Um
pontinho vem crescendo, pouco a pouco, da lonjura. Nesta estepe
gelada, sem pasto nem marcas, d e onde até os corvos fogem, a luz
queima os olhos. A puna é tão alta que se pode tocar o céu com as
mãos: a luz cai de muito perto, e arranca da pedra lisa brilhos de
cor púrpura ou de cor de enxofre.
O
pontinho vai se convertendo, lentamente, em uma mulher que corre. Usa
um chapéu preto como os de Potosi e um chale vermelho, tão amplo
como sua vasta saia. Ela corre deslizando no meio dessas desolações
que não começam nem terminam nunca, banhada pela luminosidade que
sai do chão como se estivesse atrasada para chegar a algum encontro.
Pelo
que me contaram aqui, o yatiri virou yatiri sem querer
ou decidir. Foi escolhido. E nem as ovelhas viram isso – não havia
homens ou animais: não havia ninguém. Uma voz o chamou do alto da
noite quando ele ainda não era yatiri e ele subiu atrás da
voz caminhando pela montanha até chegar lá em cima, muito além das
nuvens. Sentou ao pé da pedra e esperou.
Então
caiu o primeiro raio e ele foi partido em pedaços. Depois caiu o
segundo raio e os pedaços se reuniram, mas ele não podia ficar em
pé. Aí caiu o terceiro raio que o soldou.
Assim
foi quebrado e construído o yatiri, morto e renascido, e
assim foi sempre, pelo que me contaram aqui, desde que Viracocha
criou o mundo e o raio que cai, as pedras que despencam, os rios que
arrasam plantações e currais, a inundação e a seca, as epidemias
e os terremotos. (E desde que criou a nós, os homens, ou nos sonhou,
porque aí ele já estava dormindo.)
Uma
cortina de água apaga o vão alto e negro que separa os picos altos
no horizonte. Um relâmpago atravessa esse vão. Está chovendo para
os lados de Chayanta.
Debaixo
da terra, metidos nas grotas e nas fendas, os homens perseguem os
filões. Que aparecem, escorrem, se oferecem, se negam: é uma víbora
cor de café e em sua carne brilha, trêmula, a cassiterita. Uma
caçada que se faz em três turnos, bem no meio da montanha. E onde
participam milhares de homens armados de cartuchos de dinamite ou de
anfo: essa manteiga que também se usa para brigar em cima da
terra e que os capatazes desconfiam, quando veem os pacotes que os
mineiros costumam levar debaixo de seus casacões de trabalho, que
são amarelos – de um amarelo raivoso.
Um
rato agarrado num buraco fundo: uma opressão entre o peito e as
costas, uma dor que caminha pelo corpo: a vingança do pó de
silício: antes da tosse e do sangue e da aniquilação temporã, os
perseguidores do filão perdem o gosto da bebida e da comida e perdem
o cheiro das coisas.
Llallagua:
deusa da fecundidade e da abundância. Llallagua: um grande depósito
de lixo cercado de potes de chicha. Alguém cruza a ponte sobre o rio
Seco, arrastando um carrinho de mão cheio de cachorros mortos, com
as bocas abertas.
Tenho,
tenho, diz
e
não tem nada
nem
um tostão no bolso
para
os cigarros...
O
rio é um leito cinza e escasso que corre entre as pedras. Todas as
águas de Llallague acabam parecidas com a areia espessa que
brota da boca da mina e todas as ruelas de Llallagua,
escorregadias de barro, levam para o lixo.
Aqui,
o sol incendeia, o vento arrebenta, a sombra gela, o frio fere, a
chuva cai como pedradas. Durante o dia, o inverno e o verão cortam
os corpos em dois – ao mesmo tempo.
À
luz de velas, uma mulher dança huayno no chão de terra. As
várias saias da mulher flutuam e a longa trança negra voa para trás
e para a frente, e ela acaricia a trança com os dedos.
Alguém
segreda: “A Hortênsia tem amor. Mas só por um tempinho: só para
um tempinho. Vai oferecer maravilhas para ele. Mas depois...”
Todos
bebem:
– Aqui!
Aqui! Seco, fundo seco, mostrem os copos! Sirva-se, sirva-se, não
seja galinha, vamos ver!
– A
gente tem de fuzilá-los, porra, todos, todinhos, porra!
– Um
trago por isso! Um brinde pelos que dançam! Mas que seja forte!
– Na
nuca, porra, por tanta encheção de saco! E a tiros, que é melhor!
É, além disso, mais pedagógico, porra!
– Um
brinde por Camacho! Brindemos por merda nenhuma! Eu estou na rua,
nesta merda de rua!
El
Lobo tem duas mulheres, mas todos sabem que uma, a corcundinha,
só serve como amuleto, e que a outra quer tirar a roupa toda vez que
fica bêbada.
Cantarei,
e só,
Dançarei,
e só
não
sobrou nem
água
para mim.
Quem
trabalha nas manhãs de segunda-feira? Os distraídos e os suicidas.
Nem os padres. Meteram duas lhamas brancas, vivas, no fundo do
grotão. O yatiri afundou no pescoço delas seu punhal de
prata e bebeu o sangue quente na concha de sua mão, e depois
ofereceu sangue à terra, porque a terra pode nos comer quando
quiser. Com um chifre de caça, chamou os inimigos dos mineiros e
levou-os para longe.
–
Irmãos, companheiros. Estamos oferecendo
boa presa para que apareçam bons filões nas minas, e a sorte boa
contra os desmoronamentos e contra os caminhos perdidos. Agora
estamos brindando pelos tios e tias e neste instante
eles estão fazendo o mesmo por nós. Eles estão enchendo a cara no
inferno, pela nossa saúde.
Os
mineiros, sentados em roda, olhavam – sem fixar os olhos – para o
tio, em seu trono iluminado pela luz das velas, suas sombras
espantosas nas paredes das grutas. Nas vasilhas, aos pés do tio, a
aguardente ia baixando de nível e desaparecendo, as vísceras das
lhamas sofriam dentadas invisíveis e as folhas de coca se convertiam
em polpa babada. O charuto virava cinza na boca do diabo de barro.
– As
duas lhamas que sacrificamos estão sendo devoradas pelos diabos, e
todas as virgens, junto com eles, também estão comendo a carne
sagrada. E amanhã, ao amanhecer, vamos recolher os restos que
sobrarem, e então vamos comer nós. E durante sete dias ninguém
entrará aqui e ninguém trabalhará.
Ainda
que ele acreditasse, como todos, que tempos idos não voltam mais,
houve alguém que desejou que aparecesse o Tio em pessoa,
trabalhando ao meio-dia, batendo com um martelo as paredes de uma
lavra abandonada, uma lavra falsa, e batendo na pele de don Simón
Patiño, que tivera a sorte e o dinheiro e o poder. Mas o que eles
viam, quando fechavam os olhos, eram os homens mortos a bala, bêbados
ainda e luminosos pelas fogueiras de São João.
Me
perguntavam como era o mar. Eu contava que na boca dos pescadores o
mar é sempre mulher e se chama la mar. Que é salgado e muda
de cor. Contava para eles como as grandes ondas vêm rodando com suas
cristas brancas e se levantam e se estraçalham contra as rochas e
caem revolvendo-se na areia. Contava para eles da bravura do mar, que
não obedece a ninguém a não ser a lua, e contava que no fundo ele
guarda barcos mortos e tesouros de piratas.
Eduardo
Galeano, in Vagamundo
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