terça-feira, 18 de abril de 2017

Só saio daqui se esta casa sair junto comigo

Olho para a rua e, tantas vezes, vejo o mar.
Bartolomeu acena vagamente para nada antes de fechar a cortina e recolher-se na penumbra do quarto.
Não vê o mar porque não quer.
Estou doente.
Eu é que sei da sua saúde. Você devia aceitar a minha sugestão de ir à costa, eu ia consigo…
Não saio de casa, o Doutor sabe…
Eu sei, mas não percebo.
Só saio daqui se esta casa sair junto comigo.
Depois de tantos anos, deixamos de viver na casa e passamos a ser a casa onde vivemos.
É como se as paredes nos vestissem a alma — diz o velho repartindo o fôlego entre a fala e o esforço de se sentar na berma da cama.
Assim fica, pasmado, mastigando lembranças. “Deve escutar o mar”, pensa o português. E guarda um respeitoso silêncio enquanto Bartolomeu vai teclando o indicador da mão direita sobre os dedos da mão esquerda. Depois, o reformado mecânico murmura baixinho:
Sete.
Como diz? — pergunta o médico.
Foram sete viagens…
Agora, fazia mais uma viagem, rápida. E via o mar, essa minha outra casa…
Foram sete, sem contar com outras vezes que fugi de casa.
Fugiu de casa?!
Mas isso foram outros barcos…
Como assim?
Fugi com mulheres, acho que foram sete vezes, também…
Volta a contar pelos dedos, demorando-se em cada falange, entretido em cada lembrança. Suspende a contagem, os dedos deformados, espetados na vertical.
Minhas mãos já estão noutra estação do ano. Veja como estão frias…
O médico toca-lhe os dedos. Ficam assim, mão na mão, um tempo. Não é por afeto: o médico aproveita para lhe contar a pulsação. O velho quase adormece. Conforme ele mesmo diz: “A velhice é assim, faz noite a qualquer hora”.
Nos reais tempos noturnos, o mecânico é atacado por insônias, acaloradas friagens, frígidas febres. Medo de fechar os olhos, medo de desligar a televisão, esse ecrã para onde ele transfere os trabalhosos sonhos.
Essa máquina é porreira, Doutor, ela sonha por mim, me alivia dessa canseira de sonhar.
Gostaria de o auscultar, Bartolomeu. Sei que não gosta mas…
Não gosto que o senhor me mande respirar. Não é coisa que se mande alguém fazer.
Era para escutar os seus pulmões, o coração…
Não é o coração que ainda me prende. A minha âncora é outra.
Aposto que é o sonho.
É a lembrança. Minha esposa ainda se lembra de mim. É o esquecimento e não a morte que nos faz ficar fora da vida.
Sua esposa se lembra. E sua filha também…
Ah, Deolinda. Essa sim, ela se lembra de mim.
Ajeita a colcha para que as margens se ajustem ao chão. Ele sabe: por baixo da cama é que dormem os fantasmas. Os fantasmas e a caixa de ferramentas.
Não gosto de respirar nesse seu aparelho. Eu só vou dar o último suspiro depois de morrer.
No final da visita, repete-se o previsto: o doente faz deslizar um maço de envelopes na pasta do médico. Eram mais cartas. Que ele queria ver depositadas nos Correios. Sidónio confere os endereços e soletra as palavras garatujadas nos envelopes.
Não vale a pena espreitar, Doutor, que eu escrevo como o polvo, uso tinta para me tornar invisível.
Não espreito. Apenas reparo que uma destas cartas está endereçada para a Companhia Colonial de Navegação. Mas esta companhia não deixou de existir?
Há-de haver uma outra companhia, talvez a Neocolonial de Navegação, não sei…
Bom, eu meto nos Correios e a carta vai para este endereço, é o que posso fazer.
Mas uma coisa lhe peço: tenha cuidado… não mostre nem fale nada ao Administrador.
Esteja tranquilo.
Tenho medo desse Alfredo Suacelência.
Não sei porquê!?
Pois, esse filho da puta odeia o meu passado, diz que são nostalgias coloniais…
O Administrador fazia pouco das suas glórias marítimas. Quando Bartolomeu desembarcava do Infante D. Henrique, as pessoas olhavam-no como um herói que vencera horizontes. Suacelência minimizava-lhe os feitos dizendo: “Ora, esses colonos precisavam de um preto decorativo”. Não era por méritos próprios que o mecânico negro seguia no navio. Ele era tripulante apenas como instrumento de uma mentira: de que não havia racismo no império lusitano.
Decorativo é a puta que o pariu.
Calma, Bartolomeu. Não vale a pena o alvoroço, o Administrador nem está aqui.
O que o gajo tem é inveja… Vou-lhe mostrar uma coisa, espere…
A custo, abre um gavetão no guarda-fatos. Um cheiro a naftalina se espalha quando ele retira uma bandeira verde às riscas brancas.
Suacelência pediu-me, de joelhos, esta bandeira.
De joelhos?
Pensava que era uma bandeira do Sporting.
E não é?
É da Companhia Colonial de Navegação. Do Sporting é ele, esse satanhoco do Administrador.
Suacelência sofria de inconfessável inveja de um passado que não lhe abrira nenhuma porta. Pois vivia um presente em que, apesar da farda, ele não era porteiro de nada.
Saudades do colonialismo coisa nenhuma! Eu tenho saudade é de mim mesmo, saudade de Deolinda, minha filha… Diga-me uma coisa: você nunca chegou a conhecer minha filha Deolinda?
Nunca — mentiu Sidônio.
Sabe, Doutor: eu que sou pai, nem sempre a conheci.
Foi vendo a filha crescer, surpreendendo-se como ela se foi amulherando, de viagem para viagem, menos menina, menos filha, menos sua. Nova estada em casa, novos afetos, novas partidas, novas surpresas. E assim por aí fora.
Essa vida do barco fez de mim uma ave de migrações trocadas. Já não sabia se estava indo, se estava vindo.
De tanto ir e vir, ele já trocava partida por destino. De tanto viver no mar, ele já perdera pátria em terra. Já não era de nenhum lugar. De uma onda, desfeita em espuma: era essa a sua pertença.
Não esqueça de enviar essas cartas, Doutor.
Assim farei, esteja tranquilo.
As cartas, as cartas são o único barco que me restou…
Olhe que eu aqui, tão longe de Portugal, não espero que ninguém me escreva.
Com o mecânico tinha sido ao contrário: a vida se caligrafara, linha após linha. Mesmo com esta mulher, a sua atual e vigente Munda, mesmo com ela fora tudo oficialmente registado, o pedido, o abre-boca, o noivado. Ainda agora, sempre que olhava um papel escrito, lhe vinha à boca o sabor da paixão, o doce aroma do namoro. E até a receita médica em cima da cabeceira lhe surgia como mais uma carta de amor. Era apenas por isso que ele não rasgava a desempregada prescrição.
O médico arruma o estetoscópio e os restantes apetrechos que nem chegou a usar. Cuida de separar os seus utensílios das reformadas ferramentas de Bartolomeu. No limiar da porta, o velho mecânico interrompe-lhe a saída:
A propósito, Doutor, afinal eu pago ou me apago?
Não entendo.
Falo de pagamento das consultas, das suas visitas. A minha mulher diz que o senhor tem sido pago. Eu não sei de nada…
O médico se atrapalha, finge olhar o corredor que conduz para a saída. Parece que chove, lá fora. Para ele, pelo menos, o mundo vai-se convertendo numa aquosa tela.
Mia Couto, in Venenos de Deus, remédios do Diabo

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