sexta-feira, 2 de junho de 2017

O criminoso

Naquele verão nós morávamos em Madden Street, perto da escola secundária. Foi a melhor casa que tivemos, com banheira e bocais para um fogão a gás. Uma cozinha a gás era um dos grandes sonhos da vida de mamãe. Os bocais a trouxeram mais próximo da concretização. Agora tudo o que tinha a fazer era conseguir um fogão a gás.
O aluguel da casa de Madden era vinte e cinco por mês, cinco a mais do que pagávamos antes. Era uma casa de três quartos de tijolos vermelhos com um gramado de verdade na frente. Finalmente tínhamos espaço de sobra. Mamãe e papai dormiam no quarto principal. Vovó tinha um quarto ao lado da cozinha, meus dois irmãos e eu dormíamos no quarto do meio. Todo mundo tinha um quarto, o que era uma melhoria em nossa família.
Não havia muitos italianos em Madden Street. Além de nossa família, só tinha Fred Bestoli, que era mais contrabandista de bebidas do que italiano. Fred fora amigo da família, mas, agora que era contraventor, minha mãe não o queria por perto. Vovó também gostava de Fred Bestoli antes de ele passar a vender bebidas. Como ela, ele era da província dos Abruzos e tinham pessoas e lugares em comum. Mas agora ela o odiava porque ele era preso o tempo todo e não ligava para a reputação dos outros italianos.
Quando papai trazia Fred para nossa casa, ela o cumprimentava em italiano. Ela dizia: — Boa noite, cocô de cachorro.
Ou: — Vejam só o que saiu da barriga de uma mulher.
Fred Bestoli era um italiano melancólico e taciturno, mas minha avó sabia despertar o seu lado belicoso. Ele respondia: — Não enche, sua velha! — e papai o encorajava.
É isso mesmo, Federico. Mande a cadela velha cuidar de sua própria vida.
Enraivecida, vovó virava-se para papai e dizia que teria sido melhor que o seu ventre tivesse produzido um porco do que alguém como ele. Papai respondia que, como ela era sua mãe, estava surpreso de não ter nascido um porco. Essa linguagem violenta e obscena nunca significava nada, de um lado ou do outro. Simplesmente falavam daquele jeito.
Todo outono meu pai fazia vinho e o armazenava no porão. Nunca tinha muita sorte com o vinho. Ou ficava doce demais ou azedo demais. Ele não tinha paciência, e se a colheita mostrava possibilidades, ele a processava antes que pudesse maturar. Assim, ele sempre descia a rua em direção à casa de Fred Bestoli, onde o contrabandista de bebidas vivia sozinho numa esqualidez caótica. Nessas incursões, papai carregava sua caixa de ferramentas de pedreiro e uma sacola de lona pesada. Mas não enganava ninguém. Os vizinhos que regavam seus gramados ao longo da rua olhavam para ele descaradamente, assegurando-o de que sabiam o que havia na sacola.
Nós, garotos, éramos fascinados por criminosos do cinema, mas Fred Bestoli não era do tipo fascinante. Não matava nem roubava. Não andava com armas de fogo nem era caçado pela polícia. Entrava e saía com tanta frequência da cadeia do condado de Boulder que nós também o desprezávamos.
Ele sempre vinha a nossa casa pelo caminho do beco. Detrás do galpão de carvão, ele assobiava para papai. Se estávamos ceando, papai ia lá fora e mandava Fred esperar. Isso criava um mal-estar, vovó resmungava e batia coisas, xingava a América, dizendo que devia ter afogado papai no dia em que ele nasceu. Mamãe parava de comer, seu corpo congelando de ressentimento, seus olhos fixos em papai, que começava a bater coisas também, dizendo que desejava nunca ter se casado, nunca ter vindo para a América, nunca ter nascido de uma chacal como sua mãe ou casado com uma pamonha como sua mulher. Se algum de nós, crianças, sequer respirasse fundo durante esse ataque de fúria, papai pegava uma faca e ameaçava cortar nossa garganta. Embora o pavoroso aviso fosse anunciado aos gritos três ou quatro vezes por semana ao longo de nossa meninice, o mais próximo que chegou de concretizar a ameaça foi na noite em que jogou uma almôndega em meu irmão Dino.
