quarta-feira, 19 de abril de 2017

O infernal vendedor de cabeças

O diabo que carregue o arpoador, pensei, mas não, eu não poderia tomar-lhe a dianteira – trancar a porta por dentro e pular em sua cama, sem ser acordado sequer pelas batidas mais violentas? Não me pareceu uma má ideia; mas, pensando melhor, descartei-a. Pois quem podia me garantir que na manhã seguinte, assim que eu pulasse fora do quarto, o arpoador não estaria de pé na recepção, pronto para me arrebentar!
Todavia, olhando à minha volta, não vendo nenhuma possibilidade de passar uma noite tolerável senão na cama de outra pessoa, comecei a achar que, afinal de contas, eu poderia estar cultivando preconceitos absurdos contra esse arpoador desconhecido. Pensei comigo, vou esperar um pouco; ele deve estar chegando logo. Vou dar uma boa olhada nele, e talvez nos tornemos bons companheiros de cama – nunca se sabe.
Mas embora os outros hóspedes continuassem chegando sozinhos, de dois em dois, ou de três em três, e indo se deitar, ainda não havia sinal do meu arpoador.
Senhor!”, perguntei, “que tipo de sujeito é esse – ele sempre chega assim tão tarde?” Já era quase meia-noite.
O estalajadeiro riu de novo, seu riso magro, e parecia divertir-se extraordinariamente com algo que estava além da minha compreensão. “Não!”, disse, “esse aí acorda co’as galinha’ – deita cedo e levanta cedo – eh, é o passarinho que encontra a minhoca primeiro. Mas hoje ele saiu a negócio, entendeu, e não sei por que diabos ‘tá demorando, a não ser, talvez, que não tenha conseguido vender sua cabeça.”
Vender a cabeça? – Que história de louco é essa que o senhor está me contando?”, meu sangue começava a esquentar. “O senhor quer dizer, estalajadeiro, que esse arpoador está mesmo envolvido, nesta abençoada noite de sábado, ou melhor, nesta manhã de domingo, com a tarefa de vender a sua cabeça na cidade?”
Isso mesmo”, disse o estalajadeiro, “e eu disse pra ele que não dava, que o mercado está lotado.”
De quê?”, exclamei.
De cabeças, é claro. Já não tem cabeça demais no mundo?”
Vou lhe dizer uma coisa, senhor”, eu falei, com calma, “é melhor o senhor parar de tentar me enrolar com esta história – não sou mais criança.”
Pode ser!”, e pegou um pedaço de lenha, que fez de palito, “mas acho que a coisa vai ficar preta se o arpoador ouvir você difamando a cabeça dele.”
Vou arrebentar com ela”, disse eu, deixando-me levar pela raiva dessa mixórdia incompreensível do estalajadeiro.
Já quebrou”, disse ele.
Quebrou”, disse eu, quebrada, o senhor quer dizer?”
Claro, é por isso que ele não consegue a venda, eu acho.”
Senhor”, disse eu, aproximando-me tão frio quanto o monte Hecla numa tempestade de neve –, “senhor, pare de palitar os dentes. O senhor e eu precisamos nos entender, e isso também sem demora. Eu venho à sua casa e lhe peço uma cama; o senhor diz que pode me dar apenas metade; que a outra metade pertence a um certo arpoador. E sobre este arpoador, que ainda não vi, o senhor insiste em contar as histórias mais fantásticas e exasperantes, tendendo a provocar em mim um sentimento constrangedor em relação ao homem que o senhor designou como meu companheiro de cama – uma relação que é extremamente íntima e confidencial. Peço-lhe agora que fale logo e conte quem é esse arpoador, e se estarei seguro em todos os sentidos passando a noite com ele. Em primeiro lugar, gostaria de pedir-lhe a bondade de desmentir essa história de vender a sua cabeça, que se for verdadeira é uma prova que esse arpoador é absolutamente louco, e eu não tenho vontade nenhuma de dormir com um louco; e você, senhor, você, quero dizer, estalajadeiro, o senhor, ao tentar me induzir a isso conscientemente, torna-se passível de processo criminal.”
