segunda-feira, 29 de maio de 2017

A terra pode nos comer quando quiser

Um pontinho vem crescendo, pouco a pouco, da lonjura. Nesta estepe gelada, sem pasto nem marcas, d e onde até os corvos fogem, a luz queima os olhos. A puna é tão alta que se pode tocar o céu com as mãos: a luz cai de muito perto, e arranca da pedra lisa brilhos de cor púrpura ou de cor de enxofre.
O pontinho vai se convertendo, lentamente, em uma mulher que corre. Usa um chapéu preto como os de Potosi e um chale vermelho, tão amplo como sua vasta saia. Ela corre deslizando no meio dessas desolações que não começam nem terminam nunca, banhada pela luminosidade que sai do chão como se estivesse atrasada para chegar a algum encontro.
Pelo que me contaram aqui, o yatiri virou yatiri sem querer ou decidir. Foi escolhido. E nem as ovelhas viram isso – não havia homens ou animais: não havia ninguém. Uma voz o chamou do alto da noite quando ele ainda não era yatiri e ele subiu atrás da voz caminhando pela montanha até chegar lá em cima, muito além das nuvens. Sentou ao pé da pedra e esperou.
Então caiu o primeiro raio e ele foi partido em pedaços. Depois caiu o segundo raio e os pedaços se reuniram, mas ele não podia ficar em pé. Aí caiu o terceiro raio que o soldou.
Assim foi quebrado e construído o yatiri, morto e renascido, e assim foi sempre, pelo que me contaram aqui, desde que Viracocha criou o mundo e o raio que cai, as pedras que despencam, os rios que arrasam plantações e currais, a inundação e a seca, as epidemias e os terremotos. (E desde que criou a nós, os homens, ou nos sonhou, porque aí ele já estava dormindo.)
Uma cortina de água apaga o vão alto e negro que separa os picos altos no horizonte. Um relâmpago atravessa esse vão. Está chovendo para os lados de Chayanta.
Debaixo da terra, metidos nas grotas e nas fendas, os homens perseguem os filões. Que aparecem, escorrem, se oferecem, se negam: é uma víbora cor de café e em sua carne brilha, trêmula, a cassiterita. Uma caçada que se faz em três turnos, bem no meio da montanha. E onde participam milhares de homens armados de cartuchos de dinamite ou de anfo: essa manteiga que também se usa para brigar em cima da terra e que os capatazes desconfiam, quando veem os pacotes que os mineiros costumam levar debaixo de seus casacões de trabalho, que são amarelos – de um amarelo raivoso.
Um rato agarrado num buraco fundo: uma opressão entre o peito e as costas, uma dor que caminha pelo corpo: a vingança do pó de silício: antes da tosse e do sangue e da aniquilação temporã, os perseguidores do filão perdem o gosto da bebida e da comida e perdem o cheiro das coisas.
Llallagua: deusa da fecundidade e da abundância. Llallagua: um grande depósito de lixo cercado de potes de chicha. Alguém cruza a ponte sobre o rio Seco, arrastando um carrinho de mão cheio de cachorros mortos, com as bocas abertas.

Tenho, tenho, diz
e não tem nada
nem um tostão no bolso
para os cigarros...

O rio é um leito cinza e escasso que corre entre as pedras. Todas as águas de Llallague acabam parecidas com a areia espessa que brota da boca da mina e todas as ruelas de Llallagua, escorregadias de barro, levam para o lixo.
Aqui, o sol incendeia, o vento arrebenta, a sombra gela, o frio fere, a chuva cai como pedradas. Durante o dia, o inverno e o verão cortam os corpos em dois – ao mesmo tempo.
À luz de velas, uma mulher dança huayno no chão de terra. As várias saias da mulher flutuam e a longa trança negra voa para trás e para a frente, e ela acaricia a trança com os dedos.
Alguém segreda: “A Hortênsia tem amor. Mas só por um tempinho: só para um tempinho. Vai oferecer maravilhas para ele. Mas depois...”
Todos bebem:
Aqui! Aqui! Seco, fundo seco, mostrem os copos! Sirva-se, sirva-se, não seja galinha, vamos ver!
A gente tem de fuzilá-los, porra, todos, todinhos, porra!
Um trago por isso! Um brinde pelos que dançam! Mas que seja forte!
Na nuca, porra, por tanta encheção de saco! E a tiros, que é melhor! É, além disso, mais pedagógico, porra!
Um brinde por Camacho! Brindemos por merda nenhuma! Eu estou na rua, nesta merda de rua!
El Lobo tem duas mulheres, mas todos sabem que uma, a corcundinha, só serve como amuleto, e que a outra quer tirar a roupa toda vez que fica bêbada.

Cantarei, e só,
Dançarei, e só
não sobrou nem
água para mim.

Quem trabalha nas manhãs de segunda-feira? Os distraídos e os suicidas. Nem os padres. Meteram duas lhamas brancas, vivas, no fundo do grotão. O yatiri afundou no pescoço delas seu punhal de prata e bebeu o sangue quente na concha de sua mão, e depois ofereceu sangue à terra, porque a terra pode nos comer quando quiser. Com um chifre de caça, chamou os inimigos dos mineiros e levou-os para longe.
Irmãos, companheiros. Estamos oferecendo boa presa para que apareçam bons filões nas minas, e a sorte boa contra os desmoronamentos e contra os caminhos perdidos. Agora estamos brindando pelos tios e tias e neste instante eles estão fazendo o mesmo por nós. Eles estão enchendo a cara no inferno, pela nossa saúde.
Os mineiros, sentados em roda, olhavam – sem fixar os olhos – para o tio, em seu trono iluminado pela luz das velas, suas sombras espantosas nas paredes das grutas. Nas vasilhas, aos pés do tio, a aguardente ia baixando de nível e desaparecendo, as vísceras das lhamas sofriam dentadas invisíveis e as folhas de coca se convertiam em polpa babada. O charuto virava cinza na boca do diabo de barro.
As duas lhamas que sacrificamos estão sendo devoradas pelos diabos, e todas as virgens, junto com eles, também estão comendo a carne sagrada. E amanhã, ao amanhecer, vamos recolher os restos que sobrarem, e então vamos comer nós. E durante sete dias ninguém entrará aqui e ninguém trabalhará.
Ainda que ele acreditasse, como todos, que tempos idos não voltam mais, houve alguém que desejou que aparecesse o Tio em pessoa, trabalhando ao meio-dia, batendo com um martelo as paredes de uma lavra abandonada, uma lavra falsa, e batendo na pele de don Simón Patiño, que tivera a sorte e o dinheiro e o poder. Mas o que eles viam, quando fechavam os olhos, eram os homens mortos a bala, bêbados ainda e luminosos pelas fogueiras de São João.
Me perguntavam como era o mar. Eu contava que na boca dos pescadores o mar é sempre mulher e se chama la mar. Que é salgado e muda de cor. Contava para eles como as grandes ondas vêm rodando com suas cristas brancas e se levantam e se estraçalham contra as rochas e caem revolvendo-se na areia. Contava para eles da bravura do mar, que não obedece a ninguém a não ser a lua, e contava que no fundo ele guarda barcos mortos e tesouros de piratas.
Eduardo Galeano, in Vagamundo

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