O
diabo que carregue o arpoador, pensei, mas não, eu não poderia
tomar-lhe a dianteira – trancar a porta por dentro e pular em sua
cama, sem ser acordado sequer pelas batidas mais violentas? Não me
pareceu uma má ideia; mas, pensando melhor, descartei-a. Pois quem
podia me garantir que na manhã seguinte, assim que eu pulasse fora
do quarto, o arpoador não estaria de pé na recepção, pronto para
me arrebentar!
Todavia,
olhando à minha volta, não vendo nenhuma possibilidade de passar
uma noite tolerável senão na cama de outra pessoa, comecei a achar
que, afinal de contas, eu poderia estar cultivando preconceitos
absurdos contra esse arpoador desconhecido. Pensei comigo, vou
esperar um pouco; ele deve estar chegando logo. Vou dar uma boa
olhada nele, e talvez nos tornemos bons companheiros de cama –
nunca se sabe.
Mas
embora os outros hóspedes continuassem chegando sozinhos, de dois em
dois, ou de três em três, e indo se deitar, ainda não havia sinal
do meu arpoador.
“Senhor!”,
perguntei, “que tipo de sujeito é esse – ele sempre chega assim
tão tarde?” Já era quase meia-noite.
O
estalajadeiro riu de novo, seu riso magro, e parecia divertir-se
extraordinariamente com algo que estava além da minha compreensão.
“Não!”, disse, “esse aí acorda co’as galinha’ – deita
cedo e levanta cedo – eh, é o passarinho que encontra a minhoca
primeiro. Mas hoje ele saiu a negócio, entendeu, e não sei por que
diabos ‘tá demorando, a não ser, talvez, que não tenha
conseguido vender sua cabeça.”
“Vender
a cabeça? – Que história de louco é essa que o senhor está me
contando?”, meu sangue começava a esquentar. “O senhor quer
dizer, estalajadeiro, que esse arpoador está mesmo envolvido, nesta
abençoada noite de sábado, ou melhor, nesta manhã de domingo, com
a tarefa de vender a sua cabeça na cidade?”
“Isso
mesmo”, disse o estalajadeiro, “e eu disse pra ele que não dava,
que o mercado está lotado.”
“De
quê?”, exclamei.
“De
cabeças, é claro. Já não tem cabeça demais no mundo?”
“Vou
lhe dizer uma coisa, senhor”, eu falei, com calma, “é melhor o
senhor parar de tentar me enrolar com esta história – não sou
mais criança.”
“Pode
ser!”, e pegou um pedaço de lenha, que fez de palito, “mas acho
que a coisa vai ficar preta se o arpoador ouvir você difamando a
cabeça dele.”
“Vou
arrebentar com ela”, disse eu, deixando-me levar pela raiva dessa
mixórdia incompreensível do estalajadeiro.
“Já
quebrou”, disse ele.
“Quebrou”,
disse eu, quebrada, o senhor quer dizer?”
“Claro,
é por isso que ele não consegue a venda, eu acho.”
“Senhor”,
disse eu, aproximando-me tão frio quanto o monte Hecla numa
tempestade de neve –, “senhor, pare de palitar os dentes. O
senhor e eu precisamos nos entender, e isso também sem demora. Eu
venho à sua casa e lhe peço uma cama; o senhor diz que pode me dar
apenas metade; que a outra metade pertence a um certo arpoador. E
sobre este arpoador, que ainda não vi, o senhor insiste em contar as
histórias mais fantásticas e exasperantes, tendendo a provocar em
mim um sentimento constrangedor em relação ao homem que o senhor
designou como meu companheiro de cama – uma relação que é
extremamente íntima e confidencial. Peço-lhe agora que fale logo e
conte quem é esse arpoador, e se estarei seguro em todos os sentidos
passando a noite com ele. Em primeiro lugar, gostaria de pedir-lhe a
bondade de desmentir essa história de vender a sua cabeça, que se
for verdadeira é uma prova que esse arpoador é absolutamente louco,
e eu não tenho vontade nenhuma de dormir com um louco; e você,
senhor, você, quero dizer, estalajadeiro, o senhor, ao
tentar me induzir a isso conscientemente, torna-se passível de
processo criminal.”