Jantar terminado, a cozinha era limpa e mamãe nos mandava para a sala de estar e trancava a porta, e vovó ia para o seu quarto. Mas vovó tinha sempre muita vontade de brigar. Fazia questão de se encontrar com Fred Bestoli, para ao menos cuspir em seus pés ou insultá-lo de algum modo. Ele devolvia cuspe por cuspe, insulto por insulto, até que meu pai clamava por paz. Então ela se retirava choramingando para seu quarto, implorando a Deus que queimasse a casa e todo mundo dentro dela.
Uma noite, enquanto ceávamos, bateram à porta da frente. Papai atendeu. Quem estava lá, os braços carregados de pacotes, senão Fred Bestoli?
Olá — disse ele, assustado ao olhar para mamãe e vovó. Havia algo novo e luminoso nele, e não era o terno novo nem a gravata verde. Estava no seu rosto, uma ânsia de agradar, um ar amistoso. Chegou até a nos cumprimentar com a cabeça, as crianças. Vovó falou.
O que você quer aqui, seu asno?
Ele tentou sorrir.
Jogue ele de volta à sarjeta — continuou vovó.
Voltou seus olhos sinceros e comoventes para papai, que se aproximou a fim de ouvir alguma choraminga. Papai ficou só a acenar a cabeça e a sorrir. Finalmente deu-lhe um tapinha nas costas.
Muito bem — disse ele. — Bom garoto, Fred.
Como faria com uma criança tímida, papai conduziu Fred até a sala de jantar. Parou diante de nós junto à mesa, os dentes cerrados, os braços ao redor dos embrulhos.
Para a senhora — disse ele, estendendo uma caixa de presente comprida para vovó.
Ela recuou como se aquilo fosse uma cobra.
Pegue! — ordenou papai.
Vovó fez uma carranca e pegou a caixa.
Fred revirou seus pacotes e achou um para mamãe. Ela hesitou, mas papai arrancou a caixa das mãos de Fred e a enfiou nos braços de mamãe. Havia três outros embrulhos. Eram idênticos e Fred entregou um a cada menino. As caixas finas e compridas pareciam suspeitosamente como, a de gravatas. Carlo rasgou o papel com as unhas, mas papai mandou que esperasse. Com olhos negros limpos e brilhantes Fred Bestoli olhou para meu pai, que clareou a garganta como se fosse fazer um discurso.
Fred Bestoli é meu amigo há trinta e cinco anos — disse papai. — Nasceu a quinze quilômetros da minha cidade natal. Veio para a América quando eu vim também. Trabalhou duro neste país. Servente de pedreiro. Mineiro de carvão. Cavou valas. Trabalho duro. Nenhum dinheiro. Não tem um ofício. Então o que faz? Vende um pouquinho de uísque. Algumas garrafas de vinho. Isso é mau? Eu digo que não! Mas a lei diz que sim. Por isso ele vai para a cadeia, três, quatro vezes.
Fred tossiu. Uma lágrima gorda e prateada rolou do seu olho, escorreu pela bochecha e se espatifou no chão. Sua emoção comoveu vovó. Ela fez um chumaço com o canto do avental e enxugou o nariz nele. Papai ficou feliz com a sua eficácia. Elevou a voz, ergueu as mãos e os olhos para o teto.
Lá em cima — disse ele, referindo-se ao céu — é onde julgam o certo e o errado, e lá em cima Fred Bestoli tem amigos, mesmo que não tenha nenhum amigo aqui embaixo.
Mamãe, Fred e vovó agora choravam e papai ficou tão comovido que soluçou. Meu irmão Victor deu um risinho nervoso. Isso provocou um rosnado silencioso tão violento nos lábios de papai que Victor baixou o rosto e ficou olhando para o chão.
Mas Fred Bestoli é um homem diferente esta noite — gritou papai. — Ele se regenerou. Deu um basta ao contrabando de bebidas. Quer ter amigos, como antes.
Vovó deu um pulo e jogou seus braços curtos e gordos ao redor de Fred. — Graças a Deus! — disse ela. — Ah, graças ao nosso Pai do Céu.
Rindo através de suas lágrimas, Fred plantou um sonoro beijo nos cabelos grisalhos de vovó.
Meu Federico — disse vovó. — Meu filho. Melhor, muito melhor, até, que minha própria carne e sangue.
Podemos abrir os pacotes agora? — perguntou Victor.
