em
Saint-Germain-les-Belles; para evitar falatórios, encontrávamo-nos
a boa distância da cidade, no campo. Com que alegria, pela manhã,
eu descia correndo os gramados do parque, pulava outeiros,
atravessava os prados ainda úmidos onde tantas vezes, e não raro
amargamente, eu ruminara a minha solidão! Sentávamo-nos na relva e
conversávamos. Não imaginara, no primeiro dia, que, longe de Paris
e de nossos colegas, essa ocupação pudesse bastar-me. “Levaremos
livros e leremos”, sugerira eu. Sartre ficara indignado; rejeitara
também todos os meus projetos de passeio; era alérgico a clorofila,
o verde das pastagens irritava-o, só o tolerava com a condição de
esquecê-lo. Pois que fosse assim. Por pouco que me encorajasse, o
discurso não me assustava; retomamos a conversa iniciada em Paris e
logo me dei conta de que, ainda que continuasse até o fim do mundo,
o tempo me pareceria curto demais. Mal a manhã acabava de nascer e
já o sino do almoço tocava. Ia comer em casa; Sartre comia pão de
centeio e mel, ou queijo que minha prima Madeleine depositava com
mistério num pombal abandonado ao lado da “casa de baixo”; ela
gostava do romanesco. Mal desabrochava e já fenecia a tarde, caía a
noite. Sartre voltava ao hotel; jantava ao lado dos
caixeiros-viajantes. Eu dissera a meus pais que estávamos
trabalhando em um livro que seria uma crítica ao marxismo. Esperava
amansá-los, lisonjeando-lhes o ódio ao comunismo, mas não os
convenci em absoluto. Quatro dias depois da chegada de Sartre, vi-os
surgindo nos limites do prado em que estávamos instalados;
aproximaram-se. Meu pai tinha um ar resoluto mas um tanto embaraçado
com seu palheta amarelado. Sartre, que nesse dia usava uma camisa de
um rosa agressivo, pôs-se em pé, com o olhar provocante. Meu pai
pediu-lhe cortesmente que deixasse a região; o povo falava,
comentava, e minha aparente má conduta prejudicava a reputação de
minha prima, que procuravam casar. Sartre retorquiu com vivacidade
mas sem muita violência, pois estava decidido a não adiantar em uma
só hora sua partida. Limitamo-nos a ter encontros um pouco mais
clandestinos num longínquo bosque de castanheiros. Meu pai não
voltou a insistir e Sartre ficou ainda uma semana no Boule d’Or.
Depois disso, escrevemo-nos diariamente.
Quando
tornei a encontrá-lo, em outubro, tinha liquidado meu passado; 3
empenhei-me por inteira em nosso caso. Sartre devia partir em breve
para o serviço militar; entrementes estava de férias. Residia na
rua Saint-Jacques, com seus avós Schweitzer, e encontrávamo-nos
pela manhã no jardim Luxemburgo cinzento e dourado, sob o olhar
branco das rainhas de pedra; só nos largávamos tarde da noite.
Andávamos por Paris e continuávamos a conversar, considerando o pé
em que estávamos em relação a nós mesmos, nossa ligação, nossa
vida e nossos futuros livros. Hoje, o que me parece mais importante
nessas conversas são menos as coisas que dizíamos do que as que
encarávamos como resolvidas; não estavam, enganávamo-nos em
relação a quase tudo. Para nos definir, cumpre examinar esses
erros, pois exprimiam uma realidade: a de nossa situação.
