quarta-feira, 17 de maio de 2017

Tipos que invejamos

O solitário é um indivíduo invejado?
É um ser que se basta. Que, aparentemente, não se importa com o silêncio, o escuro, é prático, não costuma expor intimidades, vontades, portanto, nunca saberemos se ele não se importa de estar quase sempre só, nem se é feliz em ser solitário. Ser solitário pode ser vantajoso: em vez de uma garrafa, uma taça; em viagens, escolhe um apartamento single.
Não sabemos em quem vota, quem apoia, nem se conhece o desagravo. Sabemos que viaja sozinho, mas não temos certeza, já que não há registros em álbuns ou redes sociais. Solitário não vai a Paris ou Nova York. Prefere Hong Kong, Lituânia e Croácia. Se o seu desejo é não se comunicar, busca lugares e línguas desconhecidas.
Às manhãs, o solitário encosta no balcão da padaria. Uma média com pão na chapa. Só. Apenas diz bom-dia para o balconista, que o atende há anos. Sorri rapidamente e se concentra no jornal, que compra na banca, não assina. Porque solitário compra as publicações na banca. Faz compras aos poucos paradoxalmente para não se sentir só. Compra um bife de cada vez, um leite de cada vez. Não faz estoque, não tem despensa, já que, ciente da sua solidão, gosta de circular. Um solitário jamais faz compras pela internet. Nem joga jogos que não solitários jogam pelo computador. Nem entra em salas de bate-papos. Porque ele não é carente, apenas solitário.
Na padaria, ninguém sabe onde mora. Muito menos o seu nome. Apesar de, todas as manhãs, há anos, o solitário encostar no mesmo canto do balcão. Acreditam que ele não gosta de futebol. Porque nem repara na TV ligada no canal esportivo, que absorve a atenção dos outros fregueses.
O solitário vai para o trabalho de metrô. De táxi, teria de conversar com o motorista. De ônibus, com o cobrador. Ele fica em pé, no canto do trem, para não ter que se sentar com alguém que possa puxar um assunto. Um solitário não sabe conversar espontaneamente.
Antes de um encontro, ele planeja o que dizer, as frases que vai usar, as opiniões que vai emitir. Ele pensa antes se concordará ou não com a política municipal, estadual e federal. Escolhe observações que não polemizam, “pois é, incrível o que estão fazendo com a nossa cidade”. E ninguém sabe se está elogiando ou criticando.
Frases de único intuito: tornar o mais breve possível o diálogo, já que o solitário não é de muita conversa.
A segurança do prédio de escritórios sempre barrava o solitário. Ele é invisível, apesar de trabalhar naquele local há anos, tempo em que acompanhou a evolução da segurança, que de um hall livre passou a ter porteiros, depois seguranças terceirizados, depois guaritas. As atuais guaritas eletrônicas com crachás com chips e, para os visitantes, balcão com pequenas câmeras e micros, que cadastram qualquer indivíduo que pise naquele chão de granito branco, o salvaram do constrangimento de impedirem a sua entrada.
Mas mesmo com o crachá com chip acionando o verde da guarita, liberando-o, o segurança de plantão olha desconfiado e se pergunta: “Como nunca vi este cara aqui?” E costuma, QAP, perguntar sutilmente à Central se há registro de crachás roubados.
O solitário chega ao trabalho e vai direto para a sua baia. Nela, não há cores vivas, não há fotos de parentes ou amigos, nem recados ou correspondência, apenas o seu computador. É limpa, como se ninguém trabalhasse nela.
A maioria do escritório acredita que o solitário seja gay. Ou melhor, é um gay que nunca saiu do armário. Porque nunca o viram com nenhuma mulher. Nem com Lucila, secretária nova que ficou a fim dele, provocou, mas ele, nada. Portanto, é gay, concluíram.
Mas também nunca o viram com ninguém. E gays costumam ser sociáveis e festivos. O cara, não, era apenas solitário, não gostava de homem nem de mulher, não gostava de se relacionar. Lucila dava bronca em todos: “Por que vocês, seus machões, acham que um homem sozinho é gay?”
O solitário é muito eficiente no trabalho. Almoça sozinho em restaurantes. E nem abre um livro para disfarçar. Almoça sozinho olhando para o vazio.
Não se preocupa em esconder que é, sim senhor, um solitário.
O solitário vai ao cinema sozinho, compra uma Coca light gigante só para ele, e, se alguém se senta ao seu lado, ele fica constrangido, controla-se por alguns minutos, até não aguentar e, numa explosão de sentimentos confusos, se levantar e mudar de lugar.
Todo solitário é magro. Pois não come fora de hora, não bebe muito, não se entope de petiscos de botequim.
Solitários têm amigos.
Mas nunca telefonam para eles.
Eles vão a festas.
Não dançam.
Encostam-se nas paredes e olham os que dançam.
Circulam bastante, porque gente concentrada e muito barulho os atormentam.
Os carentes precisam trocar e-mails e torpedos com dúzias de amigos, têm mais de 250 seguidores no Twitter, quinhentos no Instagram, mil amigos no Face. São daqueles que não só aceitam todos que se convidam, como convidam os desconhecidos.
A maior curiosidade que o solitário desperta: se é um indivíduo que inveja os não solitários. O solitário é só por opção ou traumas o tonaram solitário?
Marcelo Rubens Paiva, in As verdades que ela não diz

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