Bom”, disse o estalajadeiro, enchendo o peito com uma lufada de ar, “esse é um sermão bastante comprido para um cara que dá umas aplainadas de vez em quando. Mas vai com calma, vai com calma, que esse arpoador de quem estou falando chegou agora dos mares do sul; lá, ele comprou um monte de cabeças embalsamadas da Nova Zelândia (muito curioso, sabe) e vendeu todas menos uma, e é essa que ele ia tentar vender hoje, porque amanhã é domingo, e não ia ficar bem vender cabeça de gente na rua quando as pessoas vão pra igreja. Ele queria ir no domingo passado, mas eu parei ele saindo pela porta com as quatro cabeças presas numa corda, parecendo uma réstia de cebolas.”
Este relato esclareceu o mistério antes incompreensível, e mostrou que o estalajadeiro, afinal de contas, não estava querendo zombar de mim – mas, ao mesmo tempo, o que eu devia achar de um arpoador que passava o sábado à noite na rua, chegando ao domingo sagrado envolvido num negócio tão canibal quanto vender cabeças de idólatras mortos?
Pode acreditar em mim, senhor, esse arpoador é um homem perigoso.”
Paga em dia”, foi a resposta. “Mas venha, ‘tá ficando muito tarde, você já devia ter lançado âncora – é uma cama boa. Sal e eu dormimos naquela cama na noite em que juntamos os trapos. Tem bastante lugar pra dois se chutarem nessa cama; é uma cama enorme. Ora, antes de abandonar essa cama, Sal colocava o nosso Sam e o pequeno Johnny no pé dela. Mas uma noite eu estava sonhando e me esparramando, e sei lá como o Sam caiu no chão e quase quebrou o braço. Depois disso, Sal disse que não dava mais. Vem, vou mostrar rapidinho.” Dizendo isso, acendeu uma vela, aproximou-a de mim e ofereceu-se para mostrar o caminho. Mas eu estava indeciso, quando ao ver o relógio no canto ele exclamou: “Vixe, já é domingo – hoje o arpoador não vem mais; deve ter descido vela em outro porto – vem, vamos , ‘cê não vem?”
Considerei a questão por um momento, e então fomos escada acima e eu fui conduzido a um quarto pequeno, frio como um marisco, mobiliado, de fato, com uma cama prodigiosa, tão grande que caberiam bem quatro arpoadores dormindo lado a lado.
Pronto!”, disse o estalajadeiro, colocando a vela numa arca de viagem velha e avariada, que servia ao mesmo tempo de lavatório e mesa de centro, “pronto, agora fica aí à vontade, e boa noite.” Ao me virar, depois de olhar a cama, ele tinha desaparecido.
Dobrei a colcha e me debrucei sobre a cama. Embora não fosse das mais elegantes, resistiu ao exame razoavelmente bem. Olhei, então, ao redor do quarto; e, além do colchão e da mesa de centro, não via nenhuma mobília que pertencesse ao local, a não ser por uma estante rústica, as quatro paredes e um aparador decorado com a representação de um homem ferindo uma baleia. Dentre as coisas que não pertenciam necessariamente ao quarto, havia uma rede enrolada em corda, jogada a um canto; e também uma grande sacola de marinheiro, guardando as roupas do arpoador, sem dúvida em lugar de uma mala. Da mesma forma, havia um pacote com anzóis esquisitos de ossos de peixe, na prateleira acima da lareira, e um arpão grande na cabeceira da cama.
Mas o que é isso em cima da arca? Peguei, segurei perto da luz, senti, cheirei, tentei de todos os modos chegar a uma conclusão satisfatória a respeito daquilo. Não consigo compará-lo com outra coisa senão com um capacho, ornamentado nas bordas com penduricalhos mais ou menos como os espinhos rajados de um ouriço num mocassim indígena. Havia um buraco ou um corte no meio do capacho, como os ponchos Sul-americanos. Mas seria possível que um arpoador sóbrio usasse um capacho e desfilasse pelas ruas de uma cidade Cristã nesses trajes? Vesti-o para experimentar; ele pesava como chumbo, sendo estranhamente grosso e áspero, e achei que também estava um pouco úmido, como se o misterioso arpoador o tivesse usado num dia de chuva. Fui vestido assim até um caco de espelho preso à parede – nunca vi nada como aquilo em minha vida. Tirei-o com tal pressa que fiquei com um torcicolo.
