– Ocê
vai buscá aquela madera? – George quis saber. – Tem um monte
ali, atrás daquele plátano. Madera de enchente. Agora vai lá
buscá.
Lennie
foi até atrás da árvore e trouxe um carregamento de folhas secas e
galhos. Jogou tudo em cima da pilha de cinzas e voltou para buscar
mais e mais. Já era quase noite. As asas de uma pomba sibilaram por
sobre a água. George caminhou até a pilha da fogueira e acendeu as
folhas secas. A chama estalou por entre os galhos e começou a
trabalhar. George desamarrou a trouxa e tirou três latas de feijão
lá de dentro. Ficou parado ao lado do fogo, bem perto das chamas,
mas sem encostar nas labaredas.
– Aqui
tem fejão que chega pra quatro homem – George disse.
Lennie
ficou observando-o através da fogueira. Disse, com muita paciência:
– Eu
gosto de comê com molho de tomate.
– Bom,
a gente não tem nada disso aqui – George explodiu. – Ocê sempre
qué tudo que a gente num tem. Pelo amor de Deus, se eu tivesse
sozinho, ia consegui vivê bem fácil. Ia arrumá um emprego e
trabaiá, sem problema nenhum. Nenhuma confusão, e quando fosse o
fim do meis, eu ia podê pegá meus cinquenta pau e ir pra cidade e
comprá tudo que eu queria. Ah, eu ia podê passá a noite intera num
putero. Ia podê comê em qualqué lugá que eu quisesse, num hotel
ou qualqué otro lugá, e ia pedi qualqué coisa que me desse na
telha. E ia podê fazê isso todo meis, que porcaria. Ia podê comprá
um garrafão de uísque, ou ir numa casa de jogo e fazê uma partida
de carta ou de sinuca.
Lennie
se ajoelhou e olhou através do fogo para George, que estava bravo. E
o rosto de Lennie foi tomado pelo terror.
– E
o que é que eu tenho? – George prosseguiu, furioso. – Eu tenho
ocê! Ocê num consegue ficá em emprego nenhum e ainda me faiz perdê
tudo que é emprego que eu arrumo. Só me faiz ficá andando de cima
pra baixo sem pará o tempo intero. E isso aí nem é o pió de tudo.
Ocê se mete em confusão. Ocê faiz umas coisa ruim e eu tenho que
livrá a sua cara. – Sua voz se elevou em um quase grito. – Seu
filho da puta loco. Ocê me mete em apuro o tempo todo. – Assumiu
aquele trejeito elaborado de menininhas quando estão imitando umas
as outras. – “Só queria pegá no vestido daquela moça… só
queria agradá igual se fosse um rato…” Bom, como é que ela ia
sabê qu’ocê só queria pegá no vestido dela? Ela desvia d’ocê
e ocê continua segurando, como se fosse um rato. Ela grita e a gente
precisa ficá o dia intero escondido em uma vala de irrigação, com
uns sujeito atrás da gente, e a gente precisa fugi no meio da noite
e sumi da região. Tem coisa assim o tempo todo… o tempo todo. Eu
bem que queria podê enfiá ocê dentro duma jaula com um milhão de
rato e dexá ocê lá se divertindo.
A
raiva se esvaiu dele de repente. Olhou através da fogueira para o
rosto angustiado de Lennie, e então olhou envergonhado para as
chamas.
Já
estava bem escuro, mas o fogo iluminava o tronco das árvores e os
galhos recurvados acima deles. Lennie arrastou-se cuidadosamente em
volta da fogueira até chegar perto de George. Sentou-se sobre os
calcanhares. George virou as latas de feijão para que o outro lado
ficasse no fogo. Fingiu não perceber que Lennie estava ali tão
perto dele.
–
George – bem baixinho. Sem resposta. –
George!
– O
que é qu’ocê qué?
– Eu
só tava brincando, George. Num quero molho de tomate nenhum. Eu num
ia comê molho de tomate nem que tivesse um pote bem aqui do meu
lado.
– Se
a gente tivesse molho de tomate, ocê ia podê comê um poco.
– Mas
eu num ia comê nada, George. Ia dexá tudo pr’ocê. Ocê ia podê
cobri o seu fejão com ele e eu nem ia incostá.
George
continuava olhando para a fogueira morosamente.
–
Quando eu fico pensando em tudo de bom
que eu ia podê fazê se num tivesse ocê cumigo, eu fico loco. Nunca
tenho paz.
Lennie
continuava ajoelhado. Olhou para dentro da escuridão do outro lado
do rio.
–
George, ocê qué que eu vô imbora e
deixo ocê em paz?
– Pra
onde diabos é que ocê ia?
– Bom,
sei lá, eu ia. Eu podia ir pr’aquelas montanha ali. Pr’algum
lugá onde desse pra achá uma caverna.
