— Olho
para a rua e, tantas vezes, vejo o mar.
Bartolomeu
acena vagamente para nada antes de fechar a cortina e recolher-se na
penumbra do quarto.
— Não
vê o mar porque não quer.
— Estou
doente.
— Eu
é que sei da sua saúde. Você devia aceitar a minha sugestão de ir
à costa, eu ia consigo…
— Não
saio de casa, o Doutor sabe…
— Eu
sei, mas não percebo.
— Só
saio daqui se esta casa sair junto comigo.
Depois
de tantos anos, deixamos de viver na casa e passamos a ser a casa
onde vivemos.
— É
como se as paredes nos vestissem a alma — diz o velho
repartindo o fôlego entre a fala e o esforço de se sentar na berma
da cama.
Assim
fica, pasmado, mastigando lembranças. “Deve escutar o mar”,
pensa o português. E guarda um respeitoso silêncio enquanto
Bartolomeu vai teclando o indicador da mão direita sobre os dedos da
mão esquerda. Depois, o reformado mecânico murmura baixinho:
— Sete.
— Como
diz? — pergunta o médico.
— Foram
sete viagens…
—
Agora, fazia mais uma viagem, rápida.
E via o mar, essa minha outra casa…
— Foram
sete, sem contar com outras vezes que fugi de casa.
— Fugiu
de casa?!
— Mas
isso foram outros barcos…
— Como
assim?
— Fugi
com mulheres, acho que foram sete vezes, também…
Volta
a contar pelos dedos, demorando-se em cada falange, entretido em cada
lembrança. Suspende a contagem, os dedos deformados, espetados na
vertical.
—
Minhas mãos já estão noutra estação
do ano. Veja como estão frias…
O
médico toca-lhe os dedos. Ficam assim, mão na mão, um tempo. Não
é por afeto: o médico aproveita para lhe contar a pulsação. O
velho quase adormece. Conforme ele mesmo diz: “A velhice é assim,
faz noite a qualquer hora”.
Nos
reais tempos noturnos, o mecânico é atacado por insônias,
acaloradas friagens, frígidas febres. Medo de fechar os olhos, medo
de desligar a televisão, esse ecrã para onde ele transfere os
trabalhosos sonhos.
— Essa
máquina é porreira, Doutor, ela sonha por mim, me alivia dessa
canseira de sonhar.
—
Gostaria de o auscultar, Bartolomeu.
Sei que não gosta mas…
— Não
gosto que o senhor me mande respirar. Não é coisa que se mande
alguém fazer.
— Era
para escutar os seus pulmões, o coração…
— Não
é o coração que ainda me prende. A minha âncora é outra.
—
Aposto que é o sonho.
— É
a lembrança. Minha esposa ainda se lembra de mim. É o esquecimento
e não a morte que nos faz ficar fora da vida.
— Sua
esposa se lembra. E sua filha também…
— Ah,
Deolinda. Essa sim, ela se lembra de mim.
Ajeita
a colcha para que as margens se ajustem ao chão. Ele sabe: por baixo
da cama é que dormem os fantasmas. Os fantasmas e a caixa de
ferramentas.
— Não
gosto de respirar nesse seu aparelho. Eu só vou dar o último
suspiro depois de morrer.
No
final da visita, repete-se o previsto: o doente faz deslizar um maço
de envelopes na pasta do médico. Eram mais cartas. Que ele queria
ver depositadas nos Correios. Sidónio confere os endereços e
soletra as palavras garatujadas nos envelopes.
— Não
vale a pena espreitar, Doutor, que eu escrevo como o polvo, uso tinta
para me tornar invisível.
— Não
espreito. Apenas reparo que uma destas cartas está endereçada para
a Companhia Colonial de Navegação. Mas esta companhia não deixou
de existir?
— Há-de
haver uma outra companhia, talvez a Neocolonial de Navegação, não
sei…
— Bom,
eu meto nos Correios e a carta vai para este endereço, é o que
posso fazer.
— Mas
uma coisa lhe peço: tenha cuidado… não mostre nem fale nada ao
Administrador.
—
Esteja tranquilo.
— Tenho
medo desse Alfredo Suacelência.
— Não
sei porquê!?
— Pois,
esse filho da puta odeia o meu passado, diz que são nostalgias
coloniais…
O
Administrador fazia pouco das suas glórias marítimas. Quando
Bartolomeu desembarcava do Infante D. Henrique, as pessoas
olhavam-no como um herói que vencera horizontes. Suacelência
minimizava-lhe os feitos dizendo: “Ora, esses colonos precisavam de
um preto decorativo”. Não era por méritos próprios que o
mecânico negro seguia no navio. Ele era tripulante apenas como
instrumento de uma mentira: de que não havia racismo no império
lusitano.
—
Decorativo é a puta que o pariu.
—
Calma, Bartolomeu. Não vale a pena o
alvoroço, o Administrador nem está aqui.
— O
que o gajo tem é inveja… Vou-lhe mostrar uma coisa, espere…
A
custo, abre um gavetão no guarda-fatos. Um cheiro a naftalina se
espalha quando ele retira uma bandeira verde às riscas brancas.
—
Suacelência pediu-me, de joelhos,
esta bandeira.
— De
joelhos?
—
Pensava que era uma bandeira do
Sporting.
— E
não é?
— É
da Companhia Colonial de Navegação. Do Sporting é ele, esse
satanhoco do Administrador.
Suacelência
sofria de inconfessável inveja de um passado que não lhe abrira
nenhuma porta. Pois vivia um presente em que, apesar da farda, ele
não era porteiro de nada.
—
Saudades do colonialismo coisa
nenhuma! Eu tenho saudade é de mim mesmo, saudade de Deolinda, minha
filha… Diga-me uma coisa: você nunca chegou a conhecer minha filha
Deolinda?
— Nunca
— mentiu Sidônio.
— Sabe,
Doutor: eu que sou pai, nem sempre a conheci.
Foi
vendo a filha crescer, surpreendendo-se como ela se foi amulherando,
de viagem para viagem, menos menina, menos filha, menos sua. Nova
estada em casa, novos afetos, novas partidas, novas surpresas. E
assim por aí fora.
— Essa
vida do barco fez de mim uma ave de migrações trocadas. Já não
sabia se estava indo, se estava vindo.
De
tanto ir e vir, ele já trocava partida por destino. De tanto viver
no mar, ele já perdera pátria em terra. Já não era de nenhum
lugar. De uma onda, desfeita em espuma: era essa a sua pertença.
— Não
esqueça de enviar essas cartas, Doutor.
— Assim
farei, esteja tranquilo.
— As
cartas, as cartas são o único barco que me restou…
— Olhe
que eu aqui, tão longe de Portugal, não espero que ninguém me
escreva.
Com
o mecânico tinha sido ao contrário: a vida se caligrafara, linha
após linha. Mesmo com esta mulher, a sua atual e vigente Munda,
mesmo com ela fora tudo oficialmente registado, o pedido, o
abre-boca, o noivado. Ainda agora, sempre que olhava um papel
escrito, lhe vinha à boca o sabor da paixão, o doce aroma do
namoro. E até a receita médica em cima da cabeceira lhe surgia como
mais uma carta de amor. Era apenas por isso que ele não rasgava a
desempregada prescrição.
O
médico arruma o estetoscópio e os restantes apetrechos que nem
chegou a usar. Cuida de separar os seus utensílios das reformadas
ferramentas de Bartolomeu. No limiar da porta, o velho mecânico
interrompe-lhe a saída:
— A
propósito, Doutor, afinal eu pago ou me apago?
— Não
entendo.
— Falo
de pagamento das consultas, das suas visitas. A minha mulher diz que
o senhor tem sido pago. Eu não sei de nada…
O
médico se atrapalha, finge olhar o corredor que conduz para a saída.
Parece que chove, lá fora. Para ele, pelo menos, o mundo vai-se
convertendo numa aquosa tela.
Mia
Couto, in Venenos de Deus, remédios do Diabo
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