segunda-feira, 24 de abril de 2017

Um sonho viver da terra


Ocê vai buscá aquela madera? – George quis saber. – Tem um monte ali, atrás daquele plátano. Madera de enchente. Agora vai lá buscá.
Lennie foi até atrás da árvore e trouxe um carregamento de folhas secas e galhos. Jogou tudo em cima da pilha de cinzas e voltou para buscar mais e mais. Já era quase noite. As asas de uma pomba sibilaram por sobre a água. George caminhou até a pilha da fogueira e acendeu as folhas secas. A chama estalou por entre os galhos e começou a trabalhar. George desamarrou a trouxa e tirou três latas de feijão lá de dentro. Ficou parado ao lado do fogo, bem perto das chamas, mas sem encostar nas labaredas.
Aqui tem fejão que chega pra quatro homem – George disse.
Lennie ficou observando-o através da fogueira. Disse, com muita paciência:
Eu gosto de comê com molho de tomate.
Bom, a gente não tem nada disso aqui – George explodiu. – Ocê sempre qué tudo que a gente num tem. Pelo amor de Deus, se eu tivesse sozinho, ia consegui vivê bem fácil. Ia arrumá um emprego e trabaiá, sem problema nenhum. Nenhuma confusão, e quando fosse o fim do meis, eu ia podê pegá meus cinquenta pau e ir pra cidade e comprá tudo que eu queria. Ah, eu ia podê passá a noite intera num putero. Ia podê comê em qualqué lugá que eu quisesse, num hotel ou qualqué otro lugá, e ia pedi qualqué coisa que me desse na telha. E ia podê fazê isso todo meis, que porcaria. Ia podê comprá um garrafão de uísque, ou ir numa casa de jogo e fazê uma partida de carta ou de sinuca.
Lennie se ajoelhou e olhou através do fogo para George, que estava bravo. E o rosto de Lennie foi tomado pelo terror.
E o que é que eu tenho? – George prosseguiu, furioso. – Eu tenho ocê! Ocê num consegue ficá em emprego nenhum e ainda me faiz perdê tudo que é emprego que eu arrumo. Só me faiz ficá andando de cima pra baixo sem pará o tempo intero. E isso aí nem é o pió de tudo. Ocê se mete em confusão. Ocê faiz umas coisa ruim e eu tenho que livrá a sua cara. – Sua voz se elevou em um quase grito. – Seu filho da puta loco. Ocê me mete em apuro o tempo todo. – Assumiu aquele trejeito elaborado de menininhas quando estão imitando umas as outras. – “Só queria pegá no vestido daquela moça… só queria agradá igual se fosse um rato…” Bom, como é que ela ia sabê qu’ocê só queria pegá no vestido dela? Ela desvia d’ocê e ocê continua segurando, como se fosse um rato. Ela grita e a gente precisa ficá o dia intero escondido em uma vala de irrigação, com uns sujeito atrás da gente, e a gente precisa fugi no meio da noite e sumi da região. Tem coisa assim o tempo todo… o tempo todo. Eu bem que queria podê enfiá ocê dentro duma jaula com um milhão de rato e dexá ocê lá se divertindo.
A raiva se esvaiu dele de repente. Olhou através da fogueira para o rosto angustiado de Lennie, e então olhou envergonhado para as chamas.
Já estava bem escuro, mas o fogo iluminava o tronco das árvores e os galhos recurvados acima deles. Lennie arrastou-se cuidadosamente em volta da fogueira até chegar perto de George. Sentou-se sobre os calcanhares. George virou as latas de feijão para que o outro lado ficasse no fogo. Fingiu não perceber que Lennie estava ali tão perto dele.
George – bem baixinho. Sem resposta. – George!
O que é qu’ocê qué?
Eu só tava brincando, George. Num quero molho de tomate nenhum. Eu num ia comê molho de tomate nem que tivesse um pote bem aqui do meu lado.
Se a gente tivesse molho de tomate, ocê ia podê comê um poco.
Mas eu num ia comê nada, George. Ia dexá tudo pr’ocê. Ocê ia podê cobri o seu fejão com ele e eu nem ia incostá.
George continuava olhando para a fogueira morosamente.
Quando eu fico pensando em tudo de bom que eu ia podê fazê se num tivesse ocê cumigo, eu fico loco. Nunca tenho paz.
Lennie continuava ajoelhado. Olhou para dentro da escuridão do outro lado do rio.
George, ocê qué que eu vô imbora e deixo ocê em paz?
Pra onde diabos é que ocê ia?