“Bom”,
disse o estalajadeiro, enchendo o peito com uma lufada de ar, “esse
é um sermão bastante comprido para um cara que dá umas aplainadas
de vez em quando. Mas vai com calma, vai com calma, que esse arpoador
de quem estou falando chegou agora dos mares do sul; lá, ele comprou
um monte de cabeças embalsamadas da Nova Zelândia (muito curioso,
sabe) e vendeu todas menos uma, e é essa que ele ia tentar vender
hoje, porque amanhã é domingo, e não ia ficar bem vender cabeça
de gente na rua quando as pessoas vão pra igreja. Ele queria ir no
domingo passado, mas eu parei ele saindo pela porta com as quatro
cabeças presas numa corda, parecendo uma réstia de cebolas.”
Este
relato esclareceu o mistério antes incompreensível, e mostrou que o
estalajadeiro, afinal de contas, não estava querendo zombar de mim –
mas, ao mesmo tempo, o que eu devia achar de um arpoador que passava
o sábado à noite na rua, chegando ao domingo sagrado envolvido num
negócio tão canibal quanto vender cabeças de idólatras mortos?
“Pode
acreditar em mim, senhor, esse arpoador é um homem perigoso.”
“Paga
em dia”, foi a resposta. “Mas venha, ‘tá ficando muito tarde,
você já devia ter lançado âncora – é uma cama boa. Sal e eu
dormimos naquela cama na noite em que juntamos os trapos. Tem
bastante lugar pra dois se chutarem nessa cama; é uma cama enorme.
Ora, antes de abandonar essa cama, Sal colocava o nosso Sam e o
pequeno Johnny no pé dela. Mas uma noite eu estava sonhando e me
esparramando, e sei lá como o Sam caiu no chão e quase quebrou o
braço. Depois disso, Sal disse que não dava mais. Vem, vou mostrar
rapidinho.” Dizendo isso, acendeu uma vela, aproximou-a de mim e
ofereceu-se para mostrar o caminho. Mas eu estava indeciso, quando ao
ver o relógio no canto ele exclamou: “Vixe, já é domingo –
hoje o arpoador não vem mais; deve ter descido vela em outro porto –
vem, vamos , ‘cê não vem?”
Considerei
a questão por um momento, e então fomos escada acima e eu fui
conduzido a um quarto pequeno, frio como um marisco, mobiliado, de
fato, com uma cama prodigiosa, tão grande que caberiam bem quatro
arpoadores dormindo lado a lado.
“Pronto!”,
disse o estalajadeiro, colocando a vela numa arca de viagem velha e
avariada, que servia ao mesmo tempo de lavatório e mesa de centro,
“pronto, agora fica aí à vontade, e boa noite.” Ao me virar,
depois de olhar a cama, ele tinha desaparecido.
Dobrei
a colcha e me debrucei sobre a cama. Embora não fosse das mais
elegantes, resistiu ao exame razoavelmente bem. Olhei, então, ao
redor do quarto; e, além do colchão e da mesa de centro, não via
nenhuma mobília que pertencesse ao local, a não ser por uma estante
rústica, as quatro paredes e um aparador decorado com a
representação de um homem ferindo uma baleia. Dentre as coisas que
não pertenciam necessariamente ao quarto, havia uma rede enrolada em
corda, jogada a um canto; e também uma grande sacola de marinheiro,
guardando as roupas do arpoador, sem dúvida em lugar de uma mala. Da
mesma forma, havia um pacote com anzóis esquisitos de ossos de
peixe, na prateleira acima da lareira, e um arpão grande na
cabeceira da cama.
Mas
o que é isso em cima da arca? Peguei, segurei perto da luz, senti,
cheirei, tentei de todos os modos chegar a uma conclusão
satisfatória a respeito daquilo. Não consigo compará-lo com outra
coisa senão com um capacho, ornamentado nas bordas com penduricalhos
mais ou menos como os espinhos rajados de um ouriço num mocassim
indígena. Havia um buraco ou um corte no meio do capacho, como os
ponchos Sul-americanos. Mas seria possível que um arpoador sóbrio
usasse um capacho e desfilasse pelas ruas de uma cidade Cristã
nesses trajes? Vesti-o para experimentar; ele pesava como chumbo,
sendo estranhamente grosso e áspero, e achei que também estava um
pouco úmido, como se o misterioso arpoador o tivesse usado num dia
de chuva. Fui vestido assim até um caco de espelho preso à parede –
nunca vi nada como aquilo em minha vida. Tirei-o com tal pressa que
fiquei com um torcicolo.
