sábado, 10 de junho de 2017

Estávamos dormindo

Vi as carretas passarem. Os bois movendo-se devagar. O ranger das pedras debaixo das rodas. Os homens como se estivessem dormindo.
... Toda madrugada a cidade treme com a passagem das carretas. Chegam de todos os lados, atopetadas de salitre, de espigas de milho, de erva-do-pará. Gemem suas rodas fazendo as janelas vibrarem, despertando todo mundo. É a mesma hora em que se abrem os fornos e cheira a pão recém-assado. E de repente o céu pode troar. Cair a chuva. Pode chegar a primavera. Lá você vai se acostumar aos “de repentes”, meu filho.
Carretas vazias, remoendo o silêncio das ruas. Perdendo-se no escuro caminho da noite. E as sombras. O eco das sombras.
Pensei em voltar. Senti lá no alto o caminho por onde tinha vindo, como uma ferida aberta no negror das colinas.
Então alguém tocou meus ombros.
O que é que o senhor está fazendo aqui?
Vim procurar... — e já ia dizer quem, quando parei: — vim buscar meu pai.
E por que não entra?
Entrei. Era uma casa com metade do teto derrubado. As telhas no chão. O teto no chão. E na outra metade um homem e uma mulher.
Vocês não estão mortos? — perguntei a eles.
E a mulher sorriu. O homem me olhou seriamente.
Está bêbado — disse o homem.
Só está assustado — disse a mulher.
Havia uma lamparina de querosene. Havia uma cama de palha seca, e uma cadeira de vime e assento de couro onde estavam as roupas dela. Porque ela estava pelada, do jeito que Deus a botou no mundo. E ele também.
Ouvimos alguém que gemia e dava cabeçadas na nossa porta. E lá estava o senhor. O que aconteceu?
Aconteceram comigo tantas coisas que é melhor querer dormir.
Nós já estávamos dormindo.
Vamos então dormir.
Juan Rulfo, in Pedro Páramo

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