terça-feira, 18 de abril de 2017

Um ofício estranho

Sou professor de poesia, embora isso soe estranhamente estranho, como soa estranho essa estranha palavra “estranho”, do latim extraneus. Aliás, fazer isso, brincar com as palavras, estudá-las, localizar sua origem, examinar suas variantes é um bom caminho para quem deseja versificar. Afinal, é disso que se trata. No limite, a diferença entre o poeta e o escritor é que aquele utiliza o verso como veículo de sua expressão, e este, a prosa.
Ai, o espírito de Aristóteles quase me arrancou a orelha!
Sim, mestre, exagerei. É claro que me lembro de que disseste que o historiador pode escrever em versos e nem por isso estará fazendo poesia. É que do teu tempo para o nosso, inventamos outras formas literárias, como o conto, a crônica, a novela, o romance. Tivesse nascido hoje, Sófocles, teu admirado Sófocles, escreveria em prosa!
Sou professor de poesia. Isso mesmo. Dou uma cadeira, na graduação da faculdade de Letras, que se chama Produção de Textos Poéticos. Estudamos poeticidade, formas, metros, ritmos, harmonia e muitas outras tecniquerias, como diria o Unamuno. Mas, mais que teoria, fazemos poesia.
Os críticos das oficinas dirão que isso é impossível. Que a poesia é um dom divino e que só os eleitos são capazes de produzi-la. É impressionante como a aristocracia de espírito ainda tem adeptos.
Indiferente a esse platonismo de província, recebo alunos e alunas que nunca escreveram um verso, que sequer leram bons poemas e que, em três meses, são capazes de apresentar suas produções poéticas em saraus nas livrarias da cidade.
Milagre? Não, método.
Por falar nisso, me encanta a definição de Roland Barthes para método: “Exploração metódica de uma hipótese de trabalho”.
Sem pesar a mão na teoria, induzo meus alunos e minhas alunas a fazerem poesia a partir de exercícios de pasticho, de palavras aleatórias, de ritmos, de leituras de clássicos e de poetas atuais, entre outros. Afinal, todos os participantes da disciplina têm os ingredientes básicos: estão alimentados e são jovens. Além disso, já chegam às aulas alfabetizados.
Alguém ou alguma instituição, no passado, destruiu neles a fé em si mesmos, o gosto pelo novo, o gosto pelo lúdico, o gosto pelo desafio. Antes do Barack Obama, eu lhes dizia: sim, nós podemos. O que um ser humano faz, o outro faz também. E até melhor.
Na companhia de meus alunos de poesia, sou um professor feliz. Às vezes, no meio da brincadeira, porque para funcionar precisa ser uma brincadeira, entre um soneto de Petrarca e uma ode de Píndaro, entre um haicai de Bashô e um poemeto de Quintana, alguns deles produzem estruturas delicadas e metáforas audaciosas, dignas de Eliot, Pessoa, Shakespeare.
Basta mostrar-lhes que as palavras, como os tijolos, estão no léxico à espera do habilidoso construtor. Se com elas fazemos muros ou catedrais, é outra questão.
Em si, em seu adormecido estado de bibelôs de dicionário, as palavras são neutras. Isoladas, são fósseis. Vivificadas pelo sopro criador são como peixes, esguias, brilhantes e rápidas. Repartidas, multiplicam-se e alimentam quem tem fome de beleza.
Charles Kiefer, in Para ser escritor

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