Papai assentiu com a cabeça e nós arrancamos os papéis. Eram mesmo gravatas. Era extremamente difícil sentir gratidão, mas mamãe nos forçou a agradecer ao homem. O pacote da vovó continha um xale preto. Ela ficou deslumbrada ao colocá-lo sobre os ombros.
Obrigada, figlio mio — disse, as lágrimas jorrando dos olhos. — Mil vezes obrigada.
Olhou então para papai. — Ah, quisera que Deus o fizesse meu filho, em vez dele. Quarenta e cinco anos e nunca me deu nem ao menos um penico.
O presente de Fred para mamãe foi um suéter cinzento. Nós a observamos enquanto o vestia. Ela o abotoou, satisfeita, e esfregou as mãos sobre ele.
Que tal um jantar para nosso amigo? — perguntou papai.
A questão provocou um rompante de atividade enquanto vovó e mamãe providenciavam um lugar à mesa para Fred. Mamãe pegou um prato da melhor porcelana e vovó foi ao seu quarto e voltou com um guardanapo de linho. Papai desapareceu no porão em busca de um jarro de vinho novo. Pela porta da frente, Carlo viu algo na rua.
Vejam! — falou, ofegante.
Um sedã Packard novinho em folha estava estacionado diante de nossa casa. Era um modelo preto e grande, tão novo que se avolumava como um animal reluzente. Era o carro de Fred Bestoli. Ele o havia comprado naquele dia mesmo, poucas horas atrás. Corremos para fora e o examinamos de perto, abrindo portas, apertando botões, tocando a buzina. Nenhum de nós havia andado num carro tão novo.
Vamos pedir a ele — disse Victor.
Em casa, Fred estava sentado diante de um pimentão recheado e um copo de vinho. Mamãe e vovó pairavam por cima dele e papai estava sentado do outro lado da mesa. Pedimos uma volta no carro novo.
Não — disse papai.
Não pedimos ao senhor — explicou Carlo.
Mas eu estou dizendo a vocês.
Mas Fred estava expansivo. — Claro. Vou dar uma voltinha com vocês.
Vão destruir o seu carro — explicou papai.
Fred encolheu os ombros. — Como?
Não sei. Eles vão achar um jeito.
Mas ele cedeu finalmente e disse que podíamos ir. Havia uma condição, porém. Tínhamos de “nos aprontar”. Isso significava que tínhamos de mudar de roupa e envergar nossa fatiota domingueira, com gravata.
Para quê? — perguntou Victor.
Não se anda num carro novo vestido desse jeito — esclareceu papai.
Olhamos uns para os outros. Estávamos de calças de veludo cotelê, nossa roupa de escola. Era uma bobagem. Mas não havia como discutir com ele. Ou nos aprontávamos ou não haveria passeio de carro.
A longa e odiosa preparação começou. Tivemos de tomar banho, nós três na banheira, vovó supervisionando. Ela usava uma pequena toalha como um carpinteiro usava uma lixa, arrancando a pele de trás de nossas orelhas. Podia obter um efeito saca-rolha enrolando o canto da toalhinha, enfiando no ouvido e girando. Removia a sujeira do escalpo arrancando-a com suas unhas. Quando a provação terminou, fomos ao quarto de dormir, onde mamãe tinha arrumado nossas roupas — cuecas lavadas, camisas e meias limpas. Aquela noite, como uma homenagem a Fred Bestoli, nós nos engalanamos com as novas gravatas. Engomados e estrangulados, ficamos prontos em meia hora. Marchamos do quarto até a sala de jantar. Lá estavam sentados papai e Fred Bestoli. Àquela altura, já haviam esvaziado duas jarras de vinho. Seus rostos e vozes davam prova disso. — Vão esperar no carro — disse papai. Esperamos uma hora. Estávamos fartos de esperar, nossos corpos doíam. A noite havia chegado. A rua estava às escuras. Através da porta da frente olhávamos com ódio para papai e Fred debruçados pesadamente sobre a mesa da sala de jantar. O vinho novo os havia derrubado e eles tinham sucumbido estrondosamente. Embora a um metro de distância um do outro, gritavam e batiam na mesa com as mãos. Eram bestas, bestas feias.
Olhem só para eles — falei. — Me dão nojo.
Que pai — disse Carlo. — Quero que ele se lixe.
Vou sair daqui um dia — disse Victor. — Já aturei o máximo que podia aturar. Esperem só eu fazer doze anos, vocês vão ver. Vou me mandar. Aí eles vão se arrepender.
