Pena
que a vida seja tão curta. Há tantas coisas bonitas para serem
vistas! Acho que a noite estava chegando quando Robert Frost
escreveu... Ah! Mas antes de ler... Já disse que os poetas deveriam
aprender dos compositores. Os compositores indicam, no início da
partitura, o andamento e o sentimento daquela música. Poesia é
música. Portanto, os poetas deveriam fazer o que fazem os
compositores. Frost não fez. Eu farei. Assim, coloco no início do
seu poema: lentamente, nostalgicamente... Agora podemos ler.
Os
bosques são belos, sombrios, fundos.
Mas
há muitas milhas a andar e muitas promessas a guardar
antes
de se poder dormir,
sim,
antes de se poder dormir.
Uma
aluna minha chorou ao ouvir esses versos pela primeira vez. A dor se
encontra nesta palavrinha mas. Sim, os bosques são belos,
cheios de mistérios... Convidam. O poeta ouve a sua voz. Mas
não aceita o convite. E explica: “Não posso. É crepúsculo. A
noite se aproxima. Há urgências que me chamam: milhas a andar,
promessas a guardar, antes de se poder dormir”. Antes de se poder
dormir? Aquela cena será uma metáfora da vida que chega ao fim,
como o dia? E o dormir – será a morte? É preciso caminhar
rápido. O tempo é breve. Não há tempo para atender a todos os
convites da beleza à beira do caminho. A vida é breve. Que pena...
Ravel se lamentava: “Há tantas músicas a serem escritas...” Eu
acrescento: Há tantos poemas a serem lidos!
Os
desencontros da vida fizeram com que eu só descobrisse a poesia ao
entardecer. Quantos poemas eu não li! Mas agora o tempo não dá.
Sinto inveja de Murilo Mendes. Ao lê-lo, tenho vislumbres dos poemas
que ele leu e eu nunca lerei, dos quadros que ele viu e eu nunca
verei. Sinto a mesma coisa lendo Bachelard. Homens afortunados,
encontraram-se com a poesia quando eram ainda crianças! Que
lamentável falha em nosso sistema educativo, em que o prazer da
poesia não se encontre entre as exigências para se ingressar na
universidade! E, no entanto, Norbert Wiener afirmou que existe mais
comunicação num poema de Keats que num relatório científico!
Releio
o capítulo “Os devaneios voltados para a infância” do
maravilhoso livro A poética do devaneio, de Bachelard. Ah!
Como os terapeutas e os educadores ficariam mais sábios se lessem
esse texto maravilhoso. Compreenderiam melhor as crianças se se
entregassem aos seus próprios devaneios de criança! São tantos os
poetas que Bachelard cita e que desconheço! Bem que gostaria de ter
tempo para conhecê-los. Mas não posso. Já anoitece. Eu nunca havia
ouvido este nome Henri Bosco. Mas agora, depois de ler dois
pequenos fragmentos, eu já o amo. Porque ele põe palavras nos meus
sentimentos. Falando sobre sua infância, ele diz: “Eu retinha com
uma memória imaginária toda uma infância que ainda não conhecia e
que, no entanto, reconhecia!” Para se conhecer a alma de uma
criança, é preciso abandonar a memória biográfica e entrar na
imaginação, aquilo que nunca foi. Como é isso, não conhecer e, no
entanto, re-conhecer? Os poetas sabem que é assim. Na mais bela
declaração de amor jamais escrita, Fernando Pessoa diz:
Quando
te vi, amei-te já muito antes.
Tornei
a achar-te quando te encontrei.
“Sim,
meu amor por ti já estava em mim, antes que te conhecesse. Então,
eu te conhecia sem o saber! Agora, que te encontrei, re-conheci o
rosto que eu já amava sem saber. Tu, minha amada, já existias em
mim desde antes do começo dos mundos!”
A
amada morava no amante numa memória anterior à história, aquela
mesma memória na qual santo Agostinho encontrou o seu Deus. Assim
são as memórias da infância. Elas são anteriores à infância
real. São fantasias felizes.
Assim
Bosco podia escrever: “No meio de vastas extensões despojadas pelo
esquecimento, luzia continuamente essa infância maravilhosa que me
parecia ter inventado outrora...” É preciso esquecer os fatos para
que as essências apareçam.