Sentei-me do lado da cama e comecei a pensar sobre esse arpoador que vendia cabeças, e sobre seu capacho. Depois de pensar por algum tempo na cama, levantei-me, tirei minha jaqueta e fiquei de pé no meio do quarto, pensando. Tirei então meu casaco e fiquei pensando mais um pouco em mangas de camisa. Mas comecei a sentir frio, porque estava quase pelado, e lembrei-me do que o estalajadeiro dissera, que o arpoador não voltaria mais naquela noite e, como era tão tarde, sem mais cerimônia tirei as calças e as botas e, soprando a vela, joguei-me na cama, confiando-me aos cuidados do céu.
Não sei se aquele colchão estava cheio de sabugos ou de cacos de cerâmica, mas o fato é que fiquei me revirando por muito tempo, sem conseguir dormir. Por fim, deslizei numa soneca leve, e estava quase pronto para partir rumo à terra do Cochilo, quando ouvi o som de passos pesados no corredor e vi uma luz fraca e trêmula por debaixo da porta do quarto.
Deus me ajude, pensei, deve ser o arpoador, o infernal vendedor de cabeças. Mas fiquei deitado, absolutamente imóvel, e decidido a não dizer uma palavra até que ele falasse comigo. Com uma vela numa das mãos e a tal cabeça da Nova Zelândia na outra, o estranho entrou no quarto e, sem olhar para a cama, colocou sua vela bem longe de mim, num dos cantos do chão, e começou a desamarrar os cordões atados da grande sacola, a que me referi antes por estar no quarto. Eu estava ansioso por ver seu rosto, mas ele o manteve virado por um tempo, enquanto desatava a sacola. Terminado o serviço, virou-se – e valha-me Deus! Que visão! Que rosto! Era de um amarelo escuro, purpúreo, aqui e ali estampado com grandes quadrados enegrecidos. Sim, era exatamente o que eu havia pensado, tratava-se de um péssimo companheiro de cama; entrou numa briga, cortou-se horrivelmente, e veio para cá direto do cirurgião. Mas naquele momento, por acaso, ele virou o rosto na direção da luz, e eu pude ver com clareza que os quadrados negros em seu rosto não podiam ser esparadrapos de modo algum. Eram manchas de um tipo ou de outro. Não entendi de imediato do que se tratava, mas logo me ocorreu uma vaga ideia da verdade. Lembrei-me de uma história de um homem branco – um baleeiro também – que, ao ser preso por canibais, tinha sido tatuado por eles. Concluí que este arpoador, no decurso de suas longas viagens, devia ter encontrado uma aventura parecida. Mas o que isso importa, pensei, afinal de contas! É apenas sua aparência; um homem pode ser honesto sob qualquer tipo de pele. Mas o que pensar daquela cor estranha, digo, daquela parte independente que fica em volta dos quadrados tatuados. Claro que podia ser apenas uma boa camada de bronzeado tropical; mas nunca ouvi falar de um bronzeado de sol que transformasse um homem branco num homem amarelo purpúreo. Mas eu nunca havia estado nos mares do sul; talvez o sol de lá tivesse efeitos extraordinários sobre a pele. Ora, enquanto essas ideias passavam por mim feito relâmpagos, o arpoador continuava sem nem me notar. Mas, depois de abrir a sacola com muita dificuldade, começou a revirá-la e tirou de dentro uma machadinha e uma carteira de pele de foca, ainda com os pêlos. Colocou esses objetos na arca no centro do quarto e pegou a cabeça da Nova Zelândia – uma coisa realmente pavorosa – e guardou-a na sacola. Tirou então o chapéu – um chapéu de castor novo –, e eu quase gritei de tanta surpresa. Não tinha cabelo na cabeça, nada que valha a pena comentar; nada senão um tufo amarrado no topo. Sua cabeça calva avermelhada parecia uma caveira embolorada. Não estivesse o estranho ali entre mim e a porta, eu teria saído por ela mais depressa do que costumava comer.
Mesmo assim, pensei em escapar pela janela, mas estávamos no segundo andar. Não sou covarde, mas não sabia o que pensar desse tratante avermelhado, vendedor ambulante de cabeças. A ignorância é mãe do medo, e, vendo-me completamente confuso a respeito do estranho, confesso que tive tanto medo dele como se fosse o próprio diabo que tivesse entrado no meu quarto a horas mortas. Na verdade, tive tanto medo do homem que não tive coragem de dirigir-me a ele e perguntar-lhe sobre o que parecia inexplicável em sua figura.
Herman Melville, in Moby Dick

Nenhum comentário:

Postar um comentário