quarta-feira, 19 de abril de 2017

Sondagem

O carteiro, conversador amável, não gosta de livros. Tornam pesada a carga matinal, que na sua opinião, e dado o seu nome burocrático, devia constituir-se apenas de cartas. No máximo algum jornalzinho leve, mas esses pacotes e mais pacotes que o senhor recebe, ler tudo isso deve ser de morte!
Explico-lhe que não é preciso ler tudo isso, e ele muito se admira:
Então o senhor guarda sem ler? E como é que sabe o que tem no miolo?
Em primeiro lugar, Teodorico, nem sempre eu guardo. Às vezes dou aos amigos, quando há alguma coisa que possa interessar a eles.
Mas como sabe que pode interessar, se não leu?
Esclareço a Teodorico que não leio de ponta a ponta, mas sempre abro ao acaso, leio uma página ou umas linhas, passo os olhos no índice, e concluo.
Meu crédito diminui sensivelmente a seus olhos. Não lhe passaria pela cabeça receber qualquer coisa do correio sem a ler inteirinha.
Mas, Teodorico, quando você compra um jornal se sente obrigado a ler tudo que está nele?
Aí é diferente. Eu compro o jornal para ver os crimes, o resultado do seu-talão-vale-um-milhão etc… Leio aquilo que me interessa.
Eu também leio aquilo que me interessa.
Com o devido respeito, mas quem lhe mandou o livro desejava que o senhor lesse tudinho.
Bem, faz-se o possível, mas…
Eu sei, eu sei. O senhor não tem tempo.
É.
Mas quem escreveu, coitado! esse perdeu o seu latim, como se diz.
Será que perdeu? Teve satisfação em escrever, esvaziou a alma, está acabado.
A ideia de que escrever é esvaziar a alma perturbou meu carteiro, tanto quanto percebo em seu rosto magro e sulcado.
Não leva a mal?
Não levo a mal o quê?
Eu lhe dizer que nesse caso carece prestar mais atenção ainda nos livros, muito mais! Se um cidadão vem à sua casa e pede licença para contar um desgosto de família, uma dor forte, dor de cotovelo, vamos dizer assim, será que o senhor não escutava o lacrimal dele com todo o acatamento?
Teodorico, você está esticando demais o meu pensamento. Nem todo livro representa uma confissão do autor, ainda ontem você me trouxe uma publicação do Itamarati sobre o desenvolvimento da opa, que drama de sentimento há nisso?
Bem, nessas condições…
E depois, no caso de ter uma dor moral, escrevendo o livro o camarada desabafa, entende? Pouco importa que seja lido ou não, isso é outra coisa.
Ficou pensativo; à procura de argumento? Enquanto isso, eu meditava a curiosidade de um carteiro que se queixa de carregar muitos livros e ao mesmo tempo reprova que outros não os leiam integralmente.
Tem razão. Não adianta mesmo escrever.
Como não adianta? Lava o espírito.
No meu fraco raciocínio, tudo é encadeado neste mundo. Ou devia ser. Uma coisa nunca acontece sozinha nem acaba sozinha. Se a pessoa, vamos dizer, eu, só para armar um exemplo — se eu escrevo um livro, deve existir um outro — o senhor, numa hipótese — para receber e ler esse livro. Mas se o senhor não liga a mínima, foi besteira eu fazer esse esforço, e isso é o que acontece com a maioria, estou vendo.
Teodorico! você… escreveu um livro?
Virou o rosto.
De poesia, mas agora não adianta eu lhe oferecer um exemplar. Até segunda, bom domingo para o senhor.
Escute aqui, Teodorico…
Bem, já que o senhor insiste, aqui está o seu volume, não repare os defeitos, ouviu? Esvaziei bastante a alma, tudo não era possível!
Carlos Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida

Nenhum comentário:

Postar um comentário