Sentei-me
do lado da cama e comecei a pensar sobre esse arpoador que vendia
cabeças, e sobre seu capacho. Depois de pensar por algum tempo na
cama, levantei-me, tirei minha jaqueta e fiquei de pé no meio do
quarto, pensando. Tirei então meu casaco e fiquei pensando mais um
pouco em mangas de camisa. Mas comecei a sentir frio, porque estava
quase pelado, e lembrei-me do que o estalajadeiro dissera, que o
arpoador não voltaria mais naquela noite e, como era tão tarde, sem
mais cerimônia tirei as calças e as botas e, soprando a vela,
joguei-me na cama, confiando-me aos cuidados do céu.
Não
sei se aquele colchão estava cheio de sabugos ou de cacos de
cerâmica, mas o fato é que fiquei me revirando por muito tempo, sem
conseguir dormir. Por fim, deslizei numa soneca leve, e estava quase
pronto para partir rumo à terra do Cochilo, quando ouvi o som de
passos pesados no corredor e vi uma luz fraca e trêmula por debaixo
da porta do quarto.
Deus
me ajude, pensei, deve ser o arpoador, o infernal vendedor de
cabeças. Mas fiquei deitado, absolutamente imóvel, e decidido a não
dizer uma palavra até que ele falasse comigo. Com uma vela numa das
mãos e a tal cabeça da Nova Zelândia na outra, o estranho entrou
no quarto e, sem olhar para a cama, colocou sua vela bem longe de
mim, num dos cantos do chão, e começou a desamarrar os cordões
atados da grande sacola, a que me referi antes por estar no quarto.
Eu estava ansioso por ver seu rosto, mas ele o manteve virado por um
tempo, enquanto desatava a sacola. Terminado o serviço, virou-se –
e valha-me Deus! Que visão! Que rosto! Era de um amarelo escuro,
purpúreo, aqui e ali estampado com grandes quadrados enegrecidos.
Sim, era exatamente o que eu havia pensado, tratava-se de um péssimo
companheiro de cama; entrou numa briga, cortou-se horrivelmente, e
veio para cá direto do cirurgião. Mas naquele momento, por acaso,
ele virou o rosto na direção da luz, e eu pude ver com clareza que
os quadrados negros em seu rosto não podiam ser esparadrapos de modo
algum. Eram manchas de um tipo ou de outro. Não entendi de imediato
do que se tratava, mas logo me ocorreu uma vaga ideia da verdade.
Lembrei-me de uma história de um homem branco – um baleeiro também
– que, ao ser preso por canibais, tinha sido tatuado por eles.
Concluí que este arpoador, no decurso de suas longas viagens, devia
ter encontrado uma aventura parecida. Mas o que isso importa, pensei,
afinal de contas! É apenas sua aparência; um homem pode ser honesto
sob qualquer tipo de pele. Mas o que pensar daquela cor estranha,
digo, daquela parte independente que fica em volta dos quadrados
tatuados. Claro que podia ser apenas uma boa camada de bronzeado
tropical; mas nunca ouvi falar de um bronzeado de sol que
transformasse um homem branco num homem amarelo purpúreo. Mas eu
nunca havia estado nos mares do sul; talvez o sol de lá tivesse
efeitos extraordinários sobre a pele. Ora, enquanto essas ideias
passavam por mim feito relâmpagos, o arpoador continuava sem nem me
notar. Mas, depois de abrir a sacola com muita dificuldade, começou
a revirá-la e tirou de dentro uma machadinha e uma carteira de pele
de foca, ainda com os pêlos. Colocou esses objetos na arca no centro
do quarto e pegou a cabeça da Nova Zelândia – uma coisa realmente
pavorosa – e guardou-a na sacola. Tirou então o chapéu – um
chapéu de castor novo –, e eu quase gritei de tanta surpresa. Não
tinha cabelo na cabeça, nada que valha a pena comentar; nada senão
um tufo amarrado no topo. Sua cabeça calva avermelhada parecia uma
caveira embolorada. Não estivesse o estranho ali entre mim e a
porta, eu teria saído por ela mais depressa do que costumava comer.
Mesmo
assim, pensei em escapar pela janela, mas estávamos no segundo
andar. Não sou covarde, mas não sabia o que pensar desse tratante
avermelhado, vendedor ambulante de cabeças. A ignorância é mãe do
medo, e, vendo-me completamente confuso a respeito do estranho,
confesso que tive tanto medo dele como se fosse o próprio diabo que
tivesse entrado no meu quarto a horas mortas. Na verdade, tive tanto
medo do homem que não tive coragem de dirigir-me a ele e
perguntar-lhe sobre o que parecia inexplicável em sua figura.
Herman
Melville, in Moby Dick
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