sexta-feira, 26 de maio de 2017

Bote na conta (trecho)

A conta do armazém — nunca poderei me esquecer dela. Como um fantasma incansável ela me persegue, embora a meninice tenha passado e aqueles dias não existam mais. Morávamos numa cidadezinha no norte do Colorado. Nossa casa de tijolos vermelhos foi o presente de casamento do meu pai para minha mãe. Tijolo por tijolo, ele a construiu sozinho, trabalhando à noite e aos domingos.
Levou um ano para construir aquela casa, e no primeiro aniversário do seu casamento meu pai e minha mãe tomaram posse. Fui o primeiro filho e o único que não nasceu na casa de tijolos vermelhos. No primeiro ano da casa nova, meu irmão nasceu. No ano seguinte, outro irmão nasceu. E depois outro. E outro. E outro. Minha mãe dava à luz com tanta rapidez que meu pai pedreiro ficou estonteado e caiu num estado de pasmo do qual nunca se recuperou inteiramente. Éramos nove.
Ao lado da casa de tijolos ficava o armazém do sr. Craik. Pouco depois de mudar para a nova casa, meu pai abriu uma conta de crédito com o sr. Craik. Nos primeiros anos ele conseguiu manter a conta em dia. Mas as crianças foram crescendo, ficando mais famintas, e novas crianças chegaram, e ainda mais, e a conta do armazém se elevou a cifras estratosféricas. Pior, toda vez que havia um nascimento em nossa casa aquilo parecia trazer azar ao meu pai. Suas preocupações e sua prole subiam um degrau, e sua renda descia. Ele estava seguro de que Deus nutria um poderoso ressentimento contra ele por excessos anteriores. Dinheiro! Quando eu tinha doze anos, meu pai acumulara tantas contas que até eu sabia que não tinha a intenção nem a oportunidade de pagá-las.
Mas a conta do armazém o atormentava. Quando devia ao sr. Craik cem dólares, ele pagava cinquenta. Devendo duzentos, pagava setenta e cinco. Devendo trezentos, dava um jeito de pagar cem. E assim era com todas as suas dívidas. Não havia mistério algum em torno delas. Não havia motivos ocultos para sua falta de pagamento. Nenhum orçamento poderia resolvê-las. Nenhuma economia planejada poderia alterá-las. Era muito simples — sua família comia mais do que ele ganhava. Sabia que sua única escapatória estava em um golpe de sorte. Sua pressuposição inabalável de que tal golpe de sorte estava a caminho havia protelado a sua deserção e o impedia de estourar os miolos. Constantemente ameaçava ambas as coisas, mas não concretizava nenhuma.
O sr. Craik queixava-se sem cessar. Na verdade, nunca confiou em meu pai. Se nossa família não morasse ao lado do seu armazém, onde ele podia ficar de olho em nós, e se não sentisse que acabaria recebendo pelo menos parte do dinheiro que lhe era devido, ele não teria concedido mais crédito. Simpatizava com minha mãe e sentia pena dela com aquela quase simpatia e compaixão fria que os homens de negócios demonstram para com os pobres enquanto classe, e com aquela apatia frígida em relação a seus membros individuais. Agora que a conta estava tão alta, ele maltratava minha mãe e até a insultava. Sabia que ela pessoalmente era honesta a ponto de uma inocência infantil, mas isso não parecia relevante quando ela vinha ao seu armazém para fazer novos acréscimos à conta. Era um homem que lidava com mercadorias, não com sentimentos. Deviam-lhe dinheiro e ele permitia a ela um crédito adicional. Suas cobranças de dinheiro eram em vão. Sob tais circunstâncias, sua atitude era a melhor que ele podia demonstrar.
Minha mãe precisava de coragem para encará-lo dia após dia. Ela precisava armar-se de uma audácia inspirada. Meu pai não dava muita atenção a suas mortificações nas mãos do sr. Craik. Além de expressar seu desânimo por ir confrontar de novo o comerciante, ela não contava a meu pai a crueldade do sr. Craik em detalhes. Era humilhante demais. E por isso meu pai não tinha plena consciência daquilo. Suspeitava, mas era o tipo de suspeita que uma pessoa detestava verificar. Ele naturalmente esperava algum tipo de problema na obtenção de crédito adicional. Como sua mulher, aquela era a obrigação dela. No seu modo de pensar, não era culpa dele ter tantos filhos. Encarava aquilo como uma conspiração deliberada entre ela e Deus. Ele era meramente um homem que trabalhava para viver. Amava seus filhos, é claro — mas, afinal! Por isso ela devia cumprir sua parte, que ele considerava imensamente fácil, uma vez que nada tinha a ver com o suor e a labuta do seu ofício.
A tarde inteira e até uma hora antes do jantar, minha mãe ficava à espera daquela inspiração valente e desesperada, tão necessária para uma ida ao armazém. Ficava sentada com as mãos nos bolsos do avental — esperando. Mas sua coragem dormia por excesso de uso e não se levantava. Esta tarde de inverno foi típica. Eu lembro: era tarde. Da janela ela podia me ver do outro lado da rua com uma turma de garotos da vizinhança. Fazíamos guerra de bolas de neve. Ela abriu a porta.
Arturo!
Eu a vi de pé na beira da varanda. Me chamou porque eu era o mais velho. Estava quase escuro. Sombras profundas se arrastavam pela neve leitosa. Os lampiões de rua ardiam friamente, um brilho frio numa névoa ainda mais fria. Um automóvel passou, as correntes dos seus pneus tilintavam assustadoramente.
Arturo!
Eu sabia o que ela queria. Revoltado, estalei os dedos. Eu sabia muito bem que ela queria que eu fosse ao armazém. Sua voz tinha aquele tremor desesperado peculiar que cercava o momento de ir ao armazém. Tentei cair fora fingindo que não tinha ouvido, mas ela continuou chamando até quase me pôr a berrar, e o restante dos garotos parou de jogar bolas de neve.
Lancei mais uma, observei-a se desfazer em salpicos e depois me arrastei pela neve e através da calçada gelada. Agora eu a podia ver bem. Seus maxilares tremiam no frio crepuscular. Estava de pé com os braços cruzados, batendo os pés no chão para mantê-los aquecidos.
Que-é-que-quer? — perguntei.
Está frio — ela falou. — Entre e vou lhe dizer.
O que é, mãe? Tô com pressa.
Quero que vá até o armazém.
O armazém? Não. Não vou. Sei por que quer que eu vá — porque está com medo por causa da conta. Pois bem, eu não vou.
Por favor — disse ela. — Você é grande o bastante para entender. Sabe como é o sr. Craik.
Eu sabia. Eu o odiava. Andava sempre a me perguntar se meu pai estava bêbado ou sóbrio e que diabo meu pai fazia com o seu dinheiro e como vocês carcamanos vivem sem nenhum centavo e por que o seu velho nunca está em casa à noite? Eu conhecia o sr. Craik e o odiava.
Por que August não pode ir? — perguntei. — Que diacho, eu sempre tenho de fazer tudo nesta casa.
Mas August é muito criança. Ele não ia saber o que comprar.
Pois bem — falei. — Eu não vou.
Virei as costas e voltei a passos largos para a turma. A guerra de bolas de neve recomeçou. Ela me chamou. Não respondi. Gritou de novo. Gritei mais alto para abafar sua voz. Agora já estava escuro e as janelas do sr. Craik floresciam na noite. Minha mãe estava parada lá olhando para a porta do armazém.
John Fante, A grande fome: contos (1932-1959)

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