Bom, sei lá, eu ia. Eu podia ir pr’aquelas montanha ali. Pr’algum lugá onde desse pra achá uma caverna.
Ah é? E como é que ocê ia comê? Ocê num tem capacidade que chega pra achá alguma coisa pra comê.
Eu ia achá uma coisa, George. Num preciso de comida gostosa com molho de tomate. Ia ficá lá deitado no sol e ninguém ia fazê maldade cumigo. E quando eu achava um rato, eu ia podê ficá com ele. Ninguém ia tirá ele de mim.
George olhou para ele, severo e com ar de dúvida no rosto.
Eu fui mau, né?
Se ocê num qué sabê de mim, posso ir pras montanha e achá uma caverna. Posso ir imbora qualqué hora.
Num é isso… olha aqui! Eu só tava brincando, Lennie. Porque eu quero qu’ocê fique comigo. O problema co’os rato é qu’ocê sempre mata eles. – Fez uma pausa. – Vou te dizê uma coisa, Lennie. Na primera chance que tivé, arrumo um cachorrinho pr’ocê. Quem sabe, talvez ocê num vai consegui matá ele. Ia sê meió do que um rato. E ocê ia podê agradá ele mais forte.
Lennie evitou a isca. Tinha sentido que estava em vantagem.
Se ocê num qué sabê de mim, é só falá, e eu vô imbora pr’aquelas montanha bem ali… bem ali naquelas montanha pra vivê sozinho. E daí ninguém vai roubá rato nenhum de mim.
George disse:
Eu quero qu’ocê fica comigo, Lennie. Jesus Cristo, alguém ia atirá n’ocê achando que era um coiote se ocê tivesse sozinho. Nada disso, ocê fica comigo. Tua tia Clara num ia gostá se ocê ficasse andando por aí sozinho, apesar dela já tê morrido.
Lennie falou, todo engenhoso:
Me conta… igual que ocê fez antes.
Contá o quê?
Dos coelho.
George explodiu:
Ocê não vai me enrolá.
Lennie implorou:
Ah, George. Conta. Por favô, George. Igual que ocê fez antes.
Ocê gosta memo dessa história, né? Tudo bem, vô contá, e depois a gente vai jantá…
A voz de George ficou mais profunda. Repetiu as palavras ritmadamente, como se já as tivesse proferido muitas vezes antes daquela.
Uns sujeito que nem a gente, que trabaia nas fazenda, é os sujeito mais sozinho do mundo. Essa gente num tem família. Essa gente num pertence a lugá nenhum. Eles vai até uma fazenda e trabaia pra ganhá um dinhero e daí vai pra cidade gastá o dinhero, e logo já tá lá, arrastando o rabo em otra fazenda. Essa gente num tem nada que esperá do futuro.
Lennie ficou deliciado.
É isso aí… é isso aí. Agora conta aquela parte da gente.
George prosseguiu.
Com a gente, num é assim. A gente tem futuro. A gente tem alguém com quem conversá, alguém que se importa co’a gente. A gente num precisa ficá sentado em bar nenhum gastando o nosso dinhero só porque num tem otro lugá pra ir. Se um desses sujeito vai pra cadeia, pode apodrecê lá que ninguém tá nem aí. Mas co’a gente é diferente.
Lennie interrompeu:
Mas isso num vai acontecê co’a gente! E por quê? Porque… porque eu tenho ocê pra cuidá de mim, e ocê tem eu pra cuidá d’ocê, e é por isso – riu de tanta alegria. – Agora pode continuá, George.
Ocê já decorô. Pode continuá sozinho.
Nada disso, ocê é que sabe contá. Eu isqueço umas coisa. Conta como é que vai sê.
Tudo bem. Um dia desse… a gente vai juntá um dinhero e vai comprá uma casinha e uns alquere de terra e uma vaca e uns porco e…
E vai vivê da terra – Lennie exclamou. – E vai tê coelho. Vai, George! Conta do que a gente vai tê no jardim e dos coelho nas gaiola e da chuva no inverno e do fogão, e da nata do leite que é tão grossa que a gente nem consegue cortá. Conta essas coisa, George.
Por que é qu’ocê num conta sozinho? Ocê já sabe tudo.
Nada disso… ocê que sabe contá. Num é a mesma coisa quando eu conto. Vai, George… Conta como é que eu cuido dos coelho.
Bom – George disse –, a gente vai tê uma horta bem grande e um vivero de coelho e umas galinha. E quando chovê no inverno, a gente só vai mandá o trabaio pro diabo, e a gente vai acendê o fogão e ficá do lado dele só ouvindo a chuva batê no telhado… que locura! – Pegou o canivete. – Num tenho mais tempo pra falá.
John Steinbeck, in Ratos e homens

Nenhum comentário:

Postar um comentário