Naquele
verão nós morávamos em Madden Street, perto da escola secundária.
Foi a melhor casa que tivemos, com banheira e bocais para um fogão a
gás. Uma cozinha a gás era um dos grandes sonhos da vida de mamãe.
Os bocais a trouxeram mais próximo da concretização. Agora tudo o
que tinha a fazer era conseguir um fogão a gás.
O
aluguel da casa de Madden era vinte e cinco por mês, cinco a mais do
que pagávamos antes. Era uma casa de três quartos de tijolos
vermelhos com um gramado de verdade na frente. Finalmente tínhamos
espaço de sobra. Mamãe e papai dormiam no quarto principal. Vovó
tinha um quarto ao lado da cozinha, meus dois irmãos e eu dormíamos
no quarto do meio. Todo mundo tinha um quarto, o que era uma melhoria
em nossa família.
Não
havia muitos italianos em Madden Street. Além de nossa família, só
tinha Fred Bestoli, que era mais contrabandista de bebidas do que
italiano. Fred fora amigo da família, mas, agora que era
contraventor, minha mãe não o queria por perto. Vovó também
gostava de Fred Bestoli antes de ele passar a vender bebidas. Como
ela, ele era da província dos Abruzos e tinham pessoas e lugares em
comum. Mas agora ela o odiava porque ele era preso o tempo todo e não
ligava para a reputação dos outros italianos.
Quando
papai trazia Fred para nossa casa, ela o cumprimentava em italiano.
Ela dizia: — Boa noite, cocô de cachorro.
Ou:
— Vejam só o que saiu da barriga de uma mulher.
Fred
Bestoli era um italiano melancólico e taciturno, mas minha avó
sabia despertar o seu lado belicoso. Ele respondia: — Não enche,
sua velha! — e papai o encorajava.
— É
isso mesmo, Federico. Mande a cadela velha cuidar de sua própria
vida.
Enraivecida,
vovó virava-se para papai e dizia que teria sido melhor que o seu
ventre tivesse produzido um porco do que alguém como ele. Papai
respondia que, como ela era sua mãe, estava surpreso de não ter
nascido um porco. Essa linguagem violenta e obscena nunca significava
nada, de um lado ou do outro. Simplesmente falavam daquele jeito.
Todo
outono meu pai fazia vinho e o armazenava no porão. Nunca tinha
muita sorte com o vinho. Ou ficava doce demais ou azedo demais. Ele
não tinha paciência, e se a colheita mostrava possibilidades, ele a
processava antes que pudesse maturar. Assim, ele sempre descia a rua
em direção à casa de Fred Bestoli, onde o contrabandista de
bebidas vivia sozinho numa esqualidez caótica. Nessas incursões,
papai carregava sua caixa de ferramentas de pedreiro e uma sacola de
lona pesada. Mas não enganava ninguém. Os vizinhos que regavam seus
gramados ao longo da rua olhavam para ele descaradamente,
assegurando-o de que sabiam o que havia na sacola.
Nós,
garotos, éramos fascinados por criminosos do cinema, mas Fred
Bestoli não era do tipo fascinante. Não matava nem roubava. Não
andava com armas de fogo nem era caçado pela polícia. Entrava e
saía com tanta frequência da cadeia do condado de Boulder que nós
também o desprezávamos.
Ele
sempre vinha a nossa casa pelo caminho do beco. Detrás do galpão de
carvão, ele assobiava para papai. Se estávamos ceando, papai ia lá
fora e mandava Fred esperar. Isso criava um mal-estar, vovó
resmungava e batia coisas, xingava a América, dizendo que devia ter
afogado papai no dia em que ele nasceu. Mamãe parava de comer, seu
corpo congelando de ressentimento, seus olhos fixos em papai, que
começava a bater coisas também, dizendo que desejava nunca ter se
casado, nunca ter vindo para a América, nunca ter nascido de uma
chacal como sua mãe ou casado com uma pamonha como sua mulher. Se
algum de nós, crianças, sequer respirasse fundo durante esse ataque
de fúria, papai pegava uma faca e ameaçava cortar nossa garganta.
Embora o pavoroso aviso fosse anunciado aos gritos três ou quatro
vezes por semana ao longo de nossa meninice, o mais próximo que
chegou de concretizar a ameaça foi na noite em que jogou uma
almôndega em meu irmão Dino.