– Ah
é? E como é que ocê ia comê? Ocê num tem capacidade que chega
pra achá alguma coisa pra comê.
– Eu
ia achá uma coisa, George. Num preciso de comida gostosa com molho
de tomate. Ia ficá lá deitado no sol e ninguém ia fazê maldade
cumigo. E quando eu achava um rato, eu ia podê ficá com ele.
Ninguém ia tirá ele de mim.
George
olhou para ele, severo e com ar de dúvida no rosto.
– Eu
fui mau, né?
– Se
ocê num qué sabê de mim, posso ir pras montanha e achá uma
caverna. Posso ir imbora qualqué hora.
– Num
é isso… olha aqui! Eu só tava brincando, Lennie. Porque eu quero
qu’ocê fique comigo. O problema co’os rato é qu’ocê sempre
mata eles. – Fez uma pausa. – Vou te dizê uma coisa, Lennie. Na
primera chance que tivé, arrumo um cachorrinho pr’ocê. Quem sabe,
talvez ocê num vai consegui matá ele. Ia sê meió do que um rato.
E ocê ia podê agradá ele mais forte.
Lennie
evitou a isca. Tinha sentido que estava em vantagem.
– Se
ocê num qué sabê de mim, é só falá, e eu vô imbora pr’aquelas
montanha bem ali… bem ali naquelas montanha pra vivê sozinho. E
daí ninguém vai roubá rato nenhum de mim.
George
disse:
– Eu
quero qu’ocê fica comigo, Lennie. Jesus Cristo, alguém ia atirá
n’ocê achando que era um coiote se ocê tivesse sozinho. Nada
disso, ocê fica comigo. Tua tia Clara num ia gostá se ocê ficasse
andando por aí sozinho, apesar dela já tê morrido.
Lennie
falou, todo engenhoso:
– Me
conta… igual que ocê fez antes.
– Contá
o quê?
– Dos
coelho.
George
explodiu:
– Ocê
não vai me enrolá.
Lennie
implorou:
– Ah,
George. Conta. Por favô, George. Igual que ocê fez antes.
– Ocê
gosta memo dessa história, né? Tudo bem, vô contá, e depois a
gente vai jantá…
A
voz de George ficou mais profunda. Repetiu as palavras ritmadamente,
como se já as tivesse proferido muitas vezes antes daquela.
– Uns
sujeito que nem a gente, que trabaia nas fazenda, é os sujeito mais
sozinho do mundo. Essa gente num tem família. Essa gente num
pertence a lugá nenhum. Eles vai até uma fazenda e trabaia pra
ganhá um dinhero e daí vai pra cidade gastá o dinhero, e logo já
tá lá, arrastando o rabo em otra fazenda. Essa gente num tem nada
que esperá do futuro.
Lennie
ficou deliciado.
– É
isso aí… é isso aí. Agora conta aquela parte da gente.
George
prosseguiu.
– Com
a gente, num é assim. A gente tem futuro. A gente tem alguém com
quem conversá, alguém que se importa co’a gente. A gente num
precisa ficá sentado em bar nenhum gastando o nosso dinhero só
porque num tem otro lugá pra ir. Se um desses sujeito vai pra
cadeia, pode apodrecê lá que ninguém tá nem aí. Mas co’a gente
é diferente.
Lennie
interrompeu:
– Mas
isso num vai acontecê co’a gente! E por quê? Porque… porque eu
tenho ocê pra cuidá de mim, e ocê tem eu pra cuidá d’ocê, e é
por isso – riu de tanta alegria. – Agora pode continuá,
George.
– Ocê
já decorô. Pode continuá sozinho.
– Nada
disso, ocê é que sabe contá. Eu isqueço umas coisa. Conta como é
que vai sê.
– Tudo
bem. Um dia desse… a gente vai juntá um dinhero e vai comprá uma
casinha e uns alquere de terra e uma vaca e uns porco e…
– E
vai vivê da terra – Lennie exclamou. – E vai tê coelho. Vai,
George! Conta do que a gente vai tê no jardim e dos coelho nas
gaiola e da chuva no inverno e do fogão, e da nata do leite que é
tão grossa que a gente nem consegue cortá. Conta essas coisa,
George.
– Por
que é qu’ocê num conta sozinho? Ocê já sabe tudo.
– Nada
disso… ocê que sabe contá. Num é a mesma coisa quando eu conto.
Vai, George… Conta como é que eu cuido dos coelho.
– Bom
– George disse –, a gente vai tê uma horta bem grande e um
vivero de coelho e umas galinha. E quando chovê no inverno, a gente
só vai mandá o trabaio pro diabo, e a gente vai acendê o fogão e
ficá do lado dele só ouvindo a chuva batê no telhado… que
locura! – Pegou o canivete. – Num tenho mais tempo pra falá.
John
Steinbeck, in Ratos e homens
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