Já
o disse: Sartre vivia para escrever; tinha por missão testemunhar
todas as coisas e retomá-las por sua conta e à luz da necessidade;
a mim, era prescrito emprestar minha consciência ao múltiplo
esplendor da vida, e eu devia escrever para arrancá-la do tempo e do
nada. Essas missões impunham-se a nós com uma evidência que nos
garantia sua realização; sem nos formular, aderíamos ao otimismo
kantiano: deves, logo podes. E efetivamente, como a vontade duvidaria
de si mesma no momento em que se decide e se afirma? É uma só coisa
então querer e acreditar. Por isso mesmo confiávamos no mundo e em
nós mesmos. Éramos contra a sociedade em sua forma atual; mas esse
antagonismo nada tinha de melancólico: implicava um robusto
otimismo. O homem devia ser recriado e essa invenção seria em parte
obra nossa. Não pensávamos em contribuir para isso senão com
livros; os negócios públicos nos entediavam muitíssimo, mas
esperávamos que os acontecimentos se desenrolassem segundo nossos
desejos, sem que tivéssemos que nos meter neles. A esse respeito, no
outono de 1929, partilhávamos a euforia da esquerda francesa. A paz
parecia definitivamente assegurada. A expansão do Partido Nazista na
Alemanha representava apenas um epifenômeno sem gravidade. O
colonialismo seria liquidado em pouco tempo: a campanha iniciada por
Gandhi na Índia e a agitação comunista na Indochina nos garantiam
isso. A crise de virulência excepcional que sacudia o mundo
capitalista pressagiava que essa sociedade não aguentaria muito
tempo. Já nos afigurava vivermos na idade de ouro que constituía a
nossos olhos a verdade recôndita da História, e que ela se
limitaria a desvendar.
Ignorávamos
em todos os domínios o peso da realidade. Vangloriávamo-nos de uma
liberdade radical. Acreditamos durante tanto tempo e com tanta
tenacidade nessa palavra que foi preciso ver de perto o que nela
púnhamos.
Cobria
uma experiência real. Em toda atividade descobre-se uma liberdade,
particularmente na atividade intelectual, porque dá pouca margem a
repetição. Tínhamos trabalhado muito; sem cessar, fora preciso
compreender e inventar novamente. Tínhamos uma intuição prática
da liberdade, irrecusável; nosso erro foi não a encerrar dentro de
seus justos limites; ficamos presos à imagem da pomba de Kant: o ar
que lhe resiste, longe de travar, suporta seu voo. O dado
apareceu-nos como a matéria de nossos esforços, não como seu
condicionamento; pensávamos não depender de nada. Assim como nossa
cegueira política, esse orgulho espiritualista explica-se antes de
tudo pela violência de nossos projetos. Escrever, criar: não
ousaríamos, na verdade, arriscar-nos a essa aventura se não
tivéssemos absoluta certeza de nós mesmos, de nossos fins e de
nossos meios. Nossa audácia era inseparável das ilusões que a
sustentavam, e as circunstâncias as haviam favorecido juntas. Nenhum
obstáculo exterior jamais nos forçara a ir de encontro a nós
mesmos; queríamos conhecer e exprimir-nos; estávamos empenhados até
o pescoço nessa tarefa. Nossa existência satisfazia tão bem nossos
desejos que nos parecia que a tínhamos escolhido; daí acharmos que
sempre se submeteria a nossos desígnios. A sorte que nos servira
mascarava a adversidade do mundo. Por outro lado, interiormente, não
sentíamos empecilhos. Eu mantinha boas relações com meus pais, mas
eles tinham perdido todo domínio sobre mim; Sartre nunca conhecera o
pai; nem sua mãe nem seus avós tinham encarnado a lei a seus olhos.
Em certo sentido, éramos ambos sem família e tínhamos erigido essa
situação em princípio. Havíamos sido encorajados pelo
racionalismo cartesiano que Alain nos transmitira e que tínhamos
abraçado justamente porque nos convinha. Nenhum escrúpulo, nenhum
respeito e nenhuma aderência afetiva nos impediam de tomarmos nossas
resoluções à luz da razão e de nossos desejos; não percebíamos
em nós nada de opaco ou turvo; pensávamos ser pura consciência e
pura vontade. Essa convicção era fortalecida pelo arrebatamento com
o qual apostávamos no futuro; não estávamos alienados a nenhum
interesse definido, porquanto o presente e o passado deviam ser
sempre ultrapassados. Não hesitávamos em contestar todas as coisas
e nós mesmos sempre que a ocasião o solicitava; criticávamo-nos e
condenávamo-nos com desenvoltura, uma vez que toda mudança nos
afigurava um progresso. Como nossa ignorância dissimulava a maior
parte dos problemas que nos deveriam ter inquietado, contentávamo-nos
com essas revisões e imaginávamo-nos intrépidos.
Simone
de Beauvoir, in A força da idade
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