Finalmente mamãe interveio. Não podíamos ouvir o que ela disse, mas seus gestos indicavam um apelo para nós.
Que eles esperem — gritou papai.
Aquilo provocou um grito em Carlo, um uivo longo, selvagem e sinistro de exasperação reprimida que deixou seu rosto azul enquanto as cordas do pescoço se retesavam e a lamúria assustadora trespassava a noite. Foi tão aterrorizante que Fred e papai pararam de gritar e olharam atônitos um para o outro, ficando sóbrios por um momento. Papai ergueu-se sobre pernas de borracha e Fred saltou meio zonzo da sua cadeira. Atravessaram a casa e desceram os degraus da varanda como homens que estão morrendo de sede, tateando as sombras em busca de um apoio. Quase caíram de cara no chão quando chegaram à calçada, mas, ao se aproximarem do carro, um toque de dignidade os entesou e fingiram que estavam sóbrios. Papai enfiou a cabeça na porta de trás e sorriu repulsivamente para nós, seus globos oculares boiando.
Tudo em ordem? — salivou.
Não respondemos. Fred Bestoli cambaleou em volta do carro até o lado do motorista, mas um estranho impulso o fez continuar em frente. Do outro lado da rua, ele caminhou a esmo, falando sozinho. De certo modo, papai foi em seu socorro. Podíamos ouvi-los berrando debaixo da macieira no quintal dos Whitley. Fred se esquecera de que tinha um carro. Enquanto gritavam, as luzes na varanda da frente dos Whitley se acenderam. Aquilo inibiu papai, trazendo à tona um último lampejo de decência humana, fazendo-o aquietar-se e laboriosamente ajudar Fred a voltar ao carro. Podíamos ouvir os dois homens arfando e oscilando, trançando os pés enquanto cambaleavam em nossa direção.
Não estávamos mais interessados em dar uma volta. Receando por nossas vidas, tentamos sair do carro. Mas papai não nos deixou. Queríamos dar uma volta, iríamos dar uma volta.
Mas ele está bêbado demais para dirigir — falei.
Eu vou dirigir — disse papai.
Suspiramos. Meu pai nunca tinha dirigido um carro na vida. Papai botou Fred no carro justamente quando mamãe e vovó desceram os degraus da varanda. Fred estava adormecido, papai tentando tirar as chaves do carro de seus bolsos. Abrimos a porta traseira e pulamos fora. Mamãe pediu a papai que não dirigisse. Ele a ignorou, procurando as chaves, empurrando Fred como um saco de cebolas. Estávamos longe do carro quando ele achou as chaves e tateou o painel em busca da ignição. Vovó avançou com uma vassoura. Enfiou pela porta e tirou as chaves da mão de papai. Caíram no chão. Enquanto ele as procurava, vovó o golpeou na cabeça com a vassoura. A surra incessante o enfureceu. Pegou a vassoura, arrancou-a de vovó, cambaleou para fora do carro e partiu contra ela. Vovó fez pé firme, os braços cruzados desafiadoramente, os lábios disparando xingamentos. Ficaram frente a frente, bombardeando-se com insultos. Mamãe pegou as chaves de dentro do carro e guardou no bolso do seu suéter.
A essa altura todas as luzes das varandas do quarteirão estavam acesas. Vizinhos perfilavam-se em suas portas e assistiam à cena. Papai e vovó subitamente pararam de se insultar. Com a ajuda de mamãe, puxaram Fred do banco da frente e o levaram para casa. Mamãe fechou as persianas e apagou as luzes na parte frontal da casa. Uma a uma, as luzes das varandas ao longo da rua se apagaram e as portas se fecharam e foram trancadas. A noite voltou à sua quietude.
Estenderam Fred Bestoli no sofá. Ele roncava de boca aberta. Papai foi para o quarto. Seus sapatos baquearam contra o chão quando os chutou fora. Logo dormia, seu ronco tão ruidoso quanto o de Fred.
Desconsolados, sentamos na cozinha, Carlo, Victor e eu. Vovó chegou. Sorriu ao abrir sua bolsinha de moedas. Deu uma moeda de dez centavos para cada um de nós.
Vão ao cinema — disse.
O cinema! Caímos sobre ela, beijando e abraçando. Ela nos empurrou e arrancamos nossas gravatas e saímos correndo de casa. Foi a melhor casa que tivemos.
John Fante, in A grande fome: Contos (1932-1959)

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