Jantar
terminado, a cozinha era limpa e mamãe nos mandava para a sala de
estar e trancava a porta, e vovó ia para o seu quarto. Mas vovó
tinha sempre muita vontade de brigar. Fazia questão de se encontrar
com Fred Bestoli, para ao menos cuspir em seus pés ou insultá-lo de
algum modo. Ele devolvia cuspe por cuspe, insulto por insulto, até
que meu pai clamava por paz. Então ela se retirava choramingando
para seu quarto, implorando a Deus que queimasse a casa e todo mundo
dentro dela.
Uma
noite, enquanto ceávamos, bateram à porta da frente. Papai atendeu.
Quem estava lá, os braços carregados de pacotes, senão Fred
Bestoli?
— Olá
— disse ele, assustado ao olhar para mamãe e vovó. Havia algo
novo e luminoso nele, e não era o terno novo nem a gravata verde.
Estava no seu rosto, uma ânsia de agradar, um ar amistoso. Chegou
até a nos cumprimentar com a cabeça, as crianças. Vovó falou.
— O
que você quer aqui, seu asno?
Ele
tentou sorrir.
— Jogue
ele de volta à sarjeta — continuou vovó.
Voltou
seus olhos sinceros e comoventes para papai, que se aproximou a fim
de ouvir alguma choraminga. Papai ficou só a acenar a cabeça e a
sorrir. Finalmente deu-lhe um tapinha nas costas.
— Muito
bem — disse ele. — Bom garoto, Fred.
Como
faria com uma criança tímida, papai conduziu Fred até a sala de
jantar. Parou diante de nós junto à mesa, os dentes cerrados, os
braços ao redor dos embrulhos.
— Para
a senhora — disse ele, estendendo uma caixa de presente comprida
para vovó.
Ela
recuou como se aquilo fosse uma cobra.
—
Pegue! — ordenou papai.
Vovó
fez uma carranca e pegou a caixa.
Fred
revirou seus pacotes e achou um para mamãe. Ela hesitou, mas papai
arrancou a caixa das mãos de Fred e a enfiou nos braços de mamãe.
Havia três outros embrulhos. Eram idênticos e Fred entregou um a
cada menino. As caixas finas e compridas pareciam suspeitosamente
como, a de gravatas. Carlo rasgou o papel com as unhas, mas papai
mandou que esperasse. Com olhos negros limpos e brilhantes Fred
Bestoli olhou para meu pai, que clareou a garganta como se fosse
fazer um discurso.
— Fred
Bestoli é meu amigo há trinta e cinco anos — disse papai. —
Nasceu a quinze quilômetros da minha cidade natal. Veio para a
América quando eu vim também. Trabalhou duro neste país. Servente
de pedreiro. Mineiro de carvão. Cavou valas. Trabalho duro. Nenhum
dinheiro. Não tem um ofício. Então o que faz? Vende um pouquinho
de uísque. Algumas garrafas de vinho. Isso é mau? Eu digo que não!
Mas a lei diz que sim. Por isso ele vai para a cadeia, três, quatro
vezes.
Fred
tossiu. Uma lágrima gorda e prateada rolou do seu olho, escorreu
pela bochecha e se espatifou no chão. Sua emoção comoveu vovó.
Ela fez um chumaço com o canto do avental e enxugou o nariz nele.
Papai ficou feliz com a sua eficácia. Elevou a voz, ergueu as mãos
e os olhos para o teto.
— Lá
em cima — disse ele, referindo-se ao céu — é onde julgam o
certo e o errado, e lá em cima Fred Bestoli tem amigos, mesmo que
não tenha nenhum amigo aqui embaixo.
Mamãe,
Fred e vovó agora choravam e papai ficou tão comovido que soluçou.
Meu irmão Victor deu um risinho nervoso. Isso provocou um rosnado
silencioso tão violento nos lábios de papai que Victor baixou o
rosto e ficou olhando para o chão.
— Mas
Fred Bestoli é um homem diferente esta noite — gritou papai. —
Ele se regenerou. Deu um basta ao contrabando de bebidas. Quer ter
amigos, como antes.
Vovó
deu um pulo e jogou seus braços curtos e gordos ao redor de Fred. —
Graças a Deus! — disse ela. — Ah, graças ao nosso Pai do Céu.
Rindo
através de suas lágrimas, Fred plantou um sonoro beijo nos cabelos
grisalhos de vovó.
— Meu
Federico — disse vovó. — Meu filho. Melhor, muito melhor, até,
que minha própria carne e sangue.
—
Podemos abrir os pacotes agora? —
perguntou Victor.
Papai
assentiu com a cabeça e nós arrancamos os papéis. Eram mesmo
gravatas. Era extremamente difícil sentir gratidão, mas mamãe nos
forçou a agradecer ao homem. O pacote da vovó continha um xale
preto. Ela ficou deslumbrada ao colocá-lo sobre os ombros.