Ao
reler o que escrevi, tive medo de que não estivesse claro. Mas
talvez até fosse bom que não estivesse claro. A clareza nos mantém
ligados ao texto, o que inibe a fantasia. O pensamento, como os
olhos, se esforça mais em meio às neblinas... Mas ainda sou vítima
dos antigos hábitos de professor. Desejo retirar as neblinas...
Assim, vou tentar explicar.
Já
falei em outros lugares sobre Angelus Silesius, o místico que
escrevia em forma poética. Um dos seus poemas diz assim: “Temos
dois olhos. Com um nós vemos as coisas do tempo, efêmeras, que
desaparecem. Com o outro nós vemos as coisas da alma, eternas, que
permanecem”. Dois olhos, cada um deles tem uma memória diferente.
Na memória do primeiro olho estão guardadas, numa infinidade de
arquivos, as informações sobre o mundo de fora, coisas que
realmente aconteceram. Basta que eu diga o nome da informação
desejada para que o arquivo se abra e eu me lembre. É assim que
funcionam os computadores. Nós, em muitos aspectos, nos parecemos
com eles. Mas as memórias do segundo olho são diferentes. E isso
porque elas moram na alma. E a alma é uma artista. Artistas não
aceitam a realidade. Como disse o filósofo Ernst Bloch: “O que é
não pode ser verdade.” Ou, no dizer do poeta Manoel de Barros:
“Deus dá a forma: o artista desforma...” Imagine um ceramista.
Trabalha com a argila. Argila é coisa sem sentido, sem beleza. Aí
ele, artista, toma a argila e com suas mãos lhe dá a forma de
beleza que sua fantasia pede. Pois é isso que faz a alma: ela toma
as memórias do primeiro olho como se fossem argila e lhes dá a
forma que o coração pede. Por oposição às memórias do primeiro
olho, que são exteriores a nós, as memórias do segundo olho são
partes de nós mesmos. Quando as recordamos, o corpo se altera: ele
ri, chora, brinca, sente saudades, medo, quer voltar – às vezes
para pegar no colo aquela criança amedrontada. E nem sabemos se foi
daquele jeito mesmo ou se o recordado é uma fantasia, criada pela
alma. Mas, para a alma, isso não importa.
Meu
amigo Jether Ramalho me contou uma dessas memórias. Ele, menino, há
mais de setenta anos. Com seus pais e irmãos. Estão no convés de
um navio. No cais, os amigos e irmãos da igreja acenam adeus e
cantam: “Deus vos guarde pelo seu poder...” Estão deixando o
Brasil para se mudar para Portugal. O navio apita seu apito rouco e
triste. Ouve-se mais forte o barulho das máquinas. O navio
despega-se do cais. Abre-se o espaço entre o cais e o navio, o
espaço da ausência. “Todo cais é uma saudade de pedra!” O
navio vai se distanciando. As pessoas com seus lenços brancos vão
ficando pequenas. E as vozes, aos poucos, vão se tornando
inaudíveis...
Essa
cena está fora do tempo, paralisada. Não tem antecedentes. Não tem
consequentes. Ela aparece pura e eterna na memória, como se fosse um
belo quadro. Ou um sonho que se repete. E basta que ela seja lembrada
para que a alma deseje voltar. Não é parte de um passado. É sempre
presente.
Essas
reflexões me vieram no meu esforço de recuperar o meu tempo
perdido. Quero revisitar o meu passado para contar... Mas percebi que
a minha memória, nesse esforço, não me contava uma história,
uma série ordenada de eventos acontecidos que poderiam até se
transformar numa biografia. Pois não é isso que é uma biografia?
Um relato de coisas acontecidas? Ah! Como o Riobaldo era sábio.
“Contar é muito dificultoso”, ele dizia.
Não
pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que têm certas
coisas passadas de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. A
lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos; uns com os
outros acho que nem não se misturam. Contar seguido, alinhavado, só
mesmo sendo coisas de rasa importância. Tem horas antigas que
ficaram muito mais perto da gente do que outras de recente data. Toda
saudade é uma espécie de velhice.
Talvez,
então, a melhor coisa seria contar a infância não como um filme em
que a vida acontece no tempo, uma coisa depois da outra, na ordem
certa, sendo essa conexão que lhe dá sentido, princípio, meio e
fim, mas como um álbum de retratos, cada um completo em si mesmo,
cada um contendo o sentido inteiro. Talvez seja esse o jeito de se
escrever sobre a alma em cuja memória se encontram as coisas
eternas, que permanecem…
Rubem
Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente
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