domingo, 21 de maio de 2017

Sob o céu de Brasília

Numa tarde distante vi o rosto de uma moça na janela de um ônibus cinza, empoeirado, um dos ônibus feios e velhos de Brasília. Esqueci a feiura do ônibus, por uns minutos esqueci que eu era um dos passageiros de outro ônibus cinza e feio. Mas não esqueci que eu devia saltar na avenida W3-Sul.
Enquanto os dois ônibus andavam lado a lado, eu olhava os olhos claros de um rosto que me olhava, um rosto moreno e sério, mais bonito que sério. E o céu de Brasília, azul sem manchas, brilhava naquela tarde nervosa.
Meu ônibus ficou para trás, vi que o outro ia parar na rodoviária e então interrompi meu itinerário, saltei no setor hoteleiro e caminhei até a estação.
Procurei na plataforma de desembarque o rosto moreno de olhos verdes. Havia mais soldados que passageiros na tarde de ar seco. Brasília era uma cidade policiada dia e noite, e assustadora naquela tarde em que procurava uma moça mais velha do que eu, ou menos jovem, porque eu tinha dezesseis anos e nunca soube a idade dela. Ainda a vi na fila de passageiros, mais alta que os homens e mulheres humildes que mourejavam na capital faraônica. Usava um vestido branco e não totalmente opaco. Quando andei para alcançá-la, ela entrou num ônibus que ia para Sobradinho. Ou seria Planaltina? Não recordo o destino exato, mas tenho certeza de que nos despedimos com um olhar, depois com um aceno tímido, e não vi tristeza no rosto que viajava para uma cidade-satélite.
Fiquei parado na plataforma, pensando como tinha sido covarde. Eu devia ter entrado naquele ônibus, mas alguns amigos me esperavam na W3. Minha ausência nesse encontro não seria um ato covarde? Decidi caminhar até a calçada da loja Comfort, nosso ponto de encontro. Dois amigos me esperavam dentro da loja, daqui a pouco chegariam outros, talvez um ou dois inimigos, dedos-duros disfarçados de estudantes, jovens cooptados pela repressão.
O gerente da Comfort pediu que saíssemos, a loja seria fechada por causa da baderna, e a baderna significava: uma passeata. Antes de atravessarmos a W3-Sul, um amigo me entregou um pacote de panfletos e murmurou o lugar da panfletagem, que seria feita antes do discurso do presidente da UNE. Em seguida nos dispersamos, sabendo que não nos encontraríamos mais naquela tarde.
As viaturas apareceram e bloquearam a avenida, e enquanto eu deixava panfletos na porta das casas, recordava o rosto da moça, o aceno demorado com a mão direita, o sorriso, e quando estalaram os primeiros estampidos de bombas de gás, percebi que o cerco policial se completava e que a passeata seria um fiasco.
De longe, vi pessoas correndo e sendo espancadas: alunos do Elefante Branco, do colégio de aplicação e da Universidade de Brasília, professores, funcionários, talvez alguns políticos. Na correria os panfletos escaparam de minhas mãos e, quando parei para apanhar as folhas de papel, escutei uma voz dizer:
É melhor você largar isso e entrar em casa. A polícia vai chegar logo.”
Reconheci o homem: tinha sido meu senhorio quando desembarquei na capital. Entramos na casa dele, vi os mesmos objetos na sala pequena, onde dois meninos brincavam com um bebê sentado no chão.
Fez oito meses”, disse o homem, apontando para o bebê. “Você pode jantar e dormir aqui.”
Eu disse que ia esperar uma ou duas horas e depois iria embora.
Vão te pegar”, ele advertiu. “E vão descobrir que você estava aqui. Tenho três filhos, não quero encrenca com a polícia.”
Conversamos pouco: naquela época todos desconfiavam de todos. Pensei em ir embora depois do jantar, mas a W3 estava cercada por viaturas da polícia; da janela da sala eu podia ver caminhões e capacetes verdes, dali a pouco seria noite e não me lembro de crepúsculo nem de céu com estrelas.
Jantei com o homem e a mulher dele. Não me perguntaram nada sobre política nem movimento estudantil. Ele era funcionário da Novacap, e a mulher cuidava da casa e dos filhos. Disse a eles que morava na Asa Norte e estudava no colégio de aplicação da UnB.
Entrei no quarto onde havia dormido em 1968. Pensei nos meus amigos, não consegui dormir. Os únicos livros da sala eram os volumes de uma enciclopédia. Li ao acaso alguns verbetes, conheci animais e plantas estranhos, saltei do Distrito Federal para a África, depois procurei a palavra Brasília, mas não a encontrei. A Capital ainda não existia naquela enciclopédia, mas isso não me alegrou nem me entristeceu. Antes de amanhecer, passei da África para a Ásia, escrevi um poema sobre a guerra do Vietnã, lembro que esse texto foi publicado no Correio Braziliense e logo esquecido. Depois pensei no rosto anguloso, moreno, pensei nos olhos verdes, no corpo que o vestido branco moldava. Um corpo e um olhar que mereciam um poema, mas só agora me dei conta disso.
Nunca mais vi aquela moça, nem a reconheceria se olhasse para mim da janela de um ônibus em qualquer cidade do Brasil. Tampouco ela me reconheceria: seríamos dois estranhos pensando em coisas diferentes, em milhares de coisas diferentes, porque a vida não parou naquela tarde ensolarada de 1969.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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