—
Obrigada, figlio mio — disse, as
lágrimas jorrando dos olhos. — Mil vezes obrigada.
Olhou
então para papai. — Ah, quisera que Deus o fizesse meu filho, em
vez dele. Quarenta e cinco anos e nunca me deu nem ao menos um
penico.
O
presente de Fred para mamãe foi um suéter cinzento. Nós a
observamos enquanto o vestia. Ela o abotoou, satisfeita, e esfregou
as mãos sobre ele.
— Que
tal um jantar para nosso amigo? — perguntou papai.
A
questão provocou um rompante de atividade enquanto vovó e mamãe
providenciavam um lugar à mesa para Fred. Mamãe pegou um prato da
melhor porcelana e vovó foi ao seu quarto e voltou com um guardanapo
de linho. Papai desapareceu no porão em busca de um jarro de vinho
novo. Pela porta da frente, Carlo viu algo na rua.
—
Vejam! — falou, ofegante.
Um
sedã Packard novinho em folha estava estacionado diante de nossa
casa. Era um modelo preto e grande, tão novo que se avolumava como
um animal reluzente. Era o carro de Fred Bestoli. Ele o havia
comprado naquele dia mesmo, poucas horas atrás. Corremos para fora e
o examinamos de perto, abrindo portas, apertando botões, tocando a
buzina. Nenhum de nós havia andado num carro tão novo.
— Vamos
pedir a ele — disse Victor.
Em
casa, Fred estava sentado diante de um pimentão recheado e um copo
de vinho. Mamãe e vovó pairavam por cima dele e papai estava
sentado do outro lado da mesa. Pedimos uma volta no carro novo.
— Não
— disse papai.
— Não
pedimos ao senhor — explicou Carlo.
— Mas
eu estou dizendo a vocês.
Mas
Fred estava expansivo. — Claro. Vou dar uma voltinha com vocês.
— Vão
destruir o seu carro — explicou papai.
Fred
encolheu os ombros. — Como?
— Não
sei. Eles vão achar um jeito.
Mas
ele cedeu finalmente e disse que podíamos ir. Havia uma condição,
porém. Tínhamos de “nos aprontar”. Isso significava que
tínhamos de mudar de roupa e envergar nossa fatiota domingueira, com
gravata.
— Para
quê? — perguntou Victor.
— Não
se anda num carro novo vestido desse jeito — esclareceu papai.
Olhamos
uns para os outros. Estávamos de calças de veludo cotelê, nossa
roupa de escola. Era uma bobagem. Mas não havia como discutir com
ele. Ou nos aprontávamos ou não haveria passeio de carro.
A
longa e odiosa preparação começou. Tivemos de tomar banho, nós
três na banheira, vovó supervisionando. Ela usava uma pequena
toalha como um carpinteiro usava uma lixa, arrancando a pele de trás
de nossas orelhas. Podia obter um efeito saca-rolha enrolando o canto
da toalhinha, enfiando no ouvido e girando. Removia a sujeira do
escalpo arrancando-a com suas unhas. Quando a provação terminou,
fomos ao quarto de dormir, onde mamãe tinha arrumado nossas roupas —
cuecas lavadas, camisas e meias limpas. Aquela noite, como uma
homenagem a Fred Bestoli, nós nos engalanamos com as novas gravatas.
Engomados e estrangulados, ficamos prontos em meia hora. Marchamos do
quarto até a sala de jantar. Lá estavam sentados papai e Fred
Bestoli. Àquela altura, já haviam esvaziado duas jarras de vinho.
Seus rostos e vozes davam prova disso. — Vão esperar no carro —
disse papai. Esperamos uma hora. Estávamos fartos de esperar, nossos
corpos doíam. A noite havia chegado. A rua estava às escuras.
Através da porta da frente olhávamos com ódio para papai e Fred
debruçados pesadamente sobre a mesa da sala de jantar. O vinho novo
os havia derrubado e eles tinham sucumbido estrondosamente. Embora a
um metro de distância um do outro, gritavam e batiam na mesa com as
mãos. Eram bestas, bestas feias.
— Olhem
só para eles — falei. — Me dão nojo.
— Que
pai — disse Carlo. — Quero que ele se lixe.
— Vou
sair daqui um dia — disse Victor. — Já aturei o máximo que
podia aturar. Esperem só eu fazer doze anos, vocês vão ver. Vou me
mandar. Aí eles vão se arrepender.
