quarta-feira, 3 de maio de 2017

Outros olhos

No fundo de cada cabeça devem existir outros olhos, uns olhos que enxergam para dentro, e provavelmente são eles que veem as imaginações, as reminiscências, os sonhos, as ideias, as doidices que a gente pensa.
Enquanto os olhos que olham para fora se limitam a contemplar o que está na frente deles, esses tais olhos de dentro ora veem o que querem, ora o que a gente quer ver.
Às vezes eles são obedientes. Outras são muito teimosos.
Quase sempre são criativos. De vez em quando são tão sensíveis. São imprevisíveis, os olhos de dentro.
Em caso de necessidade, são capazes de reproduzir fielmente as imagens que os de fora já viram, o que é chamado vulgarmente de lembrança, fenômeno fácil de ser compreendido.
É feito foto, filme, computador. Deve estar tudo registrado em alguma parte da memória.
O mais difícil de entender é como eles conseguem inventar coisas que os olhos de fora nunca viram:
Acontecimentos que não aconteceram.
Momentos que jamais passaram.
Situações completamente estapafúrdias.
Condições imaginárias.
Suposições.
Tragédias.
Finais felizes.
Sinais.
Hipóteses.
Subterfúgios.
Absurdos.
Desejos.
Aquilo que não existe, ou que não é visível, ou que ainda não foi descoberto, o que já foi embora, tudo o que está no brejo, o que está sempre no escuro, soterrado, escondido, após, por trás, o microscópico, a conjectura, o que foi arrancado, o que não foi aberto.
Brincar com os olhos de dentro pode ser engraçado.
É só imaginar o que quiser, por mais maluco que seja, e podem acontecer laranjas azuis — sóis sem luz — duas luas no céu — uma tartaruga veloz — uma fuga, um refúgio, um lugar — outro valor para “Pi” — paz aqui no planeta — cometas, estrelas cadentes, beijos noturnos, mil e uma viagens — paisagens à vontade do freguês — um Saturno sem anéis, uma ilha encantada, uma cidade tranquila, uma casinha na floresta — festas de chuva no sertão — um patrão mão-aberta (ou qualquer outra pessoa inventada).
Quem manda nos olhos de dentro?
Será um Deus?
Um louco?
Um desenhista?
Um escritor?
Um diretor de cinema?
Será o desejo da gente?
Há quem diga que é o inconsciente.
Há quem pense que é o por acaso.
Eu não sei o que pensar.
Mando meus olhos de dentro pensarem sozinhos e lá se vão eles inventando caminhos.
Deixo o agora para trás.
Olho só para o depois.
Encontro um farol.
Sofro uma alucinação?
Tanto faz.
Faço uma poesia, então, e imagino um país.
Vejo a gente feliz num dia de sol.
Tem hora que o melhor que se pode fazer é ver as coisas com outros olhos.
Adriana Falcão, in O doido da garrafa

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