Não
sei se também ao leitor, mas a mim costumam telefonar a horas
chamadas mortas (horas, pelo contrário, em que se sente respirar até
a fibra da madeira) para dizer alguma coisa que não é comigo. Em
geral, chamam pelo Nosso Bar. Há sempre, na noite, uma pessoa
querendo comunicar-se desesperadamente com o Nosso Bar. Já pensei em
trocar o número do aparelho, mas desisti: quem me garante que outros
indivíduos não estarão por aí tocando para o Meu Bar, e que os
números não passariam a ser irmãos? Habituei-me a esse bar de
número parecido. Procuro esclarecer ao telefonador que não sou o
Nosso Bar, ele muito se admira, disca de novo, mas quer falar é com
o Nosso Bar, ora essa. Só uma vez, entre as dobras do sono, atendi e
resmunguei:
— É
do Nosso Bar.
—
Desculpe, foi engano — e desligaram.
Mas
um instante depois, o telefone retiniu de novo, e, desta vez, outra
voz:
— É
do Nosso Bar?
Não
sei se também tocam para o Nosso Bar, chamando este pobre cronista,
que nunca pôs lá os pés. Mas a introdução vai ficando comprida,
e eu queria é contar o telefonema do Vate-Noturno, que, por força
mesma do nome, só costuma chamar-me quando, como no dizer homérico,
os caminhos se encheram de sombra. Todas as noites, depois de ingerir
umas e outras, sente necessidade de dizer-me pelo telefone palavras
amáveis e, vez por outra, durezas. Nem sempre consegue dizer nada,
mas entende-se o que ele queria exprimir, era um afeto, uma tristeza,
um problema.
—
Drummond? Aqui é o Vate-Noturno. Aposto
que você não adivinha de onde estou falando.
— Do
Nosso Bar — falei a esmo.
— Nosso
Bar coisa nenhuma. Do bar da abi também não. Nem do Alpino. Estou
falando do Bar do Municipal. Acabei de tomar uma atitude, sabe?
— E
ficou machucado?
— Você
não conhece o Vate-Noturno. Pensa que sim, mas não me conhece
a-bi-sso-lu-ta-men-te. Por que havia de me machucar? Bem, lá dentro
o Bip está caminhando sobre o oceano, compreendeu? Mas eu é que não
vou ver.
— Bip?
Que Bip?
— Puxa!
Você está um bocado fora. O Marcel Marceau, velho, quem havia de
ser? Começou a segunda parte do espetáculo, a que eu faço questão
de não assistir!
— O
Marceau lhe fez alguma grosseria?
— A
mim não, eu é que faria a ele se continuasse a vê-lo.
— Não
entendi.
—
Lógico que não entendeu. Pois se falta
o binóculo.
— Que
binóculo?
— O
binóculo que eu não tenho e agora compreendi que é essencial.
Comprei a duras penas uma galeria para ver o Marceau. E vi. Mas vi só
o vulto, o contorno geral do gesto, não via o pormenor delicado, a
sutileza das mãos, dos dedos, mil e um detalhes da mímica. Então
senti falta de um binóculo. Perguntei ao vizinho da esquerda se
tinha um para emprestar. Não tinha. A garota da direita, também
não. Comecei a falar baixinho: “Binóculo, binóculo”. Depois,
um pouco mais alto. E não aparecia nenhum. Entraram a fazer psst,
aí eu me chateei e gritei: “Não se pode nem desejar um binóculo?
É um crime ver Marceau a essa distância, deste planalto, sem
binóculo!”. Aí me puxaram pelo braço e me tiraram de lá. Vim
para o bar e estou satisfeito com a minha atitude. Você tem binóculo
em casa?
— Nunca
tive binóculo.
— É
isso. Ninguém tem binóculo neste país. País sem binóculos! E
querem ver Marcel Marceau!
Era
meia-noite, e o Vate-Noturno ameaçava levar a outros bares a
campanha do binóculo.
— Leve
também ao Nosso Bar — sugeri.
Carlos
Drummond de Andrade, A bolsa & a vida
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