Finalmente
mamãe interveio. Não podíamos ouvir o que ela disse, mas seus
gestos indicavam um apelo para nós.
— Que
eles esperem — gritou papai.
Aquilo
provocou um grito em Carlo, um uivo longo, selvagem e sinistro de
exasperação reprimida que deixou seu rosto azul enquanto as cordas
do pescoço se retesavam e a lamúria assustadora trespassava a
noite. Foi tão aterrorizante que Fred e papai pararam de gritar e
olharam atônitos um para o outro, ficando sóbrios por um momento.
Papai ergueu-se sobre pernas de borracha e Fred saltou meio zonzo da
sua cadeira. Atravessaram a casa e desceram os degraus da varanda
como homens que estão morrendo de sede, tateando as sombras em busca
de um apoio. Quase caíram de cara no chão quando chegaram à
calçada, mas, ao se aproximarem do carro, um toque de dignidade os
entesou e fingiram que estavam sóbrios. Papai enfiou a cabeça na
porta de trás e sorriu repulsivamente para nós, seus globos
oculares boiando.
— Tudo
em ordem? — salivou.
Não
respondemos. Fred Bestoli cambaleou em volta do carro até o lado do
motorista, mas um estranho impulso o fez continuar em frente. Do
outro lado da rua, ele caminhou a esmo, falando sozinho. De certo
modo, papai foi em seu socorro. Podíamos ouvi-los berrando debaixo
da macieira no quintal dos Whitley. Fred se esquecera de que tinha um
carro. Enquanto gritavam, as luzes na varanda da frente dos Whitley
se acenderam. Aquilo inibiu papai, trazendo à tona um último
lampejo de decência humana, fazendo-o aquietar-se e laboriosamente
ajudar Fred a voltar ao carro. Podíamos ouvir os dois homens arfando
e oscilando, trançando os pés enquanto cambaleavam em nossa
direção.
Não
estávamos mais interessados em dar uma volta. Receando por nossas
vidas, tentamos sair do carro. Mas papai não nos deixou. Queríamos
dar uma volta, iríamos dar uma volta.
— Mas
ele está bêbado demais para dirigir — falei.
— Eu
vou dirigir — disse papai.
Suspiramos.
Meu pai nunca tinha dirigido um carro na vida. Papai botou Fred no
carro justamente quando mamãe e vovó desceram os degraus da
varanda. Fred estava adormecido, papai tentando tirar as chaves do
carro de seus bolsos. Abrimos a porta traseira e pulamos fora. Mamãe
pediu a papai que não dirigisse. Ele a ignorou, procurando as
chaves, empurrando Fred como um saco de cebolas. Estávamos longe do
carro quando ele achou as chaves e tateou o painel em busca da
ignição. Vovó avançou com uma vassoura. Enfiou pela porta e tirou
as chaves da mão de papai. Caíram no chão. Enquanto ele as
procurava, vovó o golpeou na cabeça com a vassoura. A surra
incessante o enfureceu. Pegou a vassoura, arrancou-a de vovó,
cambaleou para fora do carro e partiu contra ela. Vovó fez pé
firme, os braços cruzados desafiadoramente, os lábios disparando
xingamentos. Ficaram frente a frente, bombardeando-se com insultos.
Mamãe pegou as chaves de dentro do carro e guardou no bolso do seu
suéter.
A
essa altura todas as luzes das varandas do quarteirão estavam
acesas. Vizinhos perfilavam-se em suas portas e assistiam à cena.
Papai e vovó subitamente pararam de se insultar. Com a ajuda de
mamãe, puxaram Fred do banco da frente e o levaram para casa. Mamãe
fechou as persianas e apagou as luzes na parte frontal da casa. Uma a
uma, as luzes das varandas ao longo da rua se apagaram e as portas se
fecharam e foram trancadas. A noite voltou à sua quietude.
Estenderam
Fred Bestoli no sofá. Ele roncava de boca aberta. Papai foi para o
quarto. Seus sapatos baquearam contra o chão quando os chutou fora.
Logo dormia, seu ronco tão ruidoso quanto o de Fred.
Desconsolados,
sentamos na cozinha, Carlo, Victor e eu. Vovó chegou. Sorriu ao
abrir sua bolsinha de moedas. Deu uma moeda de dez centavos para cada
um de nós.
— Vão
ao cinema — disse.
O
cinema! Caímos sobre ela, beijando e abraçando. Ela nos empurrou e
arrancamos nossas gravatas e saímos correndo de casa. Foi a melhor
casa que tivemos.
John
Fante, in A grande fome: Contos (1932-1959)
Nenhum comentário:
Postar um comentário