segunda-feira, 22 de maio de 2017

Você vai comigo, Bugra

Noite. Muito além da meia-noite. E as vozes:
... Pois eu digo que se o milho deste ano der bem, a gente vai ter como pagar você. Agora, se o milho se perder, pois você vai ter de aguentar mais.
Não exijo. Você sabe muito bem que fui razoável com você. Mas a terra não é sua. Você se pôs a trabalhar em terreno alheio. Vai tirar de onde para poder me pagar?
E quem foi que disse que a terra não é minha?
O que se afirma por aí é que você vendeu para Pedro Páramo.
Eu nem cheguei perto desse senhor. A terra continua sendo minha.
Isso é o que você diz. Mas por aí o que se diz é que tudo é dele.
Pois que venham dizer a mim.
Olha bem, Galileo, eu, aqui em confiança, aprecio você. Não é à toa que você é o marido da minha irmã. E que você a trata bem, não há quem duvide. Mas não venha me negar que vendeu as terras.
Estou dizendo que não vendi.
Só que elas são de Pedro Páramo. Na certa ele decidiu assim. Dom Fulgor não veio ver você?
Não.
Na certa você vai ver ele chegando amanhã. Se não amanhã, qualquer outro dia.
Pois me mata ou morre; mas não vai sair do jeito que chegou.
Requiescat in pace, amém, cunhado. Por via das dúvidas.
Pode deixar, que você vai voltar a me ver. Não se preocupe por mim. Não foi à toa que minha mãe curtiu bem meu couro, para que aguentasse.
Até amanhã então. Diga a Felícitas que esta noite não venho jantar. Eu não gostaria de poder contar depois: “Eu estive com ele na véspera.”
Vamos guardar alguma coisa, se você na última hora mudar de ideia.
Ouviram-se os pesados passos que iam embora entre um ruído de esporas.

... Amanhã, ao amanhecer, você vai comigo, Bugra. Já aparelhei os animais.
E se meu pai morrer de raiva? Velho do jeito que está... Eu nunca me perdoaria se, por minha causa, acontecesse alguma coisa com ele. Sou a única pessoa que ele tem para fazer as necessidades. E não tem mais ninguém. Qual é essa pressa de me roubar? Aguenta mais um pouquinho. Ele já não demora para morrer.
Você me disse isso mesmo há um ano. E até jogou na minha cara a minha falta de valentia, pois já estava, você mesma disse, farta de tudo. Preparei as mulas, que estão prontas. Você vem comigo?
Deixa eu pensar.
Bugra! Você não sabe quanto eu gosto de você. Não aguento mais de vontade, Bugra. E então você vem comigo ou vem comigo, e já.
Deixa eu pensar. Entenda. Temos de esperar que ele morra. Falta um pouquinho. Daí eu vou com você e você não vai nem precisar me roubar.
Isso você também me disse faz um ano.
E daí?
E daí que precisei alugar as mulas. Eu não tenho mais nenhuma. Elas estão lá esperando. Deixa que ele se arranje sozinho! Você está bonita. E é jovem. Não vai faltar uma velha qualquer que venha cuidar dele. Aqui tem alma caritativa de sobra.
Não posso.
Claro que pode.
Não posso. É que me dá pena, sabe? Afinal, ele é meu pai.
Então está resolvido. Vou lá ver Juliana, que se derrete por mim.
Muito bem. Já não digo mais nada.
Não vai querer me ver amanhã?
Não. Não quero ver você mais.

Ruídos. Vozes. Rumores. Canções distantes:

Minha querida me deu um lenço
com bainhas de choro...

Em falsete. Como se fossem mulheres cantando.
Juan Rulfo, in Pedro Páramo

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