Para
Samuel Titan Jr.
Na
década de 1960, os
jovenzinhos de famílias ricas de Manaus gostavam de frequentar aos
domingos o “mingau dançante”. Reuniam-se na praça da Saúde,
onde tomavam sorvete antes de entrar no clube mais grã-fino da
cidade.
Rumores
insinuavam que nessas noites domingueiras, enquanto a moçada
dançava, os adultos jogavam carteado numa sala decorada com
poltronas forradas de brocado suíço, cortinas de veludo alemão e
tapetes persas. Nunca vi essa sala luxuosa, tão adaptada ao clima do
equador. Os rumores também se referiam a perdas enormes durante a
jogatina: homens e mulheres que entregavam ao ganhador anéis com
brilhantes e relógios com pulseira de ouro. Não era raro um jogador
perder uma propriedade. Consta que um dos perdedores teve que morar
numa pensão perto do porto.
Numa
dessas noites eu estava com um amigo do Ginásio Pedro II e
convidei-o para assistir à apresentação da nossa banda, que ia dar
uma canja antes do encerramento do mingau dançante. Os outros
músicos já estavam no clube e me esperavam. Na porta, me apresentei
como um dos membros da banda. O porteiro fez um gesto: podíamos
entrar. Mas um homem de uns quarenta anos, talvez um dos diretores do
clube, barrou meu amigo:
“Só
o músico”, ele disse. “O acompanhante, não.”
“Por
quê?”, perguntei. “Ele é meu amigo.”
“Preto
não entra aqui.”
Meu
amigo me disse que era assim mesmo, já estava acostumado com essas
coisas: que eu voltasse para o clube e participasse do show.
Ele
se afastou e desceu a avenida, calado.
Estudávamos
na mesma sala do Pedro II, onde concluímos o curso ginasial. Depois
eu saí de Manaus e passei muito tempo sem vê-lo.
Em
abril, quando visitava a cidade, encontrei-o por acaso na praça da
Saudade. Na tarde dessa quinta-feira nublada e úmida ele se dirigia
para o tribunal. Quase não o reconheci: parecia um atleta, nem de
perto aparentava um cinquentão. Usava paletó e gravata; reparei
também nas abotoaduras pretas, nos sapatos de cromo, no guarda-chuva
cinza, de ponta finíssima. Quando me abraçou, perguntou se eu ainda
cantava. Ou se cantava enquanto escrevia. Mais de quarenta anos, ele
acrescentou, com um vozeirão alegre, que contrariava o menino tímido
e humilhado da nossa juventude. Depois disse que era sócio de um
escritório de advocacia: havia cursado doutorado em direito
empresarial na Universidade de Chicago.
“Mas
devo minha carreira à escola pública”, ele prosseguiu. “Aliás,
nós dois devemos, não é mesmo?”
Concordei.
E continuamos a conversar enquanto atravessávamos a praça da
Saudade; depois paramos num bar da praça da Saúde, onde ele se
lembrou daquele episódio, “na época em que tu tinhas pretensões
musicais e eu era um negrinho, filho de uma lavadeira com um
estivador”.
Agora
me lembrava.
O
clube não era mais o mesmo. A velha elite de Manaus — grandes
comerciantes e herdeiros dos barões da borracha — era irrelevante
ou desaparecera por completo. Quase toda a economia da cidade e do
estado dependia das centenas de fábricas do polo industrial.
Tomamos
um suco de graviola, contei um pouco da minha vida, saltando anos e
cidades.
Disse
que a impressão de uma vida inteira só encontramos nos romances.
“Nos
bons romances”, observou, apressando-se para pagar a conta.
Ele
parecia o penúltimo cavalheiro de uma cidade caótica e feroz.
Saímos da praça da Saúde e, em frente ao clube grã-fino, vimos um
velho sentado numa cadeirinha bem no meio da calçada. Braços
caídos, as mãos roçavam a calçada, o olhar baço no céu escuro.
Meu amigo parou e estendeu o cabo do guarda-chuva para o velho, que o
apertou como se fosse a mão de um homem. Meu amigo riu:
“Toda
quinta-feira ele cumprimenta o meu guarda-chuva. A primeira vez que
joguei uma nota de dez reais no chão, ele se ofendeu e disse que não
era mendigo. Mas depois vi que apanhou a nota e pôs no bolso. Outro
dia me pediu vinte e eu dei.”
“Mas
é um mendigo?”
“É
o cara que me barrou”, disse o advogado. “Não se lembra de mim.”
Enquanto
descíamos a avenida, notei que o advogado estava com pressa. Na
calçada do tribunal, pôs a mão no meu ombro e disse:
“Hoje
à noite tenho que terminar de redigir um processo. Massa falida. Uma
coisa chata e triste. Mas que tal amanhã? Vamos comer uma peixada?”
Milton
Hatoum, in Um
